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Chomsky: o mundo precisa da derrota de Trump

Ele explica: pandemia acelerou a História e projetou a luta de classes em escala global. Agora, todos os futuros são possíveis. Pouco importam as limitações de Joe Biden: o que vale é o espaço que se abrirá às novas lutas

Noam Chomsky, entrevistado por Anand Giridharadas, no The.Ink | Tradução por Simone Paz

No início de abril, a escritora indiana Arundhati Roy escreveu o que pode ser uma das reflexões mais provocadoras sobre a pandemia:

Há poucos dias me encontrei, por meio de uma combinação de rede social e telefone celular, com outro defensor destacado de um mundo novo. Noam Chomsky é liguista, filósofo, pesquisador da cognição, crítico social e uma espécie de padrinho intelectual da esquerda. Arundhati Roy expressou o sentimento de muitos quando escreveu, há anos: “É raro o dia em que não me vejo desejando – por uma razão ou outra – Chomsky Zindabad, longa vida a Chomsky!

Aos 91, Chomsky mostra poucos inais de renunciar a viver longamente. É tão incisivo, curioso e influente como sempre. Em mais de uma hora de conversa, falamos sobre tudo – das escolhas políticas criadas pela pandemia ao poder do Black Lives Matter, da plataforma supreendentemente progressista de Joe Biden a descobrir amor por um país que se critica incessantemente.

Conte um pouco sobre como você tem vivido esse momento pandêmico, que tem sido bastante difícil para todos na vida pessoal, mas que também é uma crise política — e, potencialmente, para muitas pessoas, um momento de abertura na forma como pensamos esses sistemas.

Tem sido atarefado. Estou isolado, não saio e não recebo visitas. Mas estou constantemente ocupado com entrevistas, com pedidos muito além do que posso aceitar. Muito mais ocupado do que me lembro já ter estado.

Mas você está certo. A pandemia oferece a oportunidade de fazermos escolhas sobre que tipo de mundo vai surgir a partir dela. Escolhas muito distintas. Aqueles que criaram a crise e submeteram a população global a 40 anos de ataque neoliberal estão trabalhando muito, incansavelmente, para garantir que o que for surgir seja uma versão mais dura daquilo que criou este sistema. Maior vigilância, maior controle.

E há outras forças, que vão desde o que você vê nas ruas nos Estados Unidos ao movimento ambientalista e ao DiEM25 na Europa. Muitas outras forças populares estão tentando caminhar para um mundo muito diferente. É uma espécie de luta de classes em escala global.

Por causa dessas coisas graves que você descreve, há uma discussão dentro da esquerda norte-americana sobre se é importante, neste momento, parar de falar de temas usuais e apenas unir forças para livrar-nos de Trump. E, por outro lado,os que argumentam que este é exatamente o momento de levantar todos os outros tipos de questões e sermos duros com Biden. Como você enxerga esse debate?

Bem, há uma posição muito tradicional da esquerda, que, infelizmente, foi praticamente esquecida, mas é aquela que acho que devemos seguir. É a posição de que a verdadeira política está no ativismo constante. É bem diferente da posição do establishment, que diz que política significa foco (quase que exclusivamente) na extravagância quadrienal chamada eleição — e depois ir para casa, deixando que os “líderes” assumam o controle.

A posição de esquerda sempre foi: você age politicamente o tempo todo e, de vez em quando, ocorre algo chamado eleições. Isso vai afastá-lo da política real por cerca de 10 ou 15 minutos. E depois você volta a trabalhar.

Neste momento, a diferença entre os candidatos nos EUA é abissal. Nunca houve um contraste maior. Deveria ser óbvio para qualquer ser humano que não viva debaixo de uma rocha. Portanto, a posição tradicional de esquerda diz: “Separe esses 15 minutos, aperte o botão e volte ao trabalho político.”

Porém, a esquerda ativista não fez a escolha que você menciona na pergunta. Faz as duas ao mesmo tempo.

Veja as posições da campanha de Biden. Mais à esquerda do que qualquer outro candidato democrata do qual se tenha memória, em questões como a mudança climática. Já é muito melhor do que qualquer um que o precedeu. Não é porque Biden viveu uma transformação pessoal ou porque os democratas tiveram um grande insight — mas porque estão sendo pressionados por ativistas que surgiram do movimento Sanders e outros. O programa climático, um compromisso de US$ 2 trilhões para lidar com a ameaça extrema de catástrofe ambiental, foi escrito em grande parte pelo Movimento Sunrise e fortemente endossado pelos principais ativistas da mudança climática, aqueles que conseguiram colocar o New Deal Verde na agenda legislativa. Isso é política real.

É uma posição muito interessante vinda de você. Seu apoio a Biden é mais do que apenas relutância. Você realmente parece pensar que a plataforma é surpreendentemente boa, considerando quem ele é e onde estamos.

Isto não é apoio ao Biden. É apoio aos ativistas que trabalharam incessantemente, criando o pano de fundo dentro do partido em que ocorreram as mudanças, e que acompanharam Sanders para entrar de verdade na campanha e influenciá-la. Meu apoio é a eles. Apoio à política real.

A posição de esquerda é de raramente apoiar qualquer pessoa. Você vota contra o pior. Você mantém a pressão e o ativismo.

Dada essa mobilização popular da qual você fala, quero perguntar sobre uma liderança. Eu me questiono se você considera que uma figura como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez pode se tornar presidente neste país.

Bom, se dez anos atrás você tivesse me perguntado se alguém como Bernie Sanders poderia ser a figura política mais popular do país, eu teria chamado você de louco. Mas, de fato, isso aconteceu em 2016 e Bernie continua criando um movimento significativo. Existem possibilidades reais. Acho que se você olhasse para os Estados Unidos na década de 1920 e perguntasse: “Será que algum dia vai haver um movimento de trabalhadores?” você também teria parecido louco. Como poderia haver? Ele tinha sido esmagado.

Mas isso mudou. A vida humana não é previsível. Depende de escolhas e vontade, que são imprevisíveis. Agora, por exemplo, estamos no processo de formação de uma Internacional Progressista. Baseada no movimento Sanders nos EUA e no movimento DiEM25 de Yanis Varoufakis na Europa, que é um movimento europeu transnacional que busca preservar e fortalecer o que faz sentido na União Européia e superar suas gravíssimas falhas.

Se você me perguntasse agora se há alguma perspectiva, seria muito difícil responder. Se você observar de forma objetiva, verá onde o poder está concentrado no mundo. A Internacional Progressista é composta pelas forças que mencionei, e ao lado há uma “internacional reacionária” sendo criada na Casa Branca com Trump à frente. Esses quase-ditadores como Bolsonaro — um clone de Trump — fazem parte disso. Os ditadores do Oriente Médio, famílias ditadoras dos estados do Golfo. O Egito de Sisi, a pior ditadura da história egípcia. Israel, que está se movendo tanto para a direita que você mal consegue ver, são parte disso. A Índia de Modi que, em seu esforço por destruir a democracia indiana, transformou-a em uma quase-ditadura hindu fundamentalista. Orban na Hungria.

Ao compararmos essas forças pode surgir uma ideia do tipo: “Nessas condições, não pode haver nem luta?”. Mas esse é o cálculo errado. Existem pessoas, e elas fazem a diferença.

Podemos revisitar o meu filósofo favorito, David Hume. Seu livro Of the First Principles of Government [“Dos Primeiros Princípios do Governo”], um tratado político do final do século 18, começa dizendo que devemos entender que o poder está nas mãos dos governados. Aqueles que são governados são os que têm o poder. Qualquer que seja o tipo de Estado, militarista ou mais democrático, como a Inglaterra estava se tornando. Os chefes governam apenas por consentimento. E se esse consentimento for retirado, eles perdem. Seu poder é muito frágil.

Devo dizer que os atuais mestres do universo, como eles modestamente se referem a si mesmos, entenderam isso muito bem. Todo mês de janeiro, em Davos, a estação de esqui da Suíça, os grandes e poderosos se reúnem para esquiar, se divertir e se parabenizar por serem maravilhosos. Os principais executivos-chefes, figuras da mídia e figuras do entretenimento, e assim por diante.

Mas este ano foi diferente. O tema era: Temos problemas. Os camponeses estão chegando com suas forquilhas. Nas palavras que eles preferem, estamos enfrentando “riscos de reputação”. Eles estão vindo atrás de nós. Nosso controle é frágil. Temos que passar uma mensagem diferente. Portanto, a mensagem em Davos foi: Sim, percebemos que cometemos erros durante todo esse período neoliberal. Vocês, a população em geral, sofreu. Nós entendemos isso. Estamos superando nossos erros. Agora vamos nos comprometer com vocês, as partes interessadas e as comunidades trabalhadoras. Estamos realmente comprometidos com o seu bem-estar. Estamos nos tornando profundamente humanitários. Lamentamos nossos erros. Vocês podes botar fé em nós. Nós assumiremos a responsabilidade e trabalharemos para seu benefício.

(…)

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/chomsky-o-mundo-precisa-da-derrota-de-trump/

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