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Karl Marx, o filósofo moral

Karl Marx é frequentemente compreendido como alguém que descartou a moralidade como ideologia burguesa. Contudo, Vanessa Wills, autora do novo livro A visão ética de Marx, argumenta que sua análise da exploração de classe buscava explicar a injustiça, não marginalizá-la.

Por: Daniel Falcone | Entrevista com: Vanessa Wills | Tradução: Marcos Martim | Crédito Foto: ullstein bild via Getty Images. Retrato de Karl Marx da década de 1870.

Marx é geralmente entendido como profundamente cético, se não desdenhoso, em relação à moralidade. Acredita-se que ele considerava a sociedade capitalista, reproduzida pela dominação dos trabalhadores pelos capitalistas, uma relação coercitiva na qual questões morais sobre certo e errado mal figuram.

Em seu novo livro, a professora de filosofia da Universidade George Washington, Vanessa Wills, busca complexificar essa visão. A Visão Ética de Marx (2024) mostra que o fundador do materialismo histórico tinha opiniões nuançadas sobre o papel da moralidade na luta política. Motivada por sua própria experiência no ativismo antiguerra, impulsionada pela invasão americana ao Iraque em 2003, a obra questiona como a exploração de classe deve ser entendida em um mundo onde racismo, sexismo e outras formas de discriminação existem. Na entrevista a seguir, o jornalista e historiador Daniel Falcone conversa com Wills sobre seu novo livro.


DANIEL FALCONE

Você poderia explicar como se interessou em pensar sobre Marx a partir de uma perspectiva ética?

VANESSA WILLS

Um dos primeiros tipos de questões que realmente me interessaram foi a universalidade dos valores. Como pessoas de comunidades morais muito diferentes podem dialogar, desenvolver valores compartilhados e ter modos de vida compatíveis quando possuem visões de mundo tão distintas?

Compreender como os valores poderiam se tornar universais por meio da colaboração, do diálogo e da teorização conjunta sempre me fascinou.

Nos primeiros anos de pós-graduação, eu abordava essas questões a partir da filosofia da linguagem, pensando sobre comunidades linguísticas. O primeiro filósofo acadêmico que li anos antes foi [Ludwig] Wittgenstein, o que me direcionou por certo caminho. Eu me interessava principalmente por questões de filosofia da linguagem, mas com uma forte inclinação normativa.

Então os Estados Unidos declararam guerra ao Iraque em 2003. Percebi que não possuía o arcabouço teórico para entender como nossa liderança poderia fazer algo tão imprudente e imoral; imprudente porque parecia obviamente destinado a conduzir o mundo a mais guerras e conflitos intermináveis — o que de fato ocorreu — e imoral pelas razões evidentes. Assim, não encontrava muito que pudesse dissipar minha confusão sobre a guerra. Eu era totalmente contra e me envolvi com o ativismo antiguerra, começando a participar de protestos e logo me tornando organizadora. Passei de alguém que havia participado de apenas um ou dois protestos políticos antes da invasão para uma organizadora.

Ao começar a frequentar protestos antiguerra e me envolver nesse movimento, conheci socialistas e comecei a conversar com eles. Fiquei muito interessada no que tinham a dizer sobre o papel da classe, do poder e do materialismo. Eles falavam sobre materialismo de uma forma que ninguém havia abordado em minhas aulas de filosofia. Nos seminários, o materialismo era principalmente um argumento metafísico abstrato sobre a substância metafísica fundamental do universo, o que é bastante interessante. Mas o que interessava aos socialistas era o materialismo histórico. Eles falavam sobre como na sociedade capitalista as pessoas têm principalmente visões de mundo idealistas e tendem a pensar que as ideias em nossas mentes desempenham o papel mais importante na determinação da realidade; elas tendem, de diferentes maneiras, a pensar que conceitos abstratos são uma força motriz da realidade. Cheguei à conclusão de que o que desempenha o maior papel na formação dessas coisas é o conjunto de forças materiais e como os seres humanos interagem com seu mundo para satisfazer suas necessidades básicas.

Após a explicação, percebi o caráter idealista de grande parte do discurso dominante. Quanto à guerra, os interesses da classe dominante, da burguesia e dos capitalistas diferem muito dos meus, não havendo motivo para identificar meus interesses com os deles ou vice-versa. Já havia me afastado da filosofia da linguagem e trabalhava em metaética, que investiga o que buscamos ao fazer perguntas éticas. . Visamos descobrir fatos abstratos, eternos, universais e independentes sobre moralidade? Ou construímos socialmente o que é moral ou imoral?

Optei pelo lado normativo desses debates e perguntei aos socialistas sobre a visão marxista da ética. Recomendaram-me Their Morals and Ours, de Trotsky, que argumenta que a classe dominante tem sua moral e nós, a nossa; mas isso não me satisfez por reproduzir o mesmo dilema. . Não bastava dizer “Ótimo, essa é a moral que atende meus interesses, aquela atende os seus, vamos à luta”, embora politicamente seja isso que as pessoas fazem. Precisava conciliar essas ideias, então decidi escrever minha tese sobre Marx e ética.

DF

Qual é o propósito do seu livro? O que motivou você a escrever sobre as visões éticas de moralidade de Marx?

VW

Inicialmente, pretendia converter a tese em algo legível além de mim e minha banca! [Risos] Em certo momento, abordei o livro como um esforço para resolver definitivamente a questão de Marx e ética, mas logo percebi que isso era exatamente o tipo de abstração vazia contra a qual Marx nos adverte.

O resultado não busca ser “atemporal”, está muito fundamentado no momento atual. Tornou-se menos um tratado acadêmico — embora também o seja — e mais uma intervenção, que é o que deveria ser e o que desejo que seja — que é o propósito de fazer qualquer coisa.

O objetivo do livro é intervir nos debates acadêmicos sobre Marx e ética especificamente, sobre Marx e interpretação marxista em geral, sobre filosofia como campo e a academia, mas principalmente sobre aqueles cujas vidas são afetadas por luta política, mudança e dominação, que são quase todos. O livro se tornou muito mais uma resposta ao momento atual do que eu imaginava originalmente.

DF

O que você argumenta no livro e onde ele se encaixa na historiografia geral de Marx? O que aprendemos sobre Marx que não obtemos de outros textos?

VW

Um debate sobre Marx, do ponto de vista historiográfico, é sobre como periodizá-lo, ou se se deve periodizá-lo. Uma abordagem muito comum é dizer que há um jovem Marx, interessado em filosofia, no conceito de alienação e em questões éticas, e depois que esse lado morre, surge uma nova versão por volta da produção dos textos que se tornam A Ideologia Alemã. E das cinzas surge o velho Marx — científico, entendido como “não mais interessado em filosofia”, “não mais interessado em questões éticas ou em considerações sobre natureza humana essencial ou alienação”. Um dos meus argumentos no livro é que essa periodização está errada e que Marx é incrivelmente consistente em seus escritos. Vistos como um todo, o que vemos é Marx reunindo cada vez mais recursos para responder algumas questões de seu trabalho inicial. Isso não deve ser confundido com perda de interesse nessas questões ou desvio delas. Isso é particularmente importante se o “Marx científico” for considerado um Marx fatalista ou determinista econômico que acredita que a agência e a liberdade humanas são ilusórias, que tudo é ditado pelas leis da história. Isso me levou a outra questão frequente sobre Marx: quanto de Hegel é necessário absorver para entendê-lo? Ou quão hegeliano Marx é e permanece? Um dos argumentos centrais do meu livro é que ele é bastante hegeliano até o fim, o que tende a ser negligenciado.

DF

Em trabalhos anteriores, você discute como a ideologia racista pode ser uma forma de falsa consciência. Interesso-me em saber como podemos levar as pessoas que estudam Marx e outros pensadores revolucionários a evitar priorizar raça sobre classe ou classe sobre raça. Em sua opinião, como os dois aspectos devem ser equilibrados?

VW

Considero equivocado equiparar conceitos como classe, raça, gênero, orientação sexual e etnia, imaginando que estruturam nosso mundo social de maneira análoga. Minha perspectiva difere das discussões usuais sobre interseccionalidade. A classe distingue-se das demais categorias sociais por ser o modo concreto de organização e estruturação da produção de nosso mundo social — todos esses conceitos, incluindo classe, resultam da atividade humana. São produzidos social e historicamente, emergindo de nossa trajetória enquanto seres humanos. . Se considerarmos que os seres humanos produzem sua história e a si mesmos como seres sociais por meio do trabalho, interagindo com o mundo e entre si para satisfazer suas necessidades, então, ao indagarmos por que a sociedade é assim neste momento, devemos questionar: Como os seres humanos produziram isso?

Que aspecto tem sua atividade produtiva? Como se configura seu trabalho? Numa sociedade capitalista ou de classes, a produção social estrutura-se via classe. No capitalismo, alguns detêm os meios de produção, outros possuem apenas sua força de trabalho para vender. . Devemos partir daí para explicar como essa organização do trabalho produtivo nos ajuda a compreender o restante de nossa realidade social criada.

O capitalismo gera sexismo e racismo. Isso não significa, contudo, que em qualquer circunstância devamos focar nossa atenção exclusivamente na classe. Ao mesmo tempo, se sua casa pegasse fogo devido a um forno defeituoso, você não compraria um novo pela internet enquanto ela arde.

Determinar a prioridade causal entre dois fenômenos não dita, por si só, qual merece atenção prioritária num dado momento. Mas se desejamos um mundo onde não estejamos constantemente apagando incêndios, em algum momento precisamos diagnosticar e resolver o problema fundamental.

DF

Você enfatiza a importância do materialismo histórico como parte de uma questão ética central. Poderia dizer mais sobre como Marx pode ter visto a moralidade como uma forma de ideologia?

VW

Considero várias formas de desvelar o conceito de “ideologia” de Marx e argumento que “ideologia” em Marx é melhor compreendida como referindo-se a sistemas de pensamento que nos permitem dar sentido a um mundo social repleto de conflitos e contradições — especialmente um mundo social no qual os seres humanos estão divididos entre si na luta de classes. Ressalto que, se o surgimento do pensamento burguês foi uma conquista histórica e científica — e foi —, então é equivocado pensar que “ideologia”, mesmo a “ideologia burguesa”, é sinônimo de completas falsidades e mentiras.

Da mesma forma, mesmo a teoria da classe trabalhadora é “ideológica” em uma sociedade onde é moldada pelo antagonismo mútuo entre capitalista e trabalhador, pois não pode ser outra coisa senão a consciência desse antagonismo — um antagonismo que é, em certo sentido, “falso” porque obscurece a natureza dos seres humanos plenamente realizados em harmonia uns com os outros. Dizer que a moralidade é uma forma de ideologia é, portanto, dizer que, como forma social, ela deixaria de existir junto com a resolução dos antagonismos sociais. Mas por ora, os antagonismos permanecem, e precisamos de teoria moral, feita do ponto de vista dos trabalhadores, para ajudar a entender como poderíamos finalmente resolvê-los.

Penso que a noção de Herbert Marcuse de uma “realidade falsa” que a ideologia pode capturar com precisão é útil aqui. Ou a própria comparação de Marx da ideologia com uma câmara escura na qual o mundo é mostrado, mas de cabeça para baixo, exigindo teoria crítica se quisermos vislumbrar algum sentido do mundo por meio de nossas representações necessariamente ideológicas dele. (De fato, a ilustração na capa do meu livro é de uma câmara escura.)

DF

Aprecio como você complexifica Marx em seus escritos, pois parece que evita descartar pensadores que nem sempre demonstram estrita adesão à análise de classe. Poderia elaborar sobre a síntese Marx-Kant como exemplo?

VW

Agradeço; tentei evitar rejeições, que muitas vezes existem para lisonjear o senso de esperteza de um autor em vez de iluminar um ponto. Sobre Marx e Kant: pessoas que se envolveram com o trabalho de Marx frequentemente perguntaram se sua teoria poderia e deveria ser complementada com a moralidade kantiana. No tratamento desse debate em meu livro, aponto que isso está longe de ser um palpite irrazoável — Marx e Kant estão ligados um ao outro através da tradição do Idealismo Alemão, que questionava, entre outras coisas, se as ideias na mente de alguém poderiam representar com precisão e objetividade alguma realidade independente fora da mente.

Essa questão é especialmente premente para o pensamento moral, que obviamente não tem o mesmo tipo de correspondência com o mundo externo que, digamos, pensamentos sobre quantas vértebras uma determinada cobra tem. Para Kant, que pensava que a objetividade e a universalidade dos fatos morais poderiam ser demonstradas através — e apenas através — da razão pura abstrata, se a própria realidade é conceitual e composta de ideias, podemos ver como então se torna relativamente não problemático sugerir que a razão pura abstrata pode nos levar a pensamentos que correspondem objetivamente a um mundo externo existindo independentemente de qualquer um de nós. Se, como Marx, você pensa que a realidade é fundamentalmente material e concreta, a questão é mais difícil de resolver.

Então, muitos estudiosos pensaram, bem, talvez o materialismo de Marx precise ser “aprimorado” de alguma forma com o idealismo de Kant e aplicado ao raciocínio moral. O problema, ou pelo menos um grande problema, é que o materialismo histórico de Marx é verdadeiramente incompatível com o idealismo de Kant, especialmente no que diz respeito à explicação de Kant sobre o livre-arbítrio espontâneo, que é o objeto próprio dos julgamentos morais. A teoria de Marx não pode acomodar a noção de uma vontade totalmente indeterminada por forças materiais externas a ela. Portanto, se for verdade que Marx precisaria da adição da moralidade kantiana para desenvolver seus próprios compromissos normativos, isso seria na verdade muito pior para a teoria marxista. Felizmente, não acho que a teoria marxista precise desse tipo de “aprimoramento”, como tento mostrar em meu livro!

DF

Você poderia falar um pouco sobre Angela Davis em 1969 e como esse momento de sua vida foi um testemunho e refletiu a visão ética de Marx?

VW

Angela Davis há muito me inspira; sua vida é um testemunho tanto do bem que se pode realizar aderindo a princípios revolucionários quanto do alto preço que se pode ter de pagar para fazê-lo.

Encerro meu livro com um breve relato de sua demissão da Universidade da Califórnia por seu Conselho de Regentes macarthista, exoneração instada pelo então governador da Califórnia, Ronald Reagan. Ela jamais recuou nessa luta, nem se esquivou do chamado para se manifestar contra o imperialismo e a guerra.

Sua batalha simboliza aquele momento, mas é crucial considerar como sua coragem individual existiu num contexto de luta em massa. Era, naturalmente, membro do Partido Comunista, o que constituiu todo o pretexto para demiti-la. Ocorriam protestos estudantis contra a Guerra do Vietnã e pelos direitos de livre expressão em todo o país. Muitos docentes da UCLA, inclusive do Departamento de Filosofia, manifestaram-se em seu apoio. O fato de Davis ser uma esquerdista atacada por forças reacionárias nos anos 1960 não era singular; mas a imensa resposta em sua defesa o foi. Assim, esse momento em sua vida demonstra tanto sua própria clareza sobre o que se exigia naquele instante quanto a necessidade de luta organizada em massa para trazer ideais éticos do âmbito da teoria pura para a prática política concreta.

 

 

Publicado originalmente em: https://jacobin.com.br/2024/12/karl-marx-o-filosofo-moral/

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