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Nas periferias, cai o mito da “doença democrática”

Em SP, os 300 mil habitantes da Vila Brasilândia convivem com a maior taxa de óbito por covid-19. O distanciamento é dificílimo. A perda de renda, dramática. Os hospitais próximos estão à beira do colapso. Há famílias inteiras contaminadas

Por Felipe Betim

“Ih, filho, minha vida tá embaçada”. Essas são as primeiras palavras de Ilma Paulino, de 47 anos, ao ser perguntada como a pandemia de coronavírus vem afetando sua rotina. Moradora de Vila Teresinha, subdistrito de Brasilândia, em São Paulo, ela vive com seus dois filhos —um deles com depressão— e precisa cuidar da irmã com epilepsia. Por causa das idas ao médico e dos cuidados diários, não pode ter trabalho fixo há dois anos. Assim, se mantém com o auxílio de um salário mínimo do INSS da irmã e os bicos como diarista, que rendiam cerca de 200 reais por semana. “Eu arranjava esses trabalhos, mas agora nem isso estou conseguindo. As pessoas estão com medo de receber gente em casa”, conta a mulher. Enquanto conversa com o EL PAÍS, recebe uma cesta básica do coletivo comunitário Preto Império, que atua em parceria com a rede de cursinhos pré-vestibular Uneafro e a agência de jornalismo Alma Preta. “Se não estivessem me ajudando, estaria perdida”, afirma a mulher, que solicitou a renda básica emergencial do Governo Federal, mas ainda não obteve resposta.

Em casa, Ilma mantém a rotina de lavar bem as mãos e manter tudo limpo. Seu irmão, que tem mais de 60 anos, e mora em outra rua, está entubado na UTI do Hospital Geral Vila Penteado. De acordo com a sobrinha, que repassa diariamente os boletins médicos, ele não vem respondendo aos tratamentos. “E eu vou levando minha vida, como Deus quer. Mas até onde vai, não sei”.

O relato de Ilma retrata algumas das dificuldades enfrentadas pelos moradores da periférica Brasilândia, localizado na zona norte de São Paulo e um dos mais populosos da capital paulista. São cerca de 300.000 habitantes divididos em 43 subdistritos. De acordo com os dados da prefeitura, comandada por Bruno Covas (PSDB), a Brasilândia concentra o maior número bruto de óbitos (confirmados ou suspeitos) por coronavírus. No boletim desta segunda-feira, 4 de maio, a região aparecia com 103 mortes confirmadas ou suspeitas. Esse número maior se deve principalmente ao maior número de habitantes. Outro fator que deixa a região ainda mais vulnerável é o atraso na inauguração do Hospital Municipal da Brasilândia, prometido pela prefeitura para maio. Mas, quando se analisa a taxa de óbitos, Brasilândia aparece com 36,5 mortes por 100.000 habitantes. Belém (zona leste), Pari (centro) e Artur Alvim (zona leste) aparecem no topo, com taxas superiores a 56 óbitos por 100.000 habitantes.

O EL PAÍS circulou de carro pela Brasilândia e conversou com algumas pessoas na manhã da última terça-feira, 28 de abril. Entre as 9h e 14h, pôde constatar que a maior parte das ruas tinha pouco movimento de carro e pessoas —algumas vias estavam completamente vazias—, enquanto que a maioria dos comércios —salvo mercados, mercearias e algumas oficinas e bares— se manteve fechada. As aglomerações são pontuais: elas acontecem em locais com obras públicas, em filas da Caixa Econômica Federal e das Lotéricas, e na distribuição de marmitas do programa Bom Prato, do Governo do Estado, no horário do almoço. Também cabe ressaltar que, entre os que circulavam pelas ruas ou utilizavam transporte público, grande parte usava máscara de proteção para tampar a boca e o nariz.

“Graças a Deus tenho minha família para me ajudar, eles estão dando muita força para mim”, conta Maria de Fátima Nunes, costureira aposentada de 62 anos. Ela vive com suas três filhas, três genros e oito netos. Todos têm evitado sair de casa nas últimas semanas. Além de sua aposentadoria de um salário mínimo, a família consegue manter o isolamento por causa das filhas, todas com emprego registrado, apesar do corte de 50% no salário. Por ter restrições alimentares, também conta com a doação de alimentos orgânicos entregue pela Preto Império. “Caso contrário, eu teria que estar na rua para buscar comida e tudo. Mas eu acabo ficando muito depressiva por estar isolada. Dá uma tristeza muito grande por causa da vontade de fazer as coisas e não poder”.

A conscientização de pessoas como Maria de Fátima e sua família é mais recente, de algumas semanas atrás, conforme o número de casos e mortes foi aumentando pelo bairro, segundo vários relatos. “Ainda assim, muitos colocam a máscara e, na hora de conversar, tira”, explica Elaine Reis, de 44 anos. Mesmo assim, ainda é possível ver, como nos outros bairros de São Paulo, pessoas conversando a pouca distância em bares e na porta de casa ou adolescentes empinando pipa.

Os relatos também são de que o movimento nas ruas aumenta nos finais de semana. Trabalhadora da área da saúde e moradora da região, Elaine argumenta que a informação sobre os riscos da covid-19 vêm circulando não só a partir dos meios de comunicação, mas também nas ruas. “Outro dia um carro de som passou anunciando, explicando, informando como todos deveriam agir. Mas não é todo mundo que está se cuidando, se preocupando se vai ter futuro. Ainda há muitas pessoas que não usam máscara para sair e não estão fazendo totalmente a quarentena”, explica. Elaine não se refere aos trabalhadores que não podem parar —”estes estão se cuidando mais”, garante—, mas sim àqueles que “agem como se estivessem de férias”.

Seu marido é motorista de aplicativo e viu o movimento cair. Fica a maior parte do tempo em isolamento junto com a filha, além de outros parentes que moram em casas coladas uma da outra. Cabe a Elaine, que está na linha de frente do combate ao coronavírus, sustentar a família. “Os gastos com comida, água e luz aumentaram. Também tivemos que gastar o dobro com uma internet mais rápida, porque a outra não estava dando conta com todo mundo em casa usando”, conta a mulher. “Por outro lado, nossa renda mensal diminuiu uns 60%. Tivemos que nos endividar, parcelar o cartão de crédito, que tem juros abusivos…”. Seu marido foi aprovado no programa de renda básica emergencial do Governo, mas, por questões burocráticas, ainda aguarda a liberação dos 600 reais pela Caixa.

Dimas Reis, de 32 anos, nascido e criado na Brasilândia e hoje coordenador do coletivo Preto Império, confirma que há pessoas, principalmente alguns jovens, que “estão desacreditando no que está acontecendo e não têm noção do impacto” da pandemia. “Pode acontecer como em uma casa aqui da esquina, onde a avó ficava isolada mas o neto saía toda hora. A avó acabou infectada, mas o neto continua bem”, relata. Porém, explica que todos os bairros da periferia de São Paulo apresentam “condições semelhantes de educação, alimentação e saneamento precário” e estão mais expostas ao coronavírus “por causa da ausência do Estado”. Os bairros periféricos, sobretudo nas zonas norte e leste, concentram a maioria das mortes por covid-19. Paralelamente, os hospitais das redes municipal e estadual, muitos deles localizados nas periferias, possuem taxa de ocupação de leitos UTI superior a 80% ―alguns já atingiram o 100%, como o centro de referência Emílio Ribas.

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