Em 14 de agosto de 1791 foi proclamado o grito da Revolução Haitiana, a faísca que incendiou as lutas anti-coloniais latino-americanas e aterrorizou as elites proprietárias. A voz da liberdade encarnada pelos Jacobinos Negros assombra uma classe e inspira outra até hoje.
Por Marcos Queiroz
Na noite de 14 de agosto de 1791, nas imediações de uma das mais tradicionais fazendas de São Domingos, então colônia francesa, é realizada a cerimônia de Boïs-Caïman, marco inaugural da maior insurgência escrava do mundo moderno. Conduzida por “Zamba” Boukman, líder político e sacerdote vodu, proclama um chamado às armas e o compromisso de luta pelo fim do cativeiro, expresso na frase eternizada pela história: escutem a voz da liberdade que fala nos corações de todos nós.
São Domingos não era qualquer colônia. Para a França, a metrópole em maior expansão no final do século XVIII, era A colônia, ou como se falava na época: a pérola das Antilhas. Maior mercado individual de escravizados do mundo, produzia metade do açúcar e do café consumido no planeta. No coração de um mercado internacional em acelerada expansão, representava o ápice do capitalismo. O segredo sujo da “infância” do capital é sua íntima, intrínseca, relação com o colonialismo. Cerca de um milhão dos 25 milhões de franceses dependiam diretamente do comércio colonial e 15% dos mil membros da “revolucionária” Assembleia Nacional possuíam propriedades coloniais em 1789. As fortunas criadas em Paris, Bordeaux e Nantes, fundamentais para a luta da “emancipação humana” que irrompeu na França, foram geradas graças à desumanização brutal de pessoas negras do outro lado do Atlântico. Pessoas que tomariam a luta por liberdade à sua maneira e a elevariam a outro patamar: o universal, afinal, não descansava sobre a Europa, mas era encarnado nas mãos ex-escravizadas no Caribe.
Recalibrando o universal diante da escravidão
Entre 1791 e 1804, liderados por Toussaint Louverture, Jacques Dessalines, Alexandre Petión, Henri Christophe e outros, as massas haitianas protagonizaram um ousado embate contra as forças coloniais, derrotando sucessivamente 60 mil soldados ingleses e 43 mil franceses. Em janeiro de 1805, é declarado o primeiro Estado independente construído por ex-escravizados e negros libertos. Nas cartas constitucionais pós-Revolução, reescreviam o ideal de liberdade diante da experiência da escravidão e da ainda presente ameaça do colonialismo. A igualdade universal era declarada e, no mesmo gesto, afirmava-se a diversidade e a diferença humana. Ali nascia uma nação cujos filhos foram repudiados injustamente e por tanto tempo, como estabelecia o preâmbulo da primeira Constituição do Haiti independente.
A ressignificação dos ideais universais de liberdade e igualdade, por sujeitos que viveram os horrores do colonialismo e da escravidão, ia do nome Haiti – nome dado à Ilha de São Domingos pelos seus primeiros habitantes, o povo indígena taino – ao programa político do novo estado-nação. Nele, todos os habitantes haitianos deveriam ser tratados como “negros”. No entanto, diferentemente do restante do mundo colonial, “negro” ali era sinônimo de liberdade, como cantado no samba. Ao passo que foram abolidas todas as hierarquias baseadas na cor da pele, a cidadania passava a ser reconhecida e atribuída conceitualmente por meio do termo que os colonizadores utilizavam para desumanizar.
Negro passava a significar não a cor de pele ou o lugar de origem, uma vez que polacos e alemães que participaram na guerra de independência, africanos ou indígenas americanos de outras localidades podiam se tornar cidadãos haitianos: tornavam-se, portanto, negros também. Todos aqueles que potencialmente pudessem ter sido vítimas da escravidão e do genocídio podiam ser haitianos, logo cidadãos do Haiti, logo negros. Neste particularismo que afirma o universal, o signo negro, herdado do vocabulário colonial, era ressignificado para afirmar a universalidade contida na categoria cidadão. Com isso, afirmava também que não há como se falar em cidadania no mundo moderno sem um acerto de contas radical com a experiência da raça e da escravidão. Era a declaração dos direitos do negro e do cidadão: o signo racial, antes utilizado para limitar, universalizava-se como sinônimo de humanidade.
O problema da escravidão não era uma abstração filosófica, como na teoria iluminista dos proprietários europeus, ou apenas uma parte dos direitos individuais e sociais, a exemplo da Constituição Francesa de 1795. Aparecia como uma questão dos “habitantes” do Haiti, um aspecto central da constituição política e parte dos fundamentos indispensáveis da entidade geopolítica da nova nação. O Haiti é fundado para garantir a liberdade e acabar com a subordinação racial, adotando uma postura antiescravista radical e propondo um movimento transnacional, internacionalista e anti-imperialista – cosmopolitismo revolucionário articulado por uma cidadania diaspórica exercida em um território quilombola no meio do Caribe.
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2020/08/a-mais-universal-das-revolucoes/
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