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Como construir uma ecologia pós-pandemia

Covid-19 abre oportunidades para repensar consumo e produção de carne: as bandejas assépticas do mercado escondem um modelo pecuário perverso e intensivo. Prover a saúde de animais e humanos explorados é crucial para o bem-estar da humanidade

OUTRASMÍDIAS TERRA E ANTROPOCENO por Instituto Socioambiental

Por Nurit Bensusan, no ISA

Interessante que algo que veio dos confins da Terra, da China, de um lugar ainda remoto na nossa imaginação, tenha acabado por significar para todos confinamento voluntário ou compulsório. Dos confins da Terra ao confinamento entre paredes. Confins e confinamento tem a mesma origem e significado. Os confins da Terra são entendidos como algo longínquo porque confinar é fazer fronteira com alguma coisa. Minha casa confina com a do meu vizinho. Assim, os confins da Terra estão nos limites desse transbordante planeta, ou seja, longe de nós. Ou cada vez mais perto. Já o confinamento é o avesso do avesso do avesso para ser a mesma coisa. Confinamo-nos em nossos limites, circunscritos a nossas casas.

Ao nos limitarmos a elas, para quem tem sorte de ter moradia, vemos aflorar os contrastes dos confins e do confinamento. Percebemos que colocamos nossas esperanças e desejos nos confins, entendidos como longe dos limites do nosso espaço doméstico. Assim, o confinamento só é possível porque todos continuamos mirando os confins, conectados a redes sociais virtuais que mataram nossa subjetividade e nos desensinaram até mesmo a conversar.

Na pandemia nossa de cada dia, o contraste entre os confins e nossa vida cotidiana vai se tornando a cada momento mais radical. Quando se trata das mulheres, para as quais a pandemia traz um conjunto adicional de problemas, tais como a violência de ter que ficar em casa com quem as agride e a angústia de ter que inventar formas de proteger filhos e pais, esse contraste pode se tornar ainda mais extremo. Apesar das mudanças em relação às atividades das mulheres que permearam o último século, elas são, ainda, identificadas com a parcela da humanidade preocupada com o cuidado e com o bem-estar dos outros. E, na maior parte dos casos, são quem trata do preparo de alimentos e da limpeza doméstica. Assim, fica cada vez mais evidente o contraste entre o que se tenta fazer no espaço do confinamento e o que é feito nos confins: mercados abertos onde fezes e sangue de diversos animais misturam-se; fábricas de carne onde galinhas, patos e porcos são criados em um regime de grande sofrimento e nenhuma higiene; e cadeias produtivas como a do chocolate, onde crianças trabalham em condições análogas a escravidão.

A distância entre os confins e o ambiente do confinamento segue a lógica expressa no dito popular “longe dos olhos, longe do coração”. Uma coisa é ver um galpão iluminado por fortes luzes de halogênio, com milhares de galinhas tentando sobreviver em espaços mínimos, apertadas umas contra as outras, sem penas, cheias de feridas e piolhos, pisoteando outras galinhas mortas em decomposição e cacarejando em sofrimento constante. Outra coisa é ir ao supermercado mais próximo e comprar um frango numa bandeja asséptica. Uma coisa é acompanhar crianças em trabalhos extenuantes com jornadas longuíssimas e constantes ameaças de castigos, de quem foi roubada a infância, a esperança e qualquer possibilidade de um futuro com menos sofrimento. Outra coisa é comprar uma deliciosa barra de chocolate na mercearia da esquina.

Convite à reflexão

A pandemia da vez nos convida à reflexão sobre essas dualidades. Talvez o histórico alijamento das mulheres dos processos de tomada de decisão, nas esferas política e econômica, tenha contribuído para que chegássemos onde estamos. A produção de alimentos em larga escala não dialoga com o bem-estar animal, com a diversidade de plantas, nem com o cuidado com as pessoas envolvidas nesses processos. Todas as vidas são descartáveis, estão exclusivamente a serviço do capitalismo.

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