Estudioso das Forças Armadas afirma que militares ainda estão presos na lógica da Guerra Fria e creem na ameaça de um “marxismo cultural”. Mourão, porta-voz desse conservadorismo, é “lobo em pele de cordeiro”, diz.
A maioria dos militares brasileiros, de alta e baixa patentes, está hoje engajada numa versão renovada da luta contra o comunismo que guiava a ditadura militar (1964-1985). Em vez de defender o país da influência da União Soviética, extinta em 1991, caberia agora às Forças Armadas proteger a nação do marxismo cultural, que seria uma nova forma de ação do comunismo, expressa em movimentos por direito de minorias, contra o racismo e em defesa das mulheres. É o que aponta o sociólogo João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) que pesquisa as Forças Armadas há quatro décadas.
Essa ideologia começou a fazer a cabeça de militares nos anos 1990, mas eles se mantiveram relativamente silenciosos até o governo Dilma Rousseff, enquanto aparentavam se adaptar aos novos limites da democracia. Quando veio a crise de 2015, porém, “começou a brotar aquilo que estava recalcado”, e em 2018 os militares aproveitaram a vitória de Jair Bolsonaro para voltar ao poder e implementar seu projeto, afirma Martins Filho em entrevista à DW Brasil.
O sociólogo aponta que um dos maiores porta-vozes desse novo conservadorismo militar é o vice-presidente, general Hamilton Mourão, que, na visão do pesquisador é “um lobo em pele de cordeiro” e não representa garantia de que, se vier a ocupar a Presidência da República, fará um governo diferente do de Bolsonaro.
Martin Filho cita um artigo do vice-presidente publicado nesta quarta-feira (03/06) no jornal O Estado de S. Paulo, no qual Mourão afirma que as manifestações do último fim de semana contra o governo não eram democráticas, mas compostas por “deliquentes” ligados ao “extremismo internacional” que deveriam ser reprimidos pelas polícias.
A tese bolsonarista de que o Supremo Tribunal Federal (STF) estaria realizando uma intervenção indevida no Poder Executivo tem apoio “quase unânime” nas Forças Armadas, diz Martins Filho. E há entre os militares simpatia à interpretação do presidente sobre o artigo 142 da Constituição, que o autorizaria a usar as Forças Armadas para “restabelecer a ordem” no país, inclusive contra o Poder Judiciário – tese rechaçada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e em um manifesto assinado por cerca de 700 juristas e advogados.
Com cerca de 3 mil militares cedidos ao governo federal e generais ocupando cinco cargos de primeiro escalão da gestão Bolsonaro (Secretaria de Governo, Gabinete de Segurança Institucional e ministérios da Casa Civil, Defesa e Saúde), os integrantes das Forças Armadas costumam dizer que foram convocados para uma missão e, por sua formação militar, devem obediência ao seu chefe, o presidente da República. Esse argumento é falacioso, e oculta uma identidade de propósito entre a caserna e Bolsonaro, diz Martins Filho.
Ele lembra que, no governo Dilma, houve casos de insubordinação à presidente, como do próprio Mourão – que na época era comandante militar do Sul e fez críticas ao governo e convocou oficiais da reserva a um “despertar de uma luta patriótica”, sendo em seguida punido com a transferência para um cargo burocrático.
Questionado sobre os protestos de rua contrários ao governo convocados para o próximo final de semana, o professor da Ufscar diz ver risco de que as polícias militares – consideradas forças auxiliares das Forças Armadas, mas com um maior efetivo e ainda mais bolsonaristas – ajam com violência desproporcional contra os manifestantes.
DW Brasil: O que aconteceu com as Forças Armadas brasileiras após o regime militar?
João Roberto Martins Filho: Eu compararia com o que aconteceu na Argentina. Lá, a ditadura desmoronou dada a escala da repressão, que atingiu 30 mil mortos e desaparecidos, enquanto no Brasil foram menos de 500. As Forças Armadas da Argentina saíram do governo repudiadas pela opinião pública e com seus principais chefes julgados e condenados. No Brasil, houve um processo de dez anos de retirada controlada dos militares, que saíram do governo praticamente ilesos e até com certo prestígio.
A partir dali, houve um processo lento de avanço do controle democrático sobre as Forças Armadas. O [Fernando] Collor extingue o Serviço Nacional de Informações, em 1999 é criado o Ministério da Defesa, e em 1996 sai a primeira Política de Defesa Nacional, depois uma Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa, que foram elaborados com a participação de civis.
Aparentemente, os militares tinham se adaptado aos limites da democracia, todos os ministros da Defesa eram civis. Mas não houve mudança no modo de pensar deles – eles só não estavam expressando sua forma de pensar. Com a crise política, começou a brotar aquilo que estava recalcado. E, de repente, nos surpreendemos com esse afã de voltar a participar da política, e com ideias muito ultrapassadas. Isso numa sociedade que não tinha incorporado a crítica à ditadura, como se fez, por exemplo, na Alemanha com relação ao nazismo. Não houve aqui uma política de construção de uma memória crítica em relação à ditadura.
Saiba mais em: https://www.dw.com/pt-br/militares-n%C3%A3o-mudaram-modo-de-pensar-depois-da-ditadura/a-53679430
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