Circuito na zona portuária já rivaliza com cartões-postais mais tradicionais, como Cristo Redentor, em movimento de resgate da história de uma região que foi o maior ponto de entrada de africanos escravizados no Brasil.
Por: André Marinho | Crédito Foto: Etnias Turismo e Cultura. A guia de turismo Emily Borges apresenta a um grupo o Cais do Valongo, ponto de entrada de africanos escravizados que ficou aterrado por um século
Por décadas, milhões de africanos negros escravizados desembarcaram em condições desumanas no antigo Valongo, zona portuária do Rio de Janeiro. Era o fim de uma degradante jornada transatlântica e o começo do calvário que só seria legalmente abolido no final do século 19.
Mas eram também os capítulos iniciais de uma história que tem samba, feijoada e batuque, na região que hoje é conhecida como Pequena África e se consolida na rota do turismo carioca.
Palco de tantas contradições, o passeio nem sempre é fácil para as emoções. Retrata os detalhes de uma tragédia que ainda deixa cicatrizes econômicas, sociais e urbanísticas no Brasil. Mesmo assim, o tour vem atraindo contingente cada vez maior de turistas interessados no resgate de memórias que, por muito tempo, ficaram enterradas.
Fora do eixo das famosas praias da zona sul ou do verde da Floresta da Tijuca, o território histórico já divide os holofotes com cartões-postais mais tradicionais da cidade.
O circuito entrou na lista dos dez locais do Rio mais visitados por turistas no primeiro semestre do ano passado, conforme os dados mais atualizados da Secretária Municipal de Turismo (SMTUR-Rio). Foram 354.810 visitas no período, que deram à área a nona colocação no ranking, à frente do Pão de Açúcar (12º), Jardim Botânico (14º) e Cristo Redentor (17º).
O movimento ganhou força após a Unesco reconhecer o Cais do Valongo como Patrimônio da Humanidade, em 2017. Desde então, a região se transformou em um dos principais expoentes do afroturismo, que promove um mergulho pelas raízes da história negra.
“Berço da brasilidade e negritude”
Criado em 2011 por decreto municipal, o Circuito da Herança Africana abrange o Cais do Valongo e outros pontos focais da economia escravagista.
Uma lei estadual de 2018 ampliou o escopo da Pequena África para incluir, entre outros, o remanescente da casa onde nasceu Machado de Assis, no Morro do Livramento. Também houve a adição das Docas Dom Pedro II, projetadas pelo arquiteto negro André Rebouças em 1871.
Pelo caminho, o turista encontra os badalados bares do Largo do São Francisco, o samba da Pedra do Sal e restaurantes típicos da culinária brasileira.
“É um dos berços da brasilidade e da nossa negritude”, define a historiadora Luana Ferreira, ao descrever as razões por trás da crescente popularização da Pequena África.
Há sete anos, Ferreira é uma das guias turísticas que ajudam a mudar o panorama da zona portuária. Ela recebe grupos de diversas origens que buscam mais informações sobre a experiência negra no Brasil. Muitas empresas também procuram o tour como uma ferramenta de promoção de programas internos de diversidade.
Pelas ladeiras e asfaltos dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, a excursão promove uma espécie de radiografia do legado da escravidão. Ferreira reconhece que o tema é duro, mas se esforça para mostrar que há mais do que apenas sofrimento na cultura afrobrasileira.
“Não quero que os visitantes saiam daqui depressivos, assim como não quero que romantizem a situação”, afirma. “É um passeio que emociona, mas a partir de um lugar de leveza e altivez.”
Para isso, ela percorre também aspectos centrais da identidade brasileira, como a capoeira, a religiosidade e a intelectualidade negra. Todos esses elementos tiveram naquela área da cidade um ponto de efervescência, que atravessaram gerações principalmente pelo relato oral.

Uma história enterrada
As marcas materiais dessa memória, por outro lado, foram sucessivamente descaracterizadas pela evolução do tecido urbano. No começo do século passado, as reformas do então prefeito do Rio, Pereira Passos, aterraram o Cais da Imperatriz, que havia surgido anos antes em substituição ao Cais do Valongo.
Foi só em 2011, como parte do projeto de revitalização da zona portuária, que os ancoradouros foram redescobertos em uma escavação coordenada pela antropóloga Tania Andrade de Lima, do Museu Nacional.
O resgate do porto trouxe de volta o maior vestígio material do tráfico escravista na América. O cais começou a ser construído em 1811, por ordem de Dom João 6º, que havia se mudado para o Brasil junto com toda a família real três anos antes.
As obras se arrastaram até 1821, quando a região se firma como principal núcleo do comércio escravista na passagem do Brasil Colônia para a Independência. As estimativas mais aceitas indicam que cerca de 1 milhão de africanos escravizados desembarcaram no local.
Mas é difícil estimar quanto desse contingente passou pelo cais por falta de registros formais, afirma o historiador Cláudio de Paula Honorato, coordenador de pós-graduação do Instituto Pretos Novos. Em muitos casos, eles chegavam pelas praias e já eram vendidos, sem precisar transitar pela estrutura. “O cais sozinho não é muito coisa, mas dentro desse complexo mais amplo do Valongo, ele é a representação simbólica de todo esse processo escravista que acontece naquela região”, explica.
No auge das operações, o entorno do ancoradouro tinha uma vasta infraestrutura de apoio à arquitetura escravagista. Sobrados e barracões funcionavam como lojas de compra e venda de pessoas escravizadas e de produtos de tortura. Na Gamboa, um prédio abrigava o Lazareto, onde os africanos acometidos por doenças passavam por uma quarentena em condições insalubres.
“As famílias mais ricas do Brasil controlavam esse mercado. Eles tinham dinheiro para produzir ou alugar navios, controlar as companhias de seguro, além dos mercados de secos e molhados”, afirma Honorato.

Para inglês ver
Em 1831, a edição da Lei Feijó proíbe o fluxo transatlântico de escravizados por pressão da Inglaterra. Ainda assim, o comércio – agora contrabando – continua a trazer africanos ao Brasil e dá origem à expressão “para inglês ver”. Só em 1850 que a Lei Eusébio de Queirós começa a aplicar a regra com mais rigor.
Àquela altura, o Cais do Valongo já havia sido substituído pelo Cais da Imperatriz, reformado para receber a esposa do imperador Dom Pedro 2°, a princesa Teresa Cristina, em 1843.
Nas décadas seguintes, a região é estigmatizada na imprensa, o que abre caminho para o aterramento do cais durante as reformas de Pereira Passos. Cortiços são destruídos e as pessoas mais pobres são forçadas a buscar terrenos mais desvalorizados. É nesse período que surge a primeira favela brasileira, o Morro da Providência, próximo ao porto.
Pelas batucadas do samba, os golpes da capoeira e as cantigas da umbanda e do candomblé, porém, a região consegue resistir como uma espécie de meca da cultura negra. “Houve uma tentativa de isolamento e invisibilização dessa área, mas, por conta desse mesmo processo, a região preservou sua história e sua memória”, diz Honorato. “O poder público e a sociedade em geral desconhecem essa história, mas Pequena África sempre esteve viva na memória da comunidade afrodescendente”.
Uma história resgatada
A turismóloga Emily Borges e a historiadora Bruna Cordeiro perceberam nas discussões globais sobre equidade racial uma oportunidade para resgatar essa história e transformá-las em negócio. Elas são sócias da Etnias Turismo e Cultura, com uma equipe de 20 guias que conduzem um roteiro de quatro horas pela região.

O ponto de partida é o Largo de Santa Rita, onde foi instalado o primeiro cemitério de negros escravizados do Rio. De lá, os participantes percorrem uma rota que inclui o Cais do Valongo e o Museu da História e Cultura Afrobrasileira.
No Instituto Pretos Novos, os visitantes conhecem os achados arqueológicos de outro cemitério que recebeu restos mortais de pessoas negras vindas da África. Há ainda uma parada para discutir os eventos da Revolta da Vacina, uma onda de protestos contra a obrigatoriedade da vacina contra a varíola decretada em 1904.
“Eu não consigo contar conta a história de cada pessoa negra que pisou naquele lugar, mas cada vez que eu conto uma história, eu tento trazer um pouco mais de dignidade para eles”, afirma Cordeiro.
As sócias contam que observaram um considerável aumento no interesse dos turistas pela região. Os cariocas costumam ficar surpresas com o apagamento histórico em uma área tão central da cidade, elas dizem.
Entre os estrangeiros, os americanos representam a maior parcela do público. “Eles sempre comentam que, no fundo, a história é a mesma, mas ficam chocados como temos a cultura afrobrasileira tão enraizada em todos os segmentos da sociedade”, relata Borges.
Desafios antigos persistem
Quem trabalha no turismo da Pequena África reconhece que houve investimentos públicos para potencializar os atrativos da região. As reformas para os Jogos Olímpicos de 2016 derrubaram o antigo elevado da Perimetral e construíram um passeio público.
No mês passado, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) lançou um edital para financiar três projetos liderados por arquitetos ou urbanistas negros que desenvolvam intervenções urbanísticas no Distrito Cultural Pequena África.
Apesar disso, a ascensão do polo turístico esbarra em problemas antigos. Como parte da candidatura do Cais do Valongo ao título de patrimônio mundial, o governo se comprometeu a construir um Centro de Interpretação no prédio das Docas Dom Pedro 2º, mas o projeto não saiu do papel.
No ano passado, a Justiça Federal determinou que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Fundação Cultural Palmares deveriam iniciar as obras em um prazo de 180 dias. Procurado, o Iphan informou que o projeto passou por uma revisão e agora seguirá para a fase licitatória, que viabilizará o início das obras de restauração do imóvel. O órgão, porém, não respondeu se há previsão para a conclusão do processo, nem esclareceu os motivos da demora. A Fundação Palmares não retornou os contatos da DW.

Nos arredores, há também o problema de segurança pública. É comum ver pessoas em situação de rua e há relatos de circulação de drogas, segundo as guias turísticas que conversaram com a DW. Desde 2022, a prefeitura fez mais de 2 mil apreensões na área da Pequena África, incluindo de objetos perfurocortantes e materiais destinados ao uso de droga. À reportagem, a Secretaria de Ordem Pública (Seop) do município disse realizar diariamente ações de ordenamento, desobstrução de áreas públicas e acolhimento às pessoas em situação de rua, junto com a Secretaria de Assistência Social.
Emily Borges, da Etnias Turismo e Cultura, vê ainda um processo de gentrificação que expulsa populações tradicionais que ocupavam aquele espaço. “Há cada vez mais empreendimentos imobiliários que tiram a população local dali e a joga para trás, como sempre fizeram ao longo da história”, diz.
São desafios que se repetem na história brasileira e dificultam a preservação da memória. Mas a guia turística Luana Ferreira está confiante no potencial da Pequena África para continuar resistindo. “Os africanos civilizaram o Brasil e o Rio é o grande distribuidor dessa cultura. A região do porto é a base disso”, afirma.
Publicado originalmente em: https://www.dw.com/pt-br/pequena-%C3%A1frica-p%C3%B5e-mem%C3%B3ria-negra-na-rota-do-turismo-no-rio/a-72249012
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