Nos primeiros meses do ano escolar, já é possível notar indícios de melhora na atenção de estudantes. Mas foi só o primeiro passo: combater a dependência de jovens em smartphones e a redução da sociabilidade depende também da regulação das redes sociais
Por: Gabriel Brito | Crédito Foto: EBC
Dispersão, desconcentração, música nos fones de ouvido, troca de mensagens e likes em rede social, jogos online, bets, bullying. Cenas que se tornaram comuns no cotidiano escolar brasileiro há alguns anos. Em resumo, os smartphones e todo seu universo de interações virtuais invadiram o processo formativo de uma geração de adultos que terão de encarar um mundo cujas dinâmicas estão em transformação.
Esta breve descrição de uma sala de aula qualquer sintetiza alguns dos motivos que levaram o governo brasileiro a editar a lei 15.100/25, sancionada em janeiro pelo presidente Lula, que proibiu o uso de celulares e outros dispositivos digitais em todas as escolas do país. Antes do governo federal, a prefeitura do Rio de Janeiro já tinha editado lei semelhante, reconhecida pelo Ministério da Educação como importante referencial. Movimentos similares têm sido ensaiados em outros países e novas leis de teor associado seguem em tramitação.
“Não estou dizendo que concordo com a lei, eu concordo com a necessidade dela. A escola, em geral, não deu conta de achar um equilíbrio para o uso desse equipamento de forma que ele pudesse colaborar. Não encontramos um caminho, essa é a grande verdade”, analisou Hélida Lança, professora da rede pública de São Paulo e pesquisadora, em entrevista ao Outra Saúde.
A análise de Hélida reconhece a importância da ação do Estado, mas obriga a reflexões mais amplas. A gravidade do problema era flagrante — algo que, na visão de muitos educadores, foi potencializado pela pandemia, quando o fechamento das escolas fez os governos tomarem a irrefletida decisão de manter o calendário escolar online, num caótico e excludente processo de ensino a distância, cujo acesso só poderia ser feito pelos dispositivos eletrônicos. De todo modo, como explicam especialistas ouvidos por este boletim, a situação era alarmante.
“Hoje existem muitas pesquisas que mostram que excesso de tempo no celular, no tablet ou mesmo no computador, produz ansiedade, uma certa evitação de contato social, expõe crianças e jovens a conteúdos inadequados…”, explicou Ângela Soligo, psicóloga e professora aposentada da Faculdade de Educação da Unicamp.
De encontro à visão de Hélida, ela apoia a legislação e afirma que os celulares jamais foram uma contribuição técnica para a melhoria do ensino e da dinâmica de aprendizagem. A seu ver, nem sequer a justificativa de sua utilidade para questões de emergência pessoal e familiar se sustenta, uma vez que cabe à escola tal responsabilidade, como sempre foi.
Outro fator costumeiramente utilizado na justificação dos aparelhos celulares acusa a escola de ser um ambiente ultrapassado e pouco atrativo para os estudantes. Tal ideia foi largamente utilizada por setores liberais na construção da reforma do Novo Ensino Médio no governo Temer, que reduziu a carga horária de disciplinas obrigatórias, e colocou temas externos ao ensino generalista dentro de salas de aula. Assuntos desprovidos de qualquer método científico como “empreendedorismo” e mesmo instruções para se tornar influencer foram jogados para dentro das salas de aula pelo mesmo Estado que agora precisa reduzir danos.
“É uma bobagem dizer que a escola não acompanha a evolução tecnológica. O que a escola tem de fazer, e o MEC corretamente fez, é dizer quais tecnologias são adequadas e em que momento”, acrescentou Ângela, autora de premiados trabalhos sobre discriminações em ambiente escolar, a exemplo do relatório Violência e Preconceitos na Escola, vasto estudo conduzido por universidades federais das cinco regiões do Brasil.
“Não se pode romantizar a escola como um lugar que vai ser agradável, feliz e alegre o tempo todo. Isso não existe, porque aprender requer algum esforço. Claro que a escola tem que ter momentos de leveza, de distração, de entretenimento. Mas não pode ser o tempo todo assim. Tem momento de por o traseiro na cadeira e dizer, ‘bom, agora eu vou me esforçar aqui para entender isso’”, explicou Hélida Lança.
Consumismo e consequências em saúde
Outro aspecto decisivo na aprovação da lei foi a explosão de transtornos relacionados à saúde mental, atribuído em grande medida ao acesso irrestrito ao mundo digital. Segundo o Ministério da Saúde, de 2014 a 2024, o número de atendimentos relacionados à questão mais que decuplicou no SUS entre jovens de 10 a 19 anos.
“A lei está correta e a regulação das redes é necessária. Não podemos ter um acesso irrestrito a conteúdo sem critérios, estimulando um consumismo por parte desses jovens, o que desenvolve diversos comportamentos, como ansiedade e depressão. Neste sentido, a regulação das redes sociais também é necessária. Não pode ser tudo pelo lucro”, afirmou Evelyn Eisenstein, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Para as fontes ouvidas pelo boletim, a legislação sozinha não resolverá todos os problemas, inseridos dentro de um contexto mais amplo que o espaço escolar, mas são um primeiro passo de todo um processo de reeducação da sociedade.
“As iniciativas precisam acontecer e, em geral, acontecem uma de cada vez. Portanto, não podemos diminuir a importância da lei. É que, isoladamente, não tem força como gostaríamos. Hoje, lidamos dentro da escola com crianças e adolescentes que são filhos de uma geração que já está absolutamente cooptada pela tecnologia digital individual”, aponta Hélida Lança.
Em sua entrevista, ela também diretora de uma escola infantil, relata casos clínicos de dependência de telas até em crianças menores de 10 anos, grupo que têm menor acesso aos smartphones do que adolescentes de ensino fundamental e médio. Além disso, conta que os próprios pais permitem o uso das redes sociais, inclusive de forma contrária às exigências de idade mínima para se ter uma conta pessoal em plataformas como Instagram.
“Precisamos da participação dos pais, inclusive no afeto, no amor, no desenvolvimento de experiências ao lado dos filhos. Isso significa que os pais também devem se desconectar dos aparelhos. As cidades devem ser amigáveis com os jovens, precisamos de espaços de passeio, lazer, prática esportiva, enfim, atividades offline que não sejam mediadas pelo consumo”, corrobora Evelyn.
Como explicam as especialistas, a lei 15.100/25 foi só uma primeira reação a um quadro muito mais profundo. Em primeiro lugar, a dependência de jovens continua evidente no dia a dia, em especial fora do ambiente escolar. Para isso, contribui decisivamente a completa irresponsabilidade das grandes plataformas digitais, as chamadas Big Techs, na regulação dos conteúdos veiculados em seus espaços. No YouTube, é possível se deparar há anos com perfis infantis seguidos por milhões de pessoas.
“A saúde mental não é só uma questão do indivíduo, é uma questão coletiva. Não pode, por exemplo, de repente, um grupo criminoso arrebanhar um adolescente para jogar bomba no show da Lady Gaga, e isso aconteceu, não é? Hoje, eles precisam ser protegidos nessas redes, porque isso é banditismo. Propagar racismo é banditismo”, exemplificou Ângela Soligo.
Ela completa: “Somos uma sociedade enlouquecida pelo consumismo, a produtividade, a pressa. E essa sociedade adoece as nossas crianças e adolescentes. Ficar só olhando tela é limitador. Criança precisa de ação, brincar, rir, precisa de outras crianças, criar, imaginar, inventar. Não é olhando tela que isso vai acontecer”.
Dessa forma, os desafios continuam na ordem dia. Em abril, a SBP lançou a campanha “Menos jogos perigosos, mais saúde”, que visa conscientizar o público sobre os perigos dessas atividades online, promovidas em comunidades virtuais pouco notadas e que se tornam um bizarro ambiente de socialização e autoafirmação. Trata-se, a partir do incentivo de influenciadores, da prática de ações que visam alguma forma de “superação” do participante, como ingerir produtos perigosos ou se automutilar.
“Crianças e adolescentes são naturalmente curiosos e também influenciáveis. Estão em fase de desenvolvimento físico e cognitivo, seus órgãos, inclusive o cérebro, estão neste processo, o que significa que sua capacidade de refletir sobre uma determinada experiência ainda está em construção. Por isso se tornam um público vulnerável a esta dinâmica de jogos e desafios online”, explica Evelyn.
São ao menos 56 mortes de crianças e adolescentes relacionadas a tais atividades, de acordo com dados oficiais. Duas delas ocorreram num espaço curto de tempo neste ano, no Distrito Federal, o que deflagrou a retomada da campanha pela SBP, que já a tinha realizado em anos anteriores.
Primeiros resultados
De forma geral, a experiência de coibir o uso de celulares em escolas é recente. Não há estudos sistematizados a confirmar mudanças de comportamento em contingentes relevantes.
“Já temos relatos de que houve diminuição de bullying, os alunos estão descobrindo novas formas de convívio, estão abrindo espaço para sua criatividade, além da própria capacidade de atenção em sala de aula ser beneficiada”, contou Evelyn.
Com uma crítica mais reflexiva, Hélida pondera os primeiros impactos, e reflete sobre todo um modo de vida que segue a orientar a população. “A socialização continua comprometida, porque é muito comum dar um passeio no pátio e ver que eles estão lá com a cara na tela. A vida de smartphone nos levou a um outro modelo de comportamento individualizado, com interações virtuais que nem sempre refletem a verdade… A tal da vida instagramável. Isso não é um problema escolar, é um problema social”.
Em nota enviada ao Outra Saúde, o MEC reconhece a incipiência do processo, mas afirma que os primeiros indícios são positivos. “Muitos estudantes relatam aumento da atenção e redução das distrações em sala de aula, melhoria na convivência e até maior engajamento nas atividades escolares. Em reunião realizada em 1º de abril com jovens estudantes de diferentes regiões do país, foram destacados benefícios como: maior foco e concentração durante as aulas; melhoria na qualidade das interações sociais durante os intervalos; mais tempo e organização para realizar atividades em sala; fortalecimento da convivência e das relações interpessoais”, relatou o ministério.
Publicado originalmente em: https://outraspalavras.net/outrasaude/como-estao-as-escolas-sem-celulares/