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Silvio Almeida: “Quem quer civilizar o Brasil não pode temer o poder. Temos de nos livrar dessa alma de senhor de escravo”

Advogado e filósofo opina que a alternativa ao bolsonarismo precisa ter a vida como valor. Defende que sentença da juíza que cita “raça” para justificar condenação de réu negro deve ser anulada

Felipe Betim

São Paulo – 23 AGO 2020 – 18:19 BRT

Silvio Luiz de Almeida (São Paulo, 1976) é um dos principais pensadores brasileiros da atualidade. Além de filósofo, advogado tributarista e professor universitário, com especializações em Direito Político e Econômico e Teoria Geral do Direito, Almeida estuda as relações raciais no Brasil e publicou, no ano passado, o livro Racismo estrutural (Editora Polén). Em entrevista ao EL PAÍS, opina que o presidente Jair Bolsonaro é um “sintoma da derrota do Brasil”, um país que ficou “apático em torno de 100.000 mortes” pelo novo coronavírus porque “já se acostumou com a morte, principalmente de trabalhadores e de pessoas negras”.

Apesar de ter assinado o pedido de impeachment apresentado pela Coalizão Negra por Direitos na última semana, vê poucas chances da iniciativa prosperar. “Qualquer projeto político que queira mudar esse cenário vai ter que pensar na valorização da vida e necessariamente entrar em conflito com as pessoas que desvalorizam a vida”, argumenta. Questionado sobre a sentença da juíza do Paraná que fala em “raça” para justificar a condenação de um réu negro, diz que seu pedido de desculpas é irrelevante. O importante, afirma, é que a decisão seja anulada. “É absolutamente inaceitável do ponto vista técnico jurídico que uma decisão venha sustentada na condição racial do sentenciado”.

Pergunta. Como você reagiu à sentença de uma juíza do Paraná que usou a raça do réu negro como justificativa para sua condenação?

Resposta. Desta maneira eu não tinha visto ainda, mas não ando muito surpreso com algumas coisas, que têm só servido para reforçar alguns aspectos que eu já vinha observando, seja porque sou um homem negro seja porque sou pesquisador, tanto do campo do Direito como também do campo das relações raciais. Não me abriu novos horizontes para pensar nas possibilidades do que o ser humano é capaz de fazer ou do que as instituições são capazes de fazer, até porque são capazes de fazer coisas piores. Mas fiquei no mínimo curioso como isso seria tratado diante do contexto em que vivemos hoje. Mas, eu te digo, não há novidades, porque é isso que acontece independentemente das manifestações.

P. Como o sistema penal brasileiro, e o Direito como um todo, atuam para a perpetuação das estruturas sociais e raciais no Brasil?

R. Temos um sistema de Justiça que funciona a partir do que chamamos de seletividade. Ele é parte de uma estrutura social que precisa funcionar reproduzindo uma lógica socioeconômica de desigualdades, uma lógica de separação que precisa o tempo todo ser alimentada e que vai organizar tanto a economia como também as próprias instituições políticas. O que a gente já chama de desigualdade racial e de desigualdade econômica é naturalizada e é tecnicamente construída a partir da atuação do sistema de Justiça. Ele não produz apenas efeitos políticos, mas também no imaginário. Por exemplo, ao insistir na associação de pessoas negras com criminalidade e com pobreza. Funciona como confirmação de um imaginário social racista, que também é o mesmo imaginário que alimenta a conivência ou nossa indiferença em relação às mortes que ocorrem nas periferias do mundo. É ingenuidade achar que o sistema de Justiça e o próprio Direito, tanto como teoria como também tecnologia, não estão imbricados com o funcionamento da economia e com o funcionamento também da lógica das hierarquias políticas.

P. A juíza pediu desculpas. É o suficiente? Como esse pedido de desculpas deveria se materializar?

R. O pedido de desculpas é também um sintoma terrível dos nossos tempos em que a gente reduz discussões políticas a discussões de caráter moral. A gente quer moralizar os problemas. Até mesmo o racismo se tornou um problema moral. Isso tem um propósito político muito forte e uma relação direta também com o atravessamento das nossas subjetividades pela organização política do mundo neoliberal, em que todos os assuntos se tornam muito pessoais, muito individuais. Pedir desculpas, do ponto de vista particular, ótimo. Aceite quem quiser. Não é uma questão que interessa fundamentalmente à construção de uma esfera pública. A questão é a seguinte: a sentença dela é uma decisão jurídica. E, para isso, é necessário que sejam preenchidos certos requisitos que estão objetivamente descritos na lei. Está no Código de Processo Penal, está na Constituição Federal. Portanto, a única forma de lidar com isso institucionalmente é anulando a sentença, uma vez que as razões que ela levanta são justificativas ilegais para concluir pela culpabilidade do réu. A justificativa é algo essencial, se não a gente vai entrar no campo da barbárie, e no campo da barbárie não precisa ter juiz. Uma decisão só tem poder de manifestar as consequências que dela se espera se ela for feita a partir da legalidade. É absolutamente inaceitável do ponto vista técnico-jurídico que uma decisão venha sustentada na condição racial do sentenciado.

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