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Crise ambiental e a biopolítica do desacoplamento

Para o neurobiólogo Humberto Maturana, a origem do Homo Sapiens não está na competição, mas na vida coletiva e no cuidado mútuo. Mas capitalismo nos aliena mais das dinâmicas que sustentam a vida. Resta-nos uma virada cultural — ou a extinção

Por Antônio Sales Rios Neto

“Civilização e barbárie não são tipos diferentes de sociedade. São encontrados – entrelaçados – sempre que os seres humanos se juntam” (John Gray).

Nos tempos atuais, não é necessário muito esforço cognitivo para percebermos que o modo de vida hegemônico da civilização é totalmente insustentável, em qualquer perspectiva que o observemos, seja ela social, ecológica, política, econômica, institucional, ética, espiritual, material ou alguma outra. Essa incongruência civilizatória tem a ver com as diversas visões de mundo que foram sendo elaboradas e vivenciadas ao longo da história, até chegarmos à visão econômica de mundo, que impera quase absoluta na época atual. Isso porque todas as cosmovisões já experimentadas, desde o teocentrismo da Idade Média, passando pelo antropocentrismo da cultura renascentista e moderna, que foi mesclado com o mecanicismo determinista iniciado no século XVII e desembocou no economicismo atual (e até mesmo a aposta no transumanismo proporcionado pelos algoritmos, que alguns projetam para o futuro próximo), foram permeadas pela cultura patriarcal, a qual está amparada na apropriação da verdade de que o mundo é uma grande arena regida pela ideia de luta, hierarquia, poder, controle e extração de recursos naturais. E esta cultura patriarcal, em muitos momentos da história da humanidade, desencadeou processos de profunda regressão, porém nunca tão intensa e impactante quanto a que aparenta estar em curso na contemporaneidade.

Para o filósofo britânico John Gray, “a vida humana não é mais moldada pelos ritmos do planeta”. A espécie humana, segundo ele, no seu ímpeto de reconstruir o mundo à sua imagem, está forjando um mundo pós-humano, que o faz concluir que “como quer que venha a terminar, o Antropoceno será breve”. Um bom caminho para compreender essa brevidade patrocinada pelo ser humano está na noção de biopolítica ou biopoder, tal como concebida pelo filósofo francês Michel Foucault, que tão bem explica a gênese e o curso das transformações, tanto no passado quanto na atualidade, nas estruturas de governança e de poder do capital, que hoje estão em alta diante do clima de desorientação, instabilidade e aprofundamento da crise civilizatória, provocado pela pandemia da Covid-19.

Nesse sentido, a compreensão da época atual por meio da biopolítica é muito útil, uma vez que as novas configurações do sistema do capital, implantadas a partir do neoliberalismo inaugurado nos anos 1970, nos impõem novas e urgentes reflexões acerca dos sombrios rumos que a civilização está tomando. Assim, a proposta aqui é pensar sobre um grande paradoxo que parece estar por trás da biopolítica, partindo do pressuposto de que ela representa o metabolismo de sustentação do capital não só para garantir que estejamos vivos demais para morrer, mas notadamente mortos demais para viver. O controle da morte por meio da biopolítica engendrou uma sociedade altamente produtiva e demasiadamente mórbida, revelando-se assim um poderoso processo de desacoplamento do vital e do humano. Para compreensão dessa proposta de reflexão, é necessário agregar um novo elemento de análise que podemos chamar também de (bio)política, ou seja, a política a partir da biologia, campo da ciência cujo conhecimento foi, já faz um bom tempo, ampliado de forma significativa por nomes expressivos como o neurobiólogo chileno Humberto Maturana. Assim, a ideia aqui é tentar contribuir com o pensamento crítico frente ao biopoder que hoje forja e controla nosso sistema-mundo, o qual está deslizando, a passos largos, para um colapso civilizatório.

Em um artigo recente, o filósofo Vladimir Safatle, ao comentar o livro póstumo de Foucault, Nascimento da Biopolítica, resultante de um curso ministrado no Collège de France, de 1978 a 1979, explica como Foucault concebe esse mecanismo de controle dos corpos, em que as forças do capital estão se reconfigurando nas últimas décadas por meio de “uma verdadeira engenharia social capaz de formalizar todas as esferas da vida social a partir do modelo da empresa”. Assim, assistimos inertes ao surgimento do novo homo economicus, o “empresário de si mesmo, aquele capaz de calcular seu tempo, sua formação, o afeto consagrado aos filhos, como investimento na produção de rentabilização do capital humano”. Em suma, Safatle discorre, com base em Foucault, como “uma nova forma de controle social consegue se impor pelas mãos da ‘liberdade’ liberal”, levando, desse modo, a visão econômica de mundo a um novo patamar de hegemonia inédito na história do capitalismo e, por consequência, agravando cada vez mais os impasses da civilização. A biopolítica, enquanto metabolismo de sustentação do capital, revela-se um poderoso processo de regressão e barbárie e, no limite, de autodestruição da civilização.

Nessa mesma vertente de reflexão foucaultiana, filósofos expressivos como Byung-Chul Han (com a “sociedade do cansaço” decorrente da “sociedade de desempenho” do novo indivíduo “empresário de si mesmo”), Peter Sloterdijk (com a antropotécnica decorrente da “repetitividade na criatividade”), Giorgio Agamben (com a “vida nua” decorrente do estado de exceção), dentre outros, reforçam essa leitura em torno da nova biopolítica que está sendo gestada na atualidade, em direção a um capitalismo de hipervigilância, hoje turbinada pela pandemia do coronavírus, desafiando-nos a pensar outras formas de estar no mundo. Han, por exemplo, entende que “deveríamos nos libertar da ideia de que a origem de todo prazer é um desejo satisfeito”, pois “só a sociedade de consumo orienta-se para a satisfação de desejos”. Nesse caso, seria melhor “redefinir a liberdade a partir da comunidade”. Assim, ele defende “que temos que inventar novas formas de ação e jogo coletivo que se realizem para além do ego, o desejo e o consumo, e criem comunidade”. No fundo, todos eles parecem alertar que precisamos encontrar alguma forma de superar a cultura patriarcal.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/colapso-ambiental-e-a-biopolitica-do-desacoplamento/

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