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Franco Berardi, filósofo italiano: ”Assistiremos ao colapso final da ordem econômica global”

O autor do livro “A Fábrica de Infelicidade” acredita que este fim do ciclo “pode abrir a porta para um inferno político e militar essencialmente caótico. O caos é o verdadeiro dominador da era pandêmica”. Também fala sobre vacinas, meio ambiente, virtualidade e laços humanos afundados em uma “epidemia de solidão”

Por María Daniela Yaccar

“Estamos em um limiar que pode durar anos”, diz Franco “Bifo” Berardi, escritor, filósofo e ativista italiano. Ele analisa o cenário atual do mundo e antevê alternativas. “O caos é o dominador da época” acredita o acadêmico, que também assegura que estamos vendo “um colapso final da ordem econômica global”, e que “uma implantação de comunidades autônomas centradas na igualdade é possível”.

“Não acredite no poder do Estado. O verdadeiro poder está no capitalismo”, acredita Berardi, que comenta vários tópicos relacionado à pandemia: vacina, meio ambiente, virtualidade, laços humanos desfeitos e o que chama de “epidemia de solidão”.

Na quarentena, Bifo escreveu um texto muito original e literário denominado “Crônica da Psicodeflação”, que contém uma definição do coronavírus: “vírus semiótico, fixação psicótica, que se prolifera no corpo estressado da humanidade global, e que bloqueou o funcionamento abstrato da economia”. Está disponível no site da editora Caja Negra, que também publicou os livros “Futurabilidade” e “Fenomenologia do fim”. Mais tarde, Bifo escreveu “Além do Colapso”. O escritor nasceu em Bolonha, em 1949. Participou das revoltas juvenis de 1968, foi amigo de Félix Guattari, frequentava aulas de Foucault. Fundou revistas, criou rádios alternativas e canais de tevê comunitária. Um de seus livros mais destacados são “A Fábrica da Infelicidade”. Atualmente é professor de História Social da Mídia na Academia Brera, Em Milão.

Pergunta: Com o coronavírus, a filosofia permaneceu no centro da discussão. Qual é a sua missão nesta pandemia?

Franco Berardi: É assim há milhares de anos. Compreender, conceber, organizar o pensamento coletivo. O filósofo tenta transformar o que percebemos na experiência comum em conceitos que iluminam o caminho. É muito simples, mas talvez o exercício se torne problemático. Se o que entendemos da realidade implica que não há saída ética, política ou científica de uma situação, se a imaginação filosófica não consegue imaginar outra saída que a barbárie, outro horizonte que a extinção, o trabalho torna-se muito árduo. Temos que reconhecer e contar o que parece inevitável do ponto de vista do entendimento, mas ao mesmo tempo sempre lembrar que talvez o imprevisto subverta os planos do inevitável. Essa é a missão da filosofia: imaginar o imprevisível, produzi-lo, provocá-lo, organizá-lo.

Pergunta: Em “Além do colapso”, você propõe dois cenários, e diz que “o que restar do poder capitalista tentará impor um sistema de controle tecno-totalitário. Mas a alternativa está aqui agora, em uma sociedade livre das compulsões da acumulação e do crescimento econômico”. Como uma alternativa poderia ser construída?

Berardi: As consequências atuais da pandemia e do bloqueio (confinamento) são muito contraditórias. Existem tendências divergentes, até opostas, na esfera econômica, a do poder. Por um lado, assistimos ao colapso dos nós estruturais da economia. O colapso da demanda, do consumo, uma deflação de longo prazo que alimenta a crise da produção e do desemprego, em uma espiral que podemos definir como uma depressão, mas é mais do que uma depressão econômica. É o fim do modelo capitalista, a explosão de muitos conceitos e estruturas que mantêm as sociedades unidas. Ao mesmo tempo, assistimos ao enorme fortalecimento do capitalismo das plataformas e das empresas digitais como um todo. A relação entre o sistema financeiro e o colapso da economia produtiva parece incompreensível: Wall Street confirma sua tendência positiva, quase triunfante. Existe uma enorme bolha econômica que pode estourar em um futuro próximo? Ou, ao contrário, isso significa que a abstração financeira se tornou totalmente independente da realidade da economia social? Acredito que no próximo ano testemunharemos o colapso final da ordem econômica global, que pode abrir a porta para um inferno político e militar essencialmente caótico. O caos é o verdadeiro dominador da era pandêmica. Um caos que o capitalismo não pode subjugar. Não há alternativa política visível no futuro próximo. Existem motins. Haverá mais motins. Mas nenhuma estratégia política unificadora pode ser imaginada.

Pergunta: Você escreveu que a igualdade, “destruída no imaginário político nos últimos 40 anos”, pode ganhar destaque. Essa ideia não contrasta com o que está acontecendo aqui e agora? O vírus aprofundou a pobreza, o desemprego, a desigualdade.

Berardi: Na situação caótica que pode se desenrolar, irão proliferar comunidades autônomas, experimentos igualitários de sobrevivência. É claro que hoje existe uma tentativa das forças empresariais, da máfia, dos neoliberais de se apoderar o máximo possível da riqueza social, dos recursos físicos e monetários. Mas isso não vai estabilizar nada. Todas as medidas de estabilização que as forças políticas do governo estão tentando na Europa como em qualquer outro lugar não podem estabilizar nada a longo prazo. O crescimento não retornará amanhã ou nunca. A ecosfera da Terra não o permitirá; e já não está permitindo isso. A demanda não vai aumentar, não só porque os salários estão diminuindo, mas também porque a crise causada pelo vírus não é apenas econômica. É essencialmente psicológica, mental. E uma crise de esperanças com o futuro. Nessa situação, temos que imaginar formas de vida pós-economia autônoma, de autoprodução do necessário, de autodefesa armada contra o poder, de coordenação computacional global.

Pergunta: O que você acha que essa pandemia significa para a ordem geopolítica mundial?

Berardi: O caos assume o lugar de comando. Não existe objetivamente. Haverá caos, pois os eventos que dizem respeito à nossa existência são muito complexos, rápidos, intensos para uma elaboração emocional e consciente. O vírus, invisível e ingovernável, levou ao caos a um nível definitivo. Não posso prever os pontos em que o colapso produzirá efeitos mais notáveis. O que me parece muito provável é um processo de guerra civil nos Estados Unidos. De acordo com um artigo publicado no Dallas News há poucos dias, não haverá guerra civil, mas uma situação caótica de terror permanente. Os cidadãos americanos continuam comprando armas de fogo, embora já exista mais de uma arma para cada cidadão, incluindo filhos e avós. O trumpismo não foi uma insanidade provisória. É a expressão da alma branca de um país que nasceu e prosperou graças ao genocídio, deportação, escravidão em massa. Os efeitos globais da desintegração dos Estados Unidos não podem ser previstos.

Pergunta: Quando aparecer a vacina, você acha que a humanidade vai relaxar e os danos ecológicos vão se aprofundar novamente ou a relação com o meio ambiente será repensada? Existe risco de vida em estado de pandemia permanente?

Berardi: Claro que existe. O coronavírus é apenas um dos vírus que pode se espalhar de forma contagiosa. Não posso entrar em detalhes sobre a possibilidade de uma vacina eficaz porque não sou biólogo, mas não acredito que a experiência do coronavírus acabará com a vacina. A pandemia de 2020 foi apenas o início de uma época de catástrofes globais, nos níveis biológico, ambiental e militar. O efeito da pandemia no meio ambiente também é contraditório. Por um lado, houve uma redução no consumo de energia fóssil, um bloqueio da poluição industrial e urbana. Por outro lado, a situação econômica obriga a sociedade a lidar com problemas imediatos e adiar soluções de longo prazo. E não há longo prazo no nível da crise ambiental, pois os efeitos do aquecimento global já estão se desenrolando. Mas, ao mesmo tempo, podemos imaginar (e propor) a criação de redes comunitárias autônomas que não dependam do princípio do lucro e da acumulação. Comunidades de sobrevivência frugal.

Pergunta: Maristella Svampa, socióloga argentina, postula que a metáfora do inimigo invisível no discurso político esconde a dimensão ambiental do vírus. Concorda?

Berardi: Sim, concordo. A covid-19 é uma emergência particular de colapso ambiental. As elites políticas não me parecem estar à altura do problema, o que dizem não me parece muito importante. A política como um todo é impotente. O que fazem os “bons” políticos (como Conte na Itália)? Eles aplicam a disciplina sanitária obrigatória, eles se curvam à decisão científica, que toma o lugar da decisão política. O que os bandidos estão fazendo (Bolsonaro, Trump…)? Eles recusam decisões científicas e afirmam a autonomia da política. Mas a política tornou-se um jogo sem razão, sem conhecimento. O poder do político é a loucura, a vingança, a raiva contra a impotência. Se a política foi durante os tempos modernos uma expressão da vontade, agora está morta porque a vontade humana perdeu sua eficácia sobre o processo real.

Pergunta: Como você imagina que ficarão os vínculos pessoais após a pandemia? Como eles estão agora?

Berardi: A pandemia marca uma ruptura antropológica de profundidade abismal. Vamos pensar no ato mais humano de todos: o beijo, a aproximação dos lábios, o afago gradual e doce da língua dentro da boca de outro ser humano. Este ato se tornou o mais perigoso e antissocial que se possa imaginar. Que efeito essa novidade terá no inconsciente coletivo? Uma sensibilização fóbica ao corpo e à pele do outro. Uma epidemia de solidão e, portanto, de depressão. No plano social, o distanciamento implica o fim de toda solidariedade. No nível do inconsciente, é equivalente à bomba atômica. Temos que reinventar a afetividade, o desejo, o toque, o sexo, mas… temos força psíquica para isso? Parece que não. Mas, repito com veemência: estamos em um limiar, não podemos saber como sairemos da oscilação em que o inconsciente é capturado.

Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/Franco-Berardi-filosofo-italiano-Assistiremos-ao-colapso-final-da-ordem-economica-global-/7/48537

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