Dossiê inédito da USP joga luz sobre o problema. Por que violência se interiorizou. Como o PCC controlou-os em SP. Que levou à “aceitação” das milícias. A juventude negra, acossada entre o crime, a violência policial e o apartheid das periferias
Por Bruno Paes Manso e Luís Felipe Zilli | Imagem: Pedro Franz
A violência letal, intencional e armada tem sido um dos grandes desafios políticos para as instituições democráticas no contexto atual do Brasil urbano. Mais do que meramente um problema de segurança pública, a concentração de homicídios em alguns territórios metropolitanos ajuda a localizar, no mapa brasileiro, a ação de grupos armados e o domínio que exercem sobre bairros ou conjuntos de favelas, submetendo a população local aos seus próprios interesses. Seja pela constante ameaça ou mesmo pelo uso concreto da violência, tais grupos controlam diversos tipos de negócios legais e ilegais nesses territórios, garantindo lucros elevados para a sustentação e expansão de suas atividades, corroendo a institucionalidade democrática em nível local e apelando para a flexibilização do monopólio legítimo da força pelo Estado.
Essas disputas violentas pelo poder nos territórios possuem características em comum nos diversos estados do Brasil, assim como especificidades locais. Os próprios grupos podem ser mais ou menos estruturados, com ou sem comandos ou hierarquias; podem se financiar pela venda de drogas e outros tipos de atividades criminosas, bem como ter maior ou menor interface com negócios legais; podem ter participação de policiais ou funcionar como grupos paramilitares, bem como ter maior ou menor ligação com dinâmicas próprias do sistema penitenciário.
Nos territórios onde exercem ou disputam o poder com os rivais, porém, o resultado é parecido: esses grupos acabam impondo o silêncio forçado aos moradores, que precisam se conformar a viver rotinas de tiroteios e de corpos amanhecidos nas ruas, como se seus bairros estivessem fadados a seguir sob uma sombra eterna, inalcançados pelo Estado de direito e pela Justiça.
Quando esses grupos são mais bem estruturados, como ocorre no Rio de Janeiro, tendem a funcionar como uma espécie de governo territorial ilegal, assumindo o monopólio do uso da força em seus territórios e desenvolvendo com a população uma relação ao mesmo tempo tirânica, paternalista e clientelista. Na capital fluminense, nas centenas de bairros controlados pelas facções criminosas – Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos e os grupos paramilitares – o poder político tende a ser medido pela quantidade de fuzis que tais grupos têm para se defender. A rotina da cidade e do estado acaba dependendo das estratégias de ação desses grupos, com cotidianos de tiroteio ou calmaria dependendo da disputa do dia.
Nas cidades onde esses grupos são menos estruturados, a situação pode ser ainda mais dramática: as rivalidades e conflitos difusos passam a definir o cotidiano de determinados bairros. A disposição para matar e se tornar autoridade soberana no território provoca reações violentas, incentivando o surgimento de grupos rivais prontos a se antecipar e a matar antes de morrer, travando disputas que muitas vezes duram anos a fio. Essa tensão incentiva jovens a se armar e a se aliar a colegas para se defenderem, alimentando ciclos incessantes de vinganças que multiplicam as pessoas e grupos dispostos a ingressar nos conflitos.
Em diversas ocasiões, as forças policiais, que deveriam agir estrategicamente para identificar e impedir a ação dos candidatos a tiranos dos territórios, acabam atuando como mais um grupo a usar da violência na disputa pelo poder local. Adotando mentalidade de gangues, agentes públicos jogam gasolina na fogueira ao emularem a lógica da guerra contra o crime, contribuindo ainda mais para fragilizar a legitimidade das instituições que deveriam representar. Em vez do fortalecimento do Estado de direito nesses territórios, crescem os homicídios interpessoais no Brasil e aumentam as mortes promovidas por policiais durante o trabalho.
Nesse contexto, o elevado número de homicídios em determinados territórios das cidades brasileiras acaba funcionando como um termômetro para identificar o grau de fragilidade das instituições democráticas em nível local, sobretudo em sua pretensão de garantir direitos aos moradores. Nos locais onde o Estado é incapaz de preservar a vida e outros direitos civis, homens armados se fortalecem como autoridades, tendo a prerrogativa do uso da violência – até mesmo letal – para beneficiar seus interesses e negócios de grupo.
Esse olhar nacional e regional sobre o problema dos homicídios no Brasil, proposto neste número da Revista USP, busca explicar, qualitativamente, como esse fenômeno passou a se espraiar de norte a sul pelo Brasil, principalmente depois dos anos 1980. Este dossiê também tenta ajudar a refletir sobre maneiras de reverter esse quadro de violência e o processo de fragilização do monopólio da força pelo Estado.
Apesar de ter alcançado cidades de todas as regiões do país, as mortes intencionais praticadas por homens armados se concentram no espaço e atingem de maneira desproporcionalmente alta certos grupos sociais. Um levantamento feito em 2017, por exemplo, mostrou que mais da metade dos homicídios registrados naquele ano no Brasil ocorreram em apenas 2% dos municípios do país. Quando a lupa se fecha sobre essas cidades, a concentração volta a ocorrer nos bairros mais pobres e menos urbanizados. Fechando ainda mais o foco sobre os bairros violentos, o problema se volta para um grupo populacional específico: homens, negros, com menos de 25 anos. São os integrantes desse segmento os que mais matam e os que mais morrem.
A violência e a ação desses grupos diversos cresceram ao longo dos anos, impulsionadas pelas oportunidades de lucro elevado oferecidas em uma ampla carteira de negócios que mistura, de maneira fluida, atuação em segmentos legais e ilegais. Podem ser, por exemplo, a venda varejista de drogas; o roubo de cargas e a venda dessas mercadorias para supermercados; o controle de linhas de transporte público clandestino; o roubo de bancos ou carros; a grilagem de terras e a construção de imóveis em áreas ocupadas, entre outros.
A partir dos anos 2000, grupos paramilitares e policiais passaram a disputar esses negócios locais, extorquindo moradores, comerciantes e estabelecendo monopólios sobre uma série de mercados, obrigando a população dessas áreas a comprar, dos integrantes das quadrilhas, serviços e produtos de péssima qualidade, a preços extorsivos. Em um primeiro momento, a tolerância social com a violência policial criou contextos férteis para o surgimento e fortalecimento de grupos milicianos no Rio de Janeiro – a licença informal para matar fez com que os agentes públicos enriquecessem explorando esta mercadoria política em seus territórios de atuação. Mais recentemente, as milícias se tornaram um modelo promissor de negócio, seduzindo policiais que integram corporações cada vez mais violentas e sem controle em outros estados do Brasil.
Por outro lado, em territórios historicamente violentos, mas nos quais os processos de estruturação de atividades criminosas ainda não atingiram patamares tão organizados, tende a se consolidar um contexto de escolhas violentas para resolução de conflitos entre moradores, tornando os homicídios um acontecimento cotidiano e naturalizado. A rotina de corpos no meio da rua, tiroteios frequentes, enterros aos finais de semana, amigos mortos etc. passam a mensagem de que aqueles espaços são regidos pela lei do mais forte, onde sobrevivem os jovens com mais apetite para o confronto e maior quantidade de aliados. Ter aliados fortes para se sentir menos vulnerável se torna um caminho sedutor. Iniciadas as disputas, contudo, aquele que matou fica fadado a ser justiçado pelos amigos e parentes da vítima, promovendo um processo autodestrutivo em que os homicidas de hoje acabam se tornando as vítimas de amanhã. Com o tempo, as dinâmicas de violência que se estabelecem nos bairros violentos das cidades fazem rodar uma engrenagem das vinganças coletivas, gerando um efeito multiplicador dos assassinatos e transformando os homicídios num hábito cada vez mais banal e recorrente, passível de ser corriqueiramente utilizado na mediação de inúmeros conflitos (1).
Bairros urbanos tragados por esses ciclos de violência entre jovens se tornam os famosos hotspots da violência (manchas vermelhas nos mapas criminais das cidades, em função de sua elevada concentração de assassinatos). Por meio dessa forma de visualização do problema, é possível verificar, dentro do território de uma mesma cidade, a existência de profundos contrastes: nos territórios de hotspots, homens jovens e negros passam a morrer por homicídios a taxas de centenas de casos para cada grupo de 100 mil habitantes; já em outras áreas do mesmo município, grupos menos vulneráveis e menos visados morrem a taxas comparáveis a cidades europeias, em países pacificados – uma ou duas mortes para cada grupo de 100 mil habitantes.
A forma como tais dinâmicas se desenvolvem em cada estado brasileiro depende da história social, econômica e política desses lugares: o processo de ocupação dos bairros, como os moradores se articularam politicamente nos territórios, como e quando ocorreu a ascensão das atividades ilegais e informais, a forma de atuação da polícia e da Justiça, o sistema prisional, entre outras especificidades. A própria história da transformação dos mercados ilegais e criminais tem papel relevante. Nos últimos anos, muitas das cenas criminais de diversos estados brasileiros tiveram suas histórias cruzadas pela trajetória das gangues criminais forjadas em São Paulo e no Rio de Janeiro, a partir do momento em que esses grupos se nacionalizaram e passaram a distribuir drogas no mercado atacadista e a fazer alianças prisionais com coletivos locais.
O caso de São Paulo é emblemático nesse sentido: nos anos 80 e 90, o estado estava consolidado entre os mais violentos do Brasil, com uma trajetória de praticamente quatro décadas seguidas de aumento de suas taxas de homicídios, decorrentes de conflitos entre grupos armados de jovens em bairros de sua periferia – principalmente na região metropolitana. Eram pequenos coletivos, envolvidos em longos processos de vingança autodestrutivos e suicidas.
Em 1993, o surgimento da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) e sua rápida disseminação pelos presídios do estado fortaleceram nas periferias paulistas o discurso de união do crime. Com o tempo, o grupo começou a funcionar como uma agência reguladora do mercado criminal, estabelecendo protocolos e regras que ajudaram a profissionalizar uma extensa rede horizontal de criminosos, repactuando o convívio entre antigos rivais, num tipo de mediação que beneficiou os participantes dessa carreira. As rivalidades entre pequenos grupos e as vinganças estavam proibidas.
A mediação e as novas normas definidas pelo PCC para os integrantes da carreira criminal ajudaram a diminuir os custos dos conflitos, aumentando a previsibilidade e os lucros do negócio para todos. O maior profissionalismo permitiu ao PCC acessar os canais atacadistas de fornecimento de drogas nas fronteiras com a América do Sul, melhorando a distribuição da mercadoria para os pontos varejistas espalhados pelo Brasil. O grupo também contribuiu para acirrar a corrida armamentista nos territórios e para o aumento da distribuição de armas de fogo nesses bairros.
Como resultado, ao longo dos últimos 20 anos, ao mesmo tempo em que a cena criminal de São Paulo aumentava os ganhos financeiros de seus integrantes por meio da normatização dos mercados e controle da violência, contribuía também para transformar o estado paulista no menos violento entre as 27 unidades federativas do Brasil. Por outro lado, enquanto a violência caía rapidamente em São Paulo, a rivalidade em outros mercados de drogas brasileiros se acirrava.
Com mais armas, mais mercadorias e a disposição para assumir as vendas varejistas nos territórios, diversos estados – principalmente nas regiões Norte e Nordeste do Brasil – viram suas taxas de homicídio crescer, com pequenas gangues disputando, de forma violenta, o poder em favelas e bairros pobres de periferia – semelhante ao que ocorria em São Paulo nas décadas de 80 e 90. Esses grupos, assim como em São Paulo, também estavam articulados com novas gangues surgidas nos presídios de diversos estados.
Assim como ocorria na São Paulo de antes do PCC, essas disputas de poder entre pequenos grupos promoveram ciclos de vinganças e homicídios como um instrumento para resolução de conflitos. Como resultado, estados que nos anos 80 e 90 eram considerados pouco violentos, como Rio Grande do Norte, Ceará, Bahia, Sergipe, viram, em poucos anos, suas taxas de homicídio aumentarem exponencialmente. O papel dos presídios nessa articulação das novas gangues estaduais também foi decisivo. A nova cena criminal e prisional foi levada ao conhecimento do grande público em 2017, quando estouraram três rebeliões no Amazonas, Rio Grande do Norte e Roraima, com quase 200 mortes filmadas pelos próprios presos. Depois desses conflitos, o ano de 2017 se encerraria como o mais violento da história brasileira.
Como reação a esse novo cenário, as polícias estaduais, pouco preparadas para lidar com o desafio, também partiram para o confronto nos territórios pobres. Como se disputassem com as gangues criminosas, reproduziram muitas das táticas violentas de extermínio usadas pelas próprias quadrilhas, acirrando ainda mais os contextos de violência. Os excessos praticados pela área de segurança pública no Brasil podem ser constatados nos números crescentes de homicídios praticados pelas polícias nos estados. Nos últimos três anos, as forças de segurança mataram, oficialmente, mais de 6 mil pessoas, batendo recordes sucessivos. A polícia paulista, que seguiu com elevadas taxas de mortes praticadas por policiais em serviço, passou a figurar entre a metade menos violenta das corporações policiais do Brasil, o que mostra que o crescimento do crime e da violência nos outros estados foi acompanhado dos velhos erros das políticas de segurança e pelo descontrole pelos governos sobre a ação de suas forças armadas.
Nas próximas páginas, esta edição sobre segurança pública da Revista USP pretende detalhar melhor este quadro de variação das taxas de homicídios nas cinco regiões brasileiras.
O primeiro texto, de autoria de Maria Fernanda Tourinho Peres (USP), Mariana Thorstensen Possas (UFBA), Ana Clara Rebouças de Carvalho (UFBA), Fernanda Lopes Regina (USP) e Maíne Souza (UFBA), aborda o quadro nacional e se detém na comparação da cena de dois estados com realidades distintas: São Paulo e Bahia. O artigo mostra como o Brasil, desde a década de 1980, verificou um crescimento constante de suas taxas de homicídios, atingindo o pico em 2017 e vivendo por 30 anos um estado de violência letal endêmica, que afeta especialmente a juventude negra e pobre, sem conseguir produzir uma compreensão minimamente razoável do problema e, consequentemente, uma reação política à altura.
No texto seguinte, Anderson Alexandre Ferreira e Cleber da Silva Lopes (ambos da UEL) analisam os processos que produzem dinâmicas homicidas ascendentes em territórios marcados por conflitos entre gangues, em um território periférico do município de Cambé, Paraná, ao longo de 15 anos (1991 a 2006). O terceiro artigo, por sua vez, de autoria de Juliana Melo (UFRN) e Luiz Fábio S. Paiva (UFC), descreve como a consolidação e a expansão de facções criminosas em dois estados do Nordeste (Ceará e Rio Grande do Norte) não apenas atualizaram as relações criminais dentro e fora das prisões, mas também projetaram efeitos sobre as dinâmicas criminais em territórios de suas capitais.
O quarto artigo deste dossiê, de autoria de Aiala Colares de Oliveira Couto (UFPA), analisa a cartografia dos homicídios em Belém a partir da sobreposição de dinâmicas criminais nos territórios envolvendo narcotraficantes, milicianos e outras variadas formas de conflitos urbanos. No quinto texto, Marco Aurélio Borges Costa (UFES) e Rafael L. S. Rocha (UFMG) discutem as dinâmicas da letalidade violenta, sobretudo entre jovens, nos estados do Espírito Santo e Minas Gerais, abordando a redução das mortes violentas intencionais nos dois estados na última década, bem como a influência, ainda pontual, das facções criminais oriundas do Rio de Janeiro e São Paulo, com maior centralidade nas dinâmicas locais de rivalidades violentas e conflitos armados, e o intenso aumento da letalidade policial nos territórios mineiro e capixaba.
Para fechar, Giovanni França (UFMS) analisa o envolvimento de jovens com a criminalidade no estado de Mato Grosso do Sul (MS), demonstrando como a expansão do narcotráfico em todas as regiões do estado e os conflitos entre as duas principais facções criminosas do Brasil pela disputa da hegemonia atacadista de drogas e armas na fronteira incidiram diretamente no recrutamento de jovens e no número de encarceramentos no estado.
(1) Claro que nem todos os homicídios decorrem dessas disputas violentas pelo poder territorial. Os feminicídios e os roubos seguidos de mortes, por exemplo, têm lógica distinta.
Veja em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/investigacao-sobre-o-homicidio-chagabrasileira/
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