País se tornou maior exportador das plumas brancas. No Mato Grosso, indígenas relatam os efeitos dos venenos. Rastreabilidade da cadeia é desafio.
Por: Heloísa Traiano | Crédito Foto: jensotte/Pond5/IMAGO. O cultivo de algodão é o segundo que mais consome agrotóxicos por hectare no Brasil, atrás apenas do tabaco, elevando risco de contaminação
No cerrado mato-grossense, os povos indígenas no município de Sapezal ainda se lembram de quando eram abundantes as águas e as roças. Mas hoje eles contam que o caju do mato, o pequi e as plantas medicinais diminuíram. Chegaram novas pragas às plantações. Vários tipos de abelhas sumiram e, com elas, a diversidade de méis.
Os rios viraram cemitérios de ovos de peixe, e quem bebe arrisca sentir dor de barriga ou diarreia. As aldeias relatam que a piracema, época da reprodução natural dos peixes, sofre quando se pulverizam os agrotóxicos nas crescentes lavouras de algodão ao redor da terra indígena. E afirmam que os abortos espontâneos aumentaram entre as mulheres.
A região da Bacia do Juruena é o coração da ascendente produção brasileira de algodão. As plumas brancas são a segunda commodity que mais consome agrotóxicos por hectare de lavoura no Brasil, atrás apenas do tabaco. Substâncias tóxicas viajam longas distâncias pelos ventos, e a alta concentração exacerba os riscos de intoxicação humana e contaminação de ecossistemas.
“A gente vê vários aviões passando. Eu observo agora que, quando plantamos, as plantas não ficam legais, porque acabam sendo afetadas,” diz Cleide Terena, presidente da associação de mulheres da Terra Indígena Tirecatinga, lar de nove povos indígenas. “A gente deixou de tomar água do rio e passou a comprar da cidade, por medo de beber água envenenada.”
Produto global, efeito local
No município do Sapezal, onde vivem os indígenas que relataram à organização Operação Amazônia Nativa (Opan) sua percepção dos efeitos dos pesticidas, o consumo de agrotóxicos dividido pelo número de habitantes é de 364 litros por ano, e em dois municípios algodoeiros vizinhos ultrapassa os 600 litros anuais, segundo cálculo pesquisadores da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). No Brasil, essa conta dá cerca de 7 litros anuais.
“Os agrotóxicos usados no algodão são potencialmente mais tóxicos à saúde e ao ambiente. Além disso, são utilizados volumes elevados por hectare, e geralmente por pulverização aérea ou terrestre. Portanto, as comunidades em torno estão expostas a riscos maiores de adoecimento”, afirma Marcia Montanari, professora do Instituto de Saúde Coletiva da universidade.
No ano passado, o Brasil foi pela primeira vez o maior exportador de algodão do mundo, e é o terceiro produtor global. Cerca de 70% do algodão brasileiro vai para o mercado externo, e a estimativa é que o país produza 9 milhões de toneladas na safra 2024/2025, das quais 6,2 milhões do Mato Grosso.
Num marco zero da cadeia produtiva global, Sapezal tem a maior área algodoeira do estado e está entre os campeões do consumo de agrotóxicos no Brasil. Desde 2017, ano com os dados mais antigos disponíveis no site do Instituto de Defesa Agropecuária do Mato Grosso (Indea), o município ganhou o equivalente a 60 mil campos de futebol em plantações declaradas de algodão.
“Antes, quando a gente passava (pelos arredores da TI Tirecatinga) tinha árvores. Hoje está tudo derrubado, e só tem plantio”, continua Cleide, que viveu seus 42 anos na aldeia Serra Azul. “Só tem mato dentro do território mesmo.”
Quase sempre, o algodão é alternado com produções de soja e milho ou cercado por essas lavouras, que também estão entre as maiores consumidoras de agrotóxicos no Brasil. Cada hectare algodoeiro (ou campo de futebol) consome em média 28 litros de agrotóxicos ao ano, em comparação a 17 para a soja e 7 para o milho.
O uso exacerbado se explica pela alta suscetibilidade do algodão a pragas, inflada pela monocultura intensiva que caracteriza a produção massiva de commodities para exportação. No Brasil, o grande inimigo é o bicudo do algodoeiro, que historicamente devasta plantações e hoje registra um período de surto, tendo atingido em 2024 a maior incidência para o Mato Grosso em 12 anos.
Substâncias proibidas no Brasil
Os mais vulneráveis aos efeitos dos agrotóxicos são os trabalhadores rurais e as comunidades indígenas, que entram em contato direto com os agrotóxicos ou vivem em ecossistemas envenenados ao longo de anos. Segundo Montanari, mesmo baixas quantidades de resíduos tóxicos podem gerar danos reprodutivos, oncológicos, neurológicos e psiquiátricos em casos de exposição prolongada.
Na Bacia do Juruena, os indígenas encontram até as embalagens de agrotóxicos vazias nos rios, segundo os relatos reunidos pela Opan entre 2020 e 2021. À mesma época, oito de nove amostras de plantas medicinais e frutas, colhidas na Terra Indígena Tirecatinga e analisadas no âmbito de um projeto entre a UFMT e a Opan, tinham resíduos de onze agrotóxicos.

“A soberania alimentar e o modelo de sociedade do povo indígena são também afetados”, diz a indigenista Adriana Werneck Regina, co-pesquisadora do projeto. Ela há três décadas registra os relatos de indígenas sobre os impactos do agronegócio na região.
Os cientistas ainda encontraram amostras de algodão, material hospitalar, ataduras, gases, fraldas, absorventes íntimos, tecido de algodão cru e coadores de café contaminados por 28 tipos de agrotóxicos. Dezessete são proibidos na União Europeia (UE), e dois no Brasil – o carbofurano e o carbendazim, associados aos riscos de câncer, problemas neurológicos e má formação de fetos.
Entre 2019 e 2024, houve quase 1,5 mil intoxicações registradas no estado pelo Ministério da Saúde, das quais 45% por agrotóxicos de uso agrícola – entre elas, 3% ligadas à lavoura de algodão.
No entanto, especialistas avaliam que há grande subnotificação dos efeitos adversos à saúde, para a qual contribuem o medo de represálias, legislações frouxas e falta de controle sobre pulverizações aéreas.
“Há grande insuficiência na fiscalização”, diz o procurador Gabriel Martins, do Ministério Público Federal no Mato Grosso (MPF-MT), que recebeu os dados de intoxicações fornecidos pelo Ministério da Saúde. “Vemos uma preocupação quase nula dos produtores e muito baixa da União, do governo estadual e dos municípios, que querem mais produção.”
Soluções da lavoura à vitrine
Outra deficiência está na rastreabilidade de uma cadeia produtiva global e fragmentada. O algodão brasileiro encontra seus principais mercados em China, Vietnã, Bangladesh, Turquia e Paquistão, onde se confeccionam tecidos para lojas de moda no mundo todo, desde o fast fashion até lojas de luxo.
Publicado originalmente em: https://www.dw.com/pt-br/algod%C3%A3o-brasileiro-chega-a-p%C3%B3dio-exportador-com-agrot%C3%B3xicos/a-72440034