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“Não tem como calar a expressão artística de um país”

Diretora-presidente da Spcine, cineasta Laís Bodanzky vê uma apatia do governo federal perante o setor e critica tentativas de aparelhar ideologicamente as políticas culturais.

A cineasta paulistana Laís Bodanzky assumiu o comando da Spcine — a empresa de cinema e audiovisual da prefeitura de São Paulo — em um ano que mais parece enredo de filme de ficção científica: ela tomou posse em 26 de março e, desde então, encara o dia a dia de um setor em que tanto as produções como as exibições estão praticamente congeladas por conta da covid-19. 

“O impacto foi muito grave. Na cidade, 39 filmagens estavam acontecendo simultaneamente [quando foi declarada a pandemia] e foram interrompidos os andamentos. Isso só em espaços públicos. Fora o que acontecia nos espaços privados e nem temos exatamente o controle”, diz.

Enquanto se vê acompanhando os protocolos todos discutidos para a retomada das filmagens na cidade, Bodanzky aproveita a alta do consumo de filmes em plataformas de streaming. Ela viu que era uma boa hora para incrementar o catálogo da Spcine Play — “a única plataforma pública do Brasil, com conteúdo 100% gratuito até dezembro”, ressalta. 

Diretora de filmes aclamados como Bicho de Sete Cabeças (2001), Chega de Saudade (2007) e As Melhores Coisas do Mundo (2010), ela tem o cinema no DNA: é filha do também cineasta Jorge Bodanzky, de Iracema – Uma Transa Amazônica (1974). A diretora-presidente da Spcine integra a comissão da Academia Brasileira de Cinema que deve escolher o postulante nacional ao Oscar de 2021 e assiste — com apreensão, como boa parte do setor —aos mandos e desmandos do atual governo federal sobre a cultura: com a extinção do ministério, as trocas de comando na secretaria e os rumos da Cinemateca Brasileira.

No dia 10 de agosto, uma nova polêmica. A academia de Hollywood enviou carta diretamente à Academia Brasileira de Cinema (ABC), reconhecendo a entidade brasileira como a que deve indicar o postulante nacional ao Oscar 2021. Antes, a escolha cabia ao governo federal — que, desde 2017, repassava a incumbência à ABC. 


DW Brasil: Esta “passada por cima” do governo federal foi interpretada como um recado de Hollywood. Acredita que a academia americana tenha jeito isso por receio de haver alguma ingerência ideológica, por parte do atual governo brasileiro, na escolha do filme? Qual sua leitura sobre isso?

LB: Houve recentemente um processo de aproximação da Academia Brasileira com a americana. Esta carta reconhece e dá um aval ao trabalho da instituição brasileira, colocando sobre ela a responsabilidade. Nenhum outro país do mundo tem participação de governo na escolha do filme, [os governos] não participam de júri, nem de escolha, não dão palpite, nada. Assim, não vejo receio de ingerência ideológica, mas sim um empoderamento da Academia Brasileira. Por notícias de outros veículos, eu soube de uma certa falta de compreensão do Ministério do Turismo e da Secretaria Especial de Cultura em relação a como se escolhe o filme do Oscar.

Do ponto de vista institucional, como está o cenário? O setor do audiovisual vem sentindo um certo esvaziamento das políticas culturais no atual governo?

O Brasil não pode ficar fechado em sua bolha — o mundo do audiovisual é completamente conectado. A única solução possível é a compreensão da importância e da dimensão desse setor para a economia do país, para a expressão criativa. O diálogo deve ser permanente e tem de se desdobrar em políticas públicas efetivas de apoio ao setor. Apoio não necessariamente financeiro mas, muitas vezes, estratégico. Muitas coisas podem ser feitas sem depender de recursos, só com pura inteligência, ou seja, colocando esse setor em destaque. Muitas ações são apenas a forma como você dialoga e posiciona o setor, abrindo portas, facilitando o caminho. É preciso ajudar a ventilar nossa produção no mercado estrangeiro, não só de mostras internacionais, mas em mercados também. Compreender a importância de estar lá presentes e, ao mesmo tempo, atrair produções internacionais ao Brasil.

Acredita que o setor de cinema vem sofrendo também uma certa “censura velada” por conta do discurso governamental de que há um marxismo cultural, essas coisas? De que forma isso afeta?

O que se nota é uma não compreensão de forma geral de que uma sociedade tem várias expressões culturais, de gênero e de raça. É natural que o audiovisual dê conta de todas essas expressões. E é importante que seja assim. Uma política pública não pode ser feita por meio de curadoria. Não cabe ao Estado decidir o que deve e o que não deve ser feito, ser curador. Política pública é estimular justamente a diversidade e a expressão da sociedade como um todo. Não cabe ao poder público dizer que isto pode ou isso não pode. A sociedade precisa de um audiovisual que a represente como um todo, e nisso cabe tudo: gênero, raça, religião, todos os gostos e todas as expressões. Isso nem deveria ser tema de discussão, afinal é garantido pela Constituição.

Como você está acompanhando a questão da Cinemateca Brasileira? O contrato de gestão não foi renovado pelo governo federal, os funcionários foram demitidos e há um clima de indefinição…

É a cinemateca mais importante da América Latina, pelo conteúdo e pela memória que preserva. Seu acervo exige cuidados técnicos específicos. Há uma incompreensão por parte da União, o contrato foi cancelado sem que essas questões fossem levadas em consideração. Isso mostra um não conhecimento do setor e da sua importância. Não temos mais Ministério da Cultura, o setor fica num pinga pinga, uma criança sem pai nem mãe, um abandono geral. O que aconteceu com a Cinemateca já estava anunciado. É uma novela e não conseguimos nunca adivinhar o que vai acontecer. A União diz que já assumiu as chaves e é responsável pelo prédio e pelo acervo. Mas são ações a médio prazo. Hoje ali dentro temos uma acervo abandonado, ninguém está rebobinando os filmes, cuidando da química, ligando o ar condicionado, [realizando] cuidados mínimos. [O local, pela natureza do acervo] corre risco de incêndio a qualquer momento e a União não relata, não tem um comentário. Se eles estão cuidando agora da Cinemateca, precisam fazer um comunicado público do que estão fazendo. Acho isso importantíssimo. Porque talvez estejam fazendo tudo corretamente, mas falta comunicar, falta transparência. Quando não se diz nada, você imagina o que quiser. E são várias as narrativas. 

Quanto a pandemia atrapalha o cinema brasileiro?

Fortemente. Na produção em si, pela interrupção das filmagens. E a retomada será lenta. Os protocolos [sanitários] acabam encarecendo a produção, com aumento de equipe, exames que precisam ser feitos, limitação de horas de trabalho no set de filmagem, diárias a mais para higienização. Encareceu de 20% a 40% uma produção e isso não está simples neste momento de crise econômica. O momento tem um impacto grande nos trabalhadores, nos técnicos e nos artistas. A grande maioria é freelancer e está sem remuneração. O setor vive uma situação emergencial, muita gente com sua geladeira vazia. É delicado. De fato está muito difícil fazer cinema no Brasil no momento. Mas, ao mesmo tempo, há um número grande de escolas de audiovisual, muitos jovens querendo trabalhar com isso e vindo com força. Há um mercado de streaming grande e TVs que precisam de conteúdo. Ou seja: existe um mercado — e boa parte procura o trabalho autoral de cineastas, com assinatura. A gente vive uma crise econômica e a apatia do governo federal. Mas não acho que tudo esteja perdido, não. Está difícil? Sim, mas a gente vai superar. Não tem como calar uma indústria deste tamanho. Não tem como calar a expressão artística de um país. Às vezes é justamente neste momento que a criatividade rola solta e vêm grandes surpresas. 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/n%C3%A3o-tem-como-calar-a-express%C3%A3o-art%C3%ADstica-de-um-pa%C3%ADs/a-54665900

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