Especulação sobre um futuro trágico, porém plausível. Que novas relações sociais advirão, na hipótese de um conflito atômico? Lógicas capitalistas estarão abaladas e desmoralizadas. Sobrevirão o caos e a selvageria ou, enfim, a solidariedade?
Este artigo propõe pensarmos o impensável – como haverão de ser as nossas vidas em um eventual pós-guerra nuclear. É composto por cinco partes, publicadas em cinco semanas consecutivas:
1) “Não existe nenhuma ‘realidade’ única aos homens” (publicado em 26/7) é uma preliminar e necessária digressão a respeito da natureza intrínseca aos seres vivos, às pessoas e às sociedades, para fundamentação das demais partes;
2) “Salvar o Dólar – ou morrer junto com ele” (em 2/8) discorre sobre o porquê de uma guerra nuclear no mundo ter-se tornado hoje bastante provável;
3) “A morte não é só pelas bombas” (em 9/8) aborda as consequências diretas de uma guerra nuclear;
4) “Um retrocesso de séculos ou de milênios”, ((em 16/8) trata das consequências indiretas e a longo prazo; e
5) “Ou juntos, ou nada”, que vem a seguir, discorre sobre o que seria possível tentarmos fazer para lidar com essas consequências.
5. Ou juntos, ou nada
Diante das dificuldades e desafios tamanhos, expostos à terceira e quarta partes deste texto, como será a sociedade pós-guerra nuclear? Eu não sei – e ninguém sabe. Roteiristas de Hollywood fantasiam sobre toda sorte de distopias, à la “Mad Max”, mas para isso eles tomam por regra que prevalecerá o lado obscuro das pessoas.
Sabemos que esse lado existe, e que ele pode sim prevalecer. Mas, tomemos licença aqui para proceder a um reducionismo grosseiro, e dividamos a humanidade em três grupos principais:
Um primeiro tipo de pessoas, frente a um pós-guerra nuclear, pode simplesmente não mais querer viver. Quem poderá julgá-las? Quem poderá mensurar a dor de se perder, de sopetão e sem aviso prévio, todos os seus referenciais, construídos ao longo de toda a vida vivida?
Um segundo tipo de pessoas irá querer viver, mas com base apenas no instinto de sobrevivência, e assim essas pessoas adotarão atitudes altamente individualistas (o “padrão Mad Max”). Novamente: quem poderá julgá-las, por quererem e buscarem sobreviver, se foi basicamente isso o que elas aprenderam por toda a vida delas?
Há, porém, um terceiro tipo de pessoas que atribui significado ao percurso histórico da humanidade, a “aventura humana sobre a Terra”. Pessoas que portam dentro de si uma conexão para com a espécie humana como um todo. Mesmo em minoria, ao menos no primeiro momento, essas pessoas poderão agir para buscar reinventar a vida em sociedade e, na medida em que vierem a ser bem-sucedidas (se vierem), poderão aos poucos vir a “ganhar” pessoas dos outros dois grupos para essa perspectiva coletivista (“Quem vai chorar, quem vai sorrir? Quem vai ficar, quem vai partir? Pois o trem está chegando, ‘tá chegando na estação, é o trem das sete horas, é o último do sertão”).
Pode parecer irrazoável. Sairemos da distopia atual (sim, o mundo atual já é uma distopia) para uma outra distopia incontáveis vezes pior – e seria então, a partir dessa distopia extrema, que finalmente conseguiríamos chegar a alguma utopia? Bem, Keynes disse certa vez que “nunca é o inevitável o que acontece – é sempre o imprevisível”. Ou, como cantou Morrissey, “because if it’s not love then it’s the bomb that will bring us together”.
O futuro está sempre em aberto, e sempre à mercê do imprevisível e do imponderável – especialmente no que toca às ações dos homens. Malgrado todo o dilúvio de adversidades, há dois fatores a nosso favor: muito possivelmente, sairemos da guerra nuclear com a nossa infraestrutura intacta; e, por enquanto, ainda contamos com mais algum tempo antes da guerra, durante o qual podemos tratar de realizar alguma preparação prévia.
Não é certo que haja uma guerra nuclear (o futuro está sempre em aberto…), muito embora seja bastante provável. Nenhuma utopia vale o preço em dor e sofrimento que uma guerra nuclear cobrará. Porém, se assim tiver que ser, que nos despeçamos então deste infeliz mundo em que “Há tempos nem os santos têm ao certo a medida da maldade, e há tempos são os jovens que adoecem, e há tempos o encanto está ausente e há ferrugem nos sorrisos, e só o acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção”.
No pós-guerra nuclear, como exposto à quarta parte deste texto, o capitalismo colapsará (e, convenhamos, já vai tarde). Nessa hora, o grande problema residirá na autoconservação da identidade, segundo a teoria da autopoiesis de Maturana e Varela (que expusemos na primeira parte deste texto). Tanto as pessoas quanto as sociedades já se encontram há tanto tempo (séculos) operando sob o capitalismo que as “regularidades nas suas correlações internas” a esse respeito já se encontram por demais consolidadas, e assim será tanto penoso quanto demorado o processo para sua “atualização” – a inércia da mudança. Quanto mais tempo as pessoas e sociedades insistirem no esforço de tentar salvar um sistema falido e irrecuperável, mais tempo precioso será perdido para fazer-se o que realmente importa.
E o que realmente importa será cuidar daquilo que restará quando o capitalismo tiver colapsado – as pessoas.
No primeiro momento, as pessoas precisam ter garantida a sua sobrevivência – água, comida, teto. E energia (para bombeamento e aquecimento de água, cozimento e conservação de alimentos, iluminação noturna). E isso terá que ser buscado em meio ao caos.
A vida em cidades atende a um requisito capitalista de economia de escala – aproximar os trabalhadores dos meios de produção. Após uma guerra nuclear, as cidades serão o pior lugar para se estar, não apenas pelo colapso nos abastecimentos de água, alimentos e energia, mas por apinharem milhares ou mesmo milhões de pessoas em pouco espaço, a quase totalidade delas “em parafuso” diante do caos.
“Tempo é tudo o que as cidades não disporão” (Fred Reed, em artigo transcrito na terceira parte deste texto). Não será possível nenhuma restauração, capitalista ou não, a tempo de acudir as pessoas ilhadas nas cidades. O quanto antes, é preciso que estas sejam evacuadas, com a população dispersada em zonas o menos densamente povoadas possível.
Não há, ainda, um mundo pós-capitalista. Só o que há é um processo de transição, desordenado e caótico, rumo a “algo” que não se sabe o que será, e que nem sequer se pretende intencionalmente construir – se vier a ser construído o será na prática, aos trancos e barrancos.
Então, em termos de acesso a água e alimentos, será preciso que as pessoas, o quanto antes, se desloquem para onde há terras cultiváveis, se organizem em comunidades rurais, se dediquem à agricultura comunitária de subsistência (porque terá maior produtividade que uma agricultura estritamente unifamiliar), se entendam quanto ao acesso e ao uso das fontes de água locais disponíveis, e aprendam a viver em comunidade (por exemplo, a comunidade cuidando das crianças e dos idosos, ou ainda a alimentação por refeições comunitárias, para economia de lenha e minimização do desperdício dos alimentos).
Como ficaria a questão fundiária, a eterna ferida aberta brasileira? Não ficaria, e estaria assim resolvida. Um fazendeiro latifundiário para manter-se como tal necessita de empregados, capatazes ou o que seja. Esse pessoal não vai mais “aparecer para o trabalho”, porque vai cada um cuidar da sobrevivência da sua família – tal como todo mundo. Digamos que esse fazendeiro seja um criador de gado. Para quem ele vai vender o seu gado? E, ainda que não o crie à base de ração (não teria mais como comprá-la) e sim solto no pasto, quem é que vai reunir o gado no final do dia? Enfim, não haverá mais sentido em que latifundiários se apeguem às suas terras (claro que se espera que haja respeito para com as casas em que eles residem com as suas famílias – o pressuposto é que há terra bastante para todos). Por fim, tampouco haverá mais cartórios de registro de imóveis – a não ser como fornecedores de papel velho para acendimento de fogueiras.
Parêntesis: “reacionário” é aquele que reage contra qualquer mudança. Para os reacionários em automatismo, melhor desenhar: eu NÃO estou propondo acabar com a propriedade privada; quem virá acabar de modo inexorável com a propriedade privada será o colapso civilizatório – catástrofe imensurável da qual eu também serei vítima. Tudo o que eu estou propondo é procurarmos lidar com o colapso civilizatório de uma forma minimamente ordenada, no interesse de todos (inclusive os reacionários), e, a quem pretender salvaguardar a propriedade privada, desejo boa sorte. Fecha parêntesis.
Equacionado ainda que precariamente o acesso à água e alimentos, a questão do teto poderá ser de início mitigada convertendo-se benfeitorias das fazendas ou do agronegócio (galpões, armazéns etc.) em alojamentos coletivos, até que a comunidade cuide de providenciar acomodações melhores para todos.
Outro parêntesis: não se partirá da estaca zero. A experiência acumulada de organizações já voltadas ao provimento de terra para plantio a quem não tem (MST) ou de moradia a quem não tem (MTST) se mostrará de grande valia. Fecha parêntesis.
Isto tudo até aqui é a parte “menos difícil” do problema. A parte mais difícil será manter-se os serviços essenciais, especialmente no que tange ao fornecimento de energia. E que fique claro que, por “serviços essenciais”, NÃO se está falando em serviços essenciais à continuidade da economia (que não existirá mais, como vimos à quarta parte deste texto) e sim tão somente daqueles serviços essenciais à sobrevivência das pessoas: energia elétrica, gás de cozinha, água e saneamento básico, transporte rodoviário de cargas, postos de gasolina nas estradas (nem que seja somente para diesel: “a supressão dos transportes pode causar mais mortes do que as bombas” – novamente Fred Reed), e um mínimo de comunicações para passar orientações às pessoas, e também para que as comunidades não fiquem isoladas e possam se perceber como partes de um todo social maior.
Os trabalhadores para manter minimamente de pé esses serviços não necessariamente são os mesmos empregados das empresas que proviam tais serviços antes da guerra – é quem puder fazer, inclusive aposentados, ex-empregados, gente que havia migrado para outros ramos de atividade ou até mesmo leigos que venham a ser treinados para algumas funções básicas. O ponto crucial é: quem assume o cuidado com as famílias dessas pessoas, para que elas possam voluntariar-se a manter de pé esses serviços essenciais voltados à sobrevivência de todos? Idealmente (apesar de improvavelmente) essa tarefa deve ser apoiada por aquilo que ainda tiver restado do Estado; senão, pelas comunidades, que precisarão acolher e cuidar desses familiares de modo a que aqueles que irão prover os serviços essenciais possam se sentir seguros para fazê-lo.
Na premissa da “infraestrutura intacta”, ou seja, a de que os meios físicos continuam dados, o que passa a faltar é estruturação social para colocá-los em funcionamento e a serviço de todos. Isso tudo que foi postulado seria, ao menos teoricamente, exequível? Sim. Porém, será improvável. Porque o “mais difícil de tudo” não estará no mundo exterior às pessoas, e sim no interior delas – romper com a inércia da mudança. Dar-se conta de que o mundo NÃO acabou (o que acabou foi aquele mundo de antes) e que, se vivos continuamos, nos cabe viver as nossas vidas nesse novo mundo em aberto, a ser construído por todos conjuntamente.
Quanto ao capitalismo, poderá ele um dia vir a ser restaurado? A curto prazo obviamente que não. A longo prazo até seria possível sim – mas, a longo prazo, as sociedades certamente já terão se dado conta de que podem viver melhor (bem melhor) sem o capitalismo do que com ele.
E quanto à questão do conhecimento, e da magnitude do retrocesso pela perda do mesmo (o que foi pormenorizado à quarta parte deste texto): uma vez que a civilização tal como a conhecemos colapsará, toda a esperança reside na possibilidade – que não é segura – de que alguma nova civilização possa vir a sucedê-la. O conhecimento a ser detido (e repassado às futuras gerações) por essa nova civilização será tão maior quanto for a nossa capacidade de preservar e recolocar em uso as maiores parcelas possível do conhecimento atual, sabedores de que perdas (logo, retrocesso civilizatório) haverá.
Não há chance de algo assim vir a ocorrer no hemisfério norte. Talvez partes da Rússia escapem – se as defesas antimísseis do país conseguirem abater a esmagadora maioria dos mísseis americanos. Talvez a Índia e o Paquistão – se não aproveitarem a oportunidade para se destruírem mutuamente. A melhor chance para o planeta será a sobrevivência da América do Sul e da África. Se – se – elas conseguirem em alguma medida subsistir ao colapso civilizatório, com sorte se poderá, com o tempo, até mesmo resgatar alguns dos resquícios de conhecimento remanescentes na Europa, Estados Unidos, China, Japão.
É imperioso salvaguardar desde logo o maior volume possível de registros de conhecimento (haja toner de impressora). Mas também será de suma importância constituir uma nova teia para a circulação e renovação de conhecimentos – que é o que mantém o conhecimento vivo (de nada adiantarão registros de conhecimento salvos que não sejam acessados por pessoas capazes de compreendê-los). Nesse sentido, possivelmente será tão ou mais profícuo cuidar do conhecimento básico (a capacidade das pessoas em apreender o conhecimento – em uma palavra: educação) quanto do conhecimento aplicado (o emprego prático do conhecimento). Como já foi dito (à quarta parte deste texto), crianças não podem ficar sem estudo, sob pena de precarização das suas capacidades cognitivas. Se não for possível manter em funcionamento as escolas constituídas (lembremo-nos, os professores também estarão voltados a cuidar da sobrevivência das suas famílias), a comunidade deve assumir a tarefa. Para tanto, planos de ensino e planos de aula para cada disciplina de cada ano letivo serão documentos imprescindíveis. Cada pessoa detentora de conhecimentos que possam servir para educar as crianças e os jovens (e mesmo adultos) deverá ser arregimentada. Em uma economia de trocas (escambo) esses conhecimentos deverão ser apreciados.
Para que a nova sociedade a ser criada possa recuperar patamares civilizatórios mínimos, será necessário que profissionais tais como engenheiros possam voltar a poder realizar cálculos complexos, tal como hoje fazem rotineiramente por meio das calculadoras e planilhas que não mais existirão. Uma antiga ferramenta, hoje esquecida contudo ainda à venda, que até a década de 1970 era usada em larga escala como uma espécie de “calculadora pré-eletrônica” era a régua de cálculo (ver também aqui ou aqui). Essa ferramenta necessitará ser reabilitada (tanto quanto as tabelas trigonométricas, logarítmicas, de radiciação e outras, para aqueles que de uma régua de cálculo não puderem dispor). Além disso, esses engenheiros precisarão passar a compreender os princípios matemáticos por detrás dos seus cálculos, da mesma forma como os programadores precisarão percorrer o “caminho de volta” e readquirir a capacidade de programar a partir de linguagens de máquina.
No que diz respeito àquilo que tiver restado dos computadores e da internet, deverá ser dada prioridade a restaurar-se o fornecimento de energia elétrica aos supercomputadores especializados existentes (e que Deus os livre de um pulso eletromagnético, impacto de que tratamos à terceira parte deste texto), enquanto que esforços deverão ser entabulados para se “insular” áreas geográficas nas quais seja possível estabelecer sucedâneos da atual internet que voltem a operar como fragmentos dela, e que aos poucos possam vir a ser interconectados compondo redes maiores.
Aquilo que propicia não apenas a conservação do conhecimento mas a sua evolução, ou seja, que faz do conhecimento algo vivo em si, é a gigantesca (mundial) teia dos inter-relacionamentos e interdependências humanas, por meio dos quais o conhecimento circula e se renova. Com uma guerra nuclear a teia atual se romperá e se perderá para sempre. Tudo o que poderemos fazer é começar a tecer uma nova teia. Se viermos a nos mostrar realmente bons nisso, ainda assim levará décadas – com sorte, talvez os netos dos nossos netos voltem a poder desfrutar do nosso atual padrão de vida. Em suma: não será por nós mesmos que faremos isso. Será pelas futuras gerações. Será pela espécie humana.
Mas, ou será isso, ou a humanidade perderá o conhecimento como o fator primordial de produção, o seu motor civilizatório. Se o fator de produção voltar a ser a terra, teremos retrocedido milênios – e levará então milênios até regressarmos. Se voltar a ser o capital, serão séculos. Para que sejam “apenas” décadas, somente se nós formos capazes de tecer uma nova teia para o conhecimento.
O valor que os homens atribuem à terra e ao capital não é de forma alguma absoluto e imutável. O que é aquilo que a terra e o capital têm em comum, e que não têm em comum com o conhecimento? Resposta: tanto a terra como o capital estão fora das pessoas, enquanto que o conhecimento está dentro delas. Conforme a teoria da autopoiesis, tudo o que esteja fora das pessoas não as constitui, não é parte da identidade delas, é tão somente ambiente externo a elas, e será assim tão somente referenciado internamente pelas pessoas como modo de cada uma delas fluir (viver) em seu ambiente (“acoplar-se” a ele). Vimos que, com o passar do tempo, isso constitui uma cultura em comum que se estabiliza, com a tradição assumindo um peso (uma inércia) enorme – assumindo a forma de uma identidade coletiva. Porém, vimos também que tais referências internas podem vir a serem redefinidas em função da necessidade de atualização das identidades – e é exatamente isso o que ocorrerá após uma guerra nuclear. Pode levar algum tempo, mas as pessoas acabarão por sentir a dor, interna, de se dar conta de que foram as suas identidades disfuncionais que as levaram até a guerra, e até toda a dor (externa) dela decorrente. A humanidade em seu conjunto poderá então renunciar à tradição e abraçar uma nova identidade coletiva.
Uma vez que todas as pessoas estarão tendo a experiência, ao mesmo tempo, das agruras da sobrevivência, elas poderão se identificar umas com as outras, de forma inédita, em escala planetária. Será possível então chegarmos, também de forma inédita, a uma consciência coletiva da humanidade. Somente assim poderão ser, a terra, tornada comunitária e, o dinheiro, despojado de seu encanto como passaporte para a acumulação, a ostentação, o consumo e a busca do prazer, e retornado à sua condição original de meio de trocas.
Não haverá meio termo: ou bem seremos capazes de dar o salto evolutivo de constituição de uma consciência coletiva da humanidade como um todo, ou poremos a perder, e desonraremos, toda a trajetória evolutiva da humanidade até aqui – desonraremos cada gota de sangue derramada e cada grito de dor para que pudéssemos sair das cavernas e chegarmos até aonde chegamos.
Até aqui, discorremos sobre aquelas que poderiam consistir em linhas gerais para um esforço de reconstrução social em um pós-guerra nuclear. A partir delas, um trabalho de planejamento prévio – enquanto ainda dispomos de tempo para isso – poderia abordar (dentre muitas outras coisas):
– Suporte psíquico às pessoas no processo das suas passagens individuais à nova realidade;
– Orientações práticas para que elas comecem a operar nessa nova realidade;
– Ações prévias para mitigação dos principais gargalos de infraestrutura;
– Ações prévias para preservação de registros de conhecimento críticos; etc.
Mas tudo isso é fruto apenas da minha cabeça. Um trabalho de planejamento consistente, estruturado, metodológico, chegaria a um resultado mais robusto, validando alguns dos pontos que elenquei, descartando outros e acrescentando outros, mas principalmente detalhando todos eles.
Dentre as diversas técnicas de planejamento, considero adequado a este desafio o planejamento por cenários. De forma simplificada, foi o que fiz; aliás, aquela descrição que fiz (na quarta parte deste texto) de um Brasil no pós-guerra nuclear é o cenário que eu acredito que vá se consumar, e não o que vai de fato acontecer, porque o que vai de fato acontecer nem eu nem ninguém sabe (como já dito aqui, o futuro está sempre em aberto): “O que será que será? Que todos os avisos não vão evitar (…) e todos os destinos irão se encontrar, e mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá, olhando aquele inferno vai abençoar, o que não tem governo nem nunca terá”
Em um exercício de planejamento por cenários são vislumbrados, e detalhados, diversos possíveis cenários de futuro (por exemplo: com ou sem pulso eletromagnético; com inverno nuclear suave ou intenso; etc.). Seleciona-se um desses cenários como o mais plausível (cenário de referência), e detalha-se em profundidade as ações a serem adotadas para o mesmo (sem prejuízo de também serem delineadas ações para os demais cenários possíveis).
Para tal planejamento prévio, será importante reunir-se uma massa crítica de cabeças pensantes, porque esse será um trabalho de elucubração, que não deve ser tocado por uma ou poucas pessoas. Uma vez que se vai estar lidando com algo absolutamente inédito, a diferença entre uma ideia genial ou estúpida pode estar por um detalhe mínimo, assim cada ideia deve ser submetida ao crivo de um grupo. Os requisitos para integrar esse grupo seriam: pensamento sistêmico, criatividade, pensar “fora da caixinha”, trabalho em equipe – ou seja, nada que requeira qualquer formação acadêmica ou formal específica. Um outro requisito será estar imbuído(a) do propósito de superação do capitalismo para construção de uma sociedade voltada à plenitude do viver humano (detalharemos à frente). Ajuda também a pessoa contar com sabedoria de vida, conhecer a natureza humana e ser interessada em compreender o Brasil. Naturalmente, será importante que sejam empregadas metodologias de construção coletiva de consensos (por favor, não se vá reunir essas pessoas em torno de uma mesa para aquela prática ultrapassada e improdutiva chamada “reunião”). A metodologia que vejo como mais indicada é a dos Grupos de Diálogo de David Bohm (segundo a qual, como requisito metodológico, o tamanho do grupo deve ser de quarenta pessoas), mas há outras, como por exemplo a Técnica do Espaço Aberto de Harrison Owen ou a Investigação Apreciativa de David Cooperrider.
Poderia vir o Estado brasileiro a se encarregar desse planejamento prévio? Em tese, é claro que sim – no fundo, essa seria uma atividade de defesa civil, a qual já é realidade em vários outros países: na Rússia, de 04 a 07 de outubro de 2016 o governo parou o país por quatro dias seguidos, quando quarenta milhões de pessoas foram treinadas a se dirigir cada uma delas ao seu respectivo abrigo nuclear e a como nele permanecer por longo tempo; os países escandinavos já há décadas produzem e distribuem cartilhas e outros materiais com orientações sobre como agir em caso de uma guerra nuclear, a qual direta ou indiretamente atinja o país; na Suíça, desde o final do século XIX o exército foi extinto,i e praticamente em cada residência há um abrigo bem como armamento para que a população resista a uma eventual invasão (e, claro, todos recebem treinamento).
Eu não creio, porém, que o Estado brasileiro possa se predispor a encampar tal tarefa. Novamente, a autopoiesis: Qual a vocação (ou seja, a identidade) histórica do Estado brasileiro, desde os tempos da colônia? Servir aos poderosos, servindo-se das pessoas comuns (vocação esta retomada com afinco no período recente de 2016 a 2022). E, qual a vocação do atual governo? Conciliar com o capitalismo, sem jamais confrontá-lo. Gastaria então recursos o Estado brasileiro para uma situação hipotética, a qual ninguém quer que ocorra? Planejaria o Estado brasileiro para um futuro no qual ele próprio muito provavelmente desaparecerá? Orientaria o Estado brasileiro as pessoas para agirem contra os interesses aos quais ele serve (como ocupar terras)? Muito improvável.
Mas, fosse possível tal beneplácito, o Estado poderia conceber ações para além da capacidade de quem mais quer que fosse. Por exemplo, implantar uma renda universal para todas as pessoas (ver o artigo de Yanis Varoufakis a respeitoii), e assim dispor os rudimentos para uma economia de trocas.
Naturalmente, o esforço de concepção de um novo mundo não se esgota na mera sobrevivência das pessoas. Pode-se vislumbrar ao menos três fases sucessivamente distintas; primeira: sobrevivência (água, comida, teto, energia; a levar meses até se completar); segunda: subsistência (saúde, vestuário, cuidados mais eficazes com as crianças e os idosos, normas sociais acatadas por todos, instâncias de arbitragem para solução de conflitos; a levar anos até se completar); e terceira: fruição da vida (no jargão marxista chamada de “emancipação”; a levar décadas). Uma vez assegurada a subsistência de todos, não há porque as sociedades não se organizarem para que as pessoas aproveitem o seu tempo livre para: realizar os seus potenciais; expressar os seus dons inatos; contemplar a natureza; apreciar ou criar arte; praticar esportes ou brincar; conviver com as outras pessoas; fazer sexo de forma desintoxicadaiii e sem objetificar o outro nem a si mesmo; trilhar algum caminho de espiritualidade; apaixonar-se; fazer terapia; autoconhecer-se (além de ocupar-se com atividades voltadas ao bem comum como por exemplo reflorestar o planeta). Como cantou Caetano Veloso, “Gente é pra brilhar”.
Seria isso o comunismo? Sim e não. Sim, porque não haveria mais acumulação capitalista, nem a desigualdade por ela gerada, nem exploração do homem pelo homem. Mas não, porque o comunismo enquanto construção teórica nada tem a ver com isso que aqui vislumbramos (para começar, Marx anteviu o comunismo como consequência do “avanço das forças produtivas”, enquanto que aqui estamos conjecturando sobre um brutal retrocesso delas). Pois não é que, por sincronicidade, acaba de sair um artigo sobre o pensamento do filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, que esclarece à perfeição esse paradoxo? Confira: “Bifo usa a palavra comunismo como uma ferramenta conceitual provisória, não se refere ao comunismo como uma configuração ideológica, a um projeto sistemático de transformação e nem remete a nenhum programa político. Nada disso. Para Bifo, o comunismo hoje significa erradicar a superstição da acumulação e do trabalho assalariado. Significa igualitarismo e emancipação do tempo social. O tecno-automatismo exige cada vez menos trabalho e, no entanto, gera uma onda de medo, miséria e violência. Esse paradoxo se baseia precisamente na superstição do salário. Nós nos acostumamos a pensar que nossa sobrevivência só é possível se trocarmos trabalho por dinheiro, como se o trabalho assalariado fosse uma lei da natureza. E não é. Dizer ‘comunismo’ é usar a palavra para se referir a um meme que precisa ser criado, projetado e colocado para funcionar no cenário pós-apocalíptico. […] o que realmente muda as regras do jogo são os eventos imprevisíveis. O pensamento é descartado como lastro na era da comunicação e da velocidade. Parece ineficaz. Ornamental. […] Mas é o imprevisível que é preocupante. Portanto, não vamos parar de pensar, porque o imprevisível pode em breve exigir pensamento, e esse é o nosso trabalho. Pensar em tempos de trauma apocalíptico. O capitalismo não é um dado da natureza. Parece natural, devido à nossa incapacidade de imaginar algo além dele. Parece que não conseguimos imaginar como a vida pode ser bela. A ganância, a conformidade, o cinismo e a ignorância estão frustrando e diminuindo nossa capacidade de vivenciar a imaginação. É por isso que Bifo Berardi sugere que preparemos nossas mentes para a segunda vinda [do comunismo]”.
Isso a que chamo de planejamento prévio (porque ainda estamos em tempo de aproveitar a teia de conhecimento existente, e na premissa de que, por estas bandas, sairemos da hecatombe com pelo menos a nossa infraestrutura física intacta), SE vier a ser feito, será bastante? Óbvio que não. Diante da magnitude do colapso civilizatório e do caos dele resultante todo esse esforço poderá, na prática, não vir a fazer diferença nenhuma. Mas, em contrapartida, poderá vir a ser o “empurrãozinho” que fará toda a diferença. Simplesmente não temos como saber. Mas, diante do que está em jogo, é crucial que algo seja feito, mesmo que acabe sendo à toa se não vier a guerra (e à toa não haverá de ser, até porque poderá suceder algum outro modo de colapso já que o mundo se tornou cronicamente instável). Valho-me das palavras de Margaret Mead: “nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas conscientes e comprometidas possa mudar o mundo; em verdade, isso é a única coisa que sempre aconteceu”. A nós, cabem duas coisas: combatermos o bom combate (fazermos de coração tudo o que estiver ao nosso alcance), e termos fé (“Amanhã está toda a esperança; por menor que pareça, existe e é pra vicejar”).
Mencionei as vantagens (e a improbabilidade) de vir o Estado brasileiro a assumir essa empreitada, mas nada impede que uma ou mais entidades privadas se disponha(m) a fazê-lo. Pessoalmente estou passando por uma etapa de vida sobremaneira dura, de todo modo me coloco à disposição deixando meu e-mail para contatos: rjbnaveira@gmail.com (que é também minha chave pix, toda ajuda será bem-vinda).
Dediquei este texto a elucubrar e propor possibilidades de ação coletiva frente a um pós-guerra nuclear. Mas não gostaria de terminá-lo sem abordar possibilidades para uma ação individual, por parte de cada um. Não me refiro aqui a providências práticas; para elas, pode-se pesquisar por “sobrevivencialismo” na internet, há todo um mundo de informações por lá (com todo um jargão próprio, por exemplo, aquele que estoca comida para longos períodos é chamado “preparador de alimentos”). Ademais, o sobrevivencialismo é em geral focado na sobrevivência dos indivíduos, enquanto que eu espero ter deixado claro que qualquer sobrevivência em um mundo pós-nuclear terá de ser, até mais que uma sobrevivência das comunidades, uma sobrevivência da sociedade, ainda que sob alguma nova forma – ou juntos, ou nada.
Aos que suportaram chegar até o final deste texto, quero dizer que lamento muito os desconfortos causados por abordar um tema tão angustiante como esse. E condenso minhas orientações finais em uma única palavra – reconecte-se:
– Reconecte-se com a Natureza: no caso significa reconectar-se com a “Mãe Terra” literalmente, ou seja, com o solo, que é o provedor último da nossa subsistência. Se advier uma guerra nuclear, o pior lugar para se estar é apinhado juntamente com milhares/milhões de outras pessoas, todas elas entrando em surto ao mesmo tempo. Procure desde logo esboçar alguma rota ou roteiro de “fuga” em direção a algum lugar no interior, de preferência com baixa densidade populacional.
– Reconecte-se com os seus: as agruras de uma condição crítica de vida poderão ser melhor enfrentadas se você contar com laços afetivos sólidos com aqueles que lhe são mais valiosos. Se você por quaisquer razões da vida acabou por afastar-se de pessoas que lhe são queridas, procure-as e se abra com elas de forma íntegra e honesta, e busquem acertar os seus ponteiros. Quanto menos sozinho, melhor: reconcilie-se, porque a hora é essa (até também porque, se você ou elas acabarem por partir, você não carregará o peso de ter-se desgarrado delas em vida).
– Reconecte-se consigo próprio: para cada um, o sentido da sua vida decorre daquilo que se faz com a vida que se tem – o que obscurece o fato de que o sentido último da vida de todo mundo é tão somente o de estar vivo. Se advier uma guerra nuclear, coisas a que estamos habituados como acumular, ostentar, consumir ou buscar prazer se tornarão impraticáveis. Esteja aberto para o fato de que você, devido a continuar vivo, estará em condições de encontrar novos sentidos e significados para a sua vida – para aquilo que você passará a fazer com a vida que continuará a ter. Eventualmente, tais novos sentidos poderão ser muito mais coletivistas do que individualistas (com a coletividade voltada ao bem-estar de cada um dos seus indivíduos) – por que não? É claro que algo assim ainda estará por ser construído, então, não poderia o sentido da vida de cada um passar a ser o de como contribuir para a construção desse novo mundo, voltado ao bem comum? Estar aberto será o primeiro e mais importante passo.
A paz no mundo (e a evitação de uma guerra nuclear) certamente não estão ao seu alcance, mas a sua paz com a Natureza, com os outros e consigo próprio estão – redescubra-se.
Veja em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/havera-humanidade-apos-a-guerra-nuclear/
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