Por José Luís Fiori
Nos momentos de grandes “bifurcações históricas”, é preciso ter coragem de mudar a forma de pensar, é preciso “rebobinar” as ideias, mudar o ângulo e trocar o paradigma.
Fiori, J. L. “A esquerda, os militares, o imperialismo e o desenvolvimento”, Jornal do Brasil, 7/1/2020
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No Brasil, mais do que em outros países da América Latina, a epidemia do Coronavírus apressou o colapso final de uma experiencia econômica ultraliberal levada à frente a ferro e fogo, por um grupo de economistas e financistas fanáticos sob o governo de um cidadão insano. A partir de agora, a força dos fatos muito mais do que as ideias, e a mudança das circunstâncias nacionais e mundiais, muito mais do que a conversão ideológica de empresários e financistas, deverão impor ao Brasil um novo rumo. Mas uma vez mais, como em outros momentos da história, esta mesma catástrofe imporá uma mudança de rumo, e criará uma oportunidade para que políticos e intelectuais rediscutam os caminhos futuros do Brasil dentro do novo cenário internacional que emergirá da atual pandemia e crise econômica global.
Desde logo, não existe uma resposta fácil, nem uma solução simples frente a esta disjuntiva que deverá ser enfrentada pelo Brasil e pela América Latina, e de certa forma, por todo mundo, na saída desta grande crise que ainda não tem nenhuma data, nem nenhum rumo certo e pré-determinado. Neste momento dramático, só existe uma coisa absolutamente segura: se o Brasil seguir submetido à insanidade ideológica dos economistas ultraliberais, e à insanidade mental do seu chefe, a economia e a sociedade brasileira colapsarão comprometendo o futuro do Brasil e de suas próximas gerações, por muitas décadas.
Neste momento há que manter a calma e a esperança, porque este é um “jogo” que ainda não acabou, mas sem dúvida este é também um momento em que se impõe pensar e agir de forma rápida, mas planejada, frente à epidemia e frente às alternativas que se abrirão para o país, depois que superada a atual emergência sanitária. E ao mesmo tempo é preciso tomar distância das emoções e surpresas diárias para repensar rapidamente velhas ideias, modelos e concepções que já estavam superadas e que serão soterradas pelo tufão da epidemia. Por isso, apesar de parecer muito distante dos fatos imediatos, está mais do que na hora de iniciar uma discussão estratégica a respeito dos futuros possíveis para Brasil e para o continente latino-americano, começando pela releitura da história e da geopolítica do “modo de desenvolvimento” do sistema interestatal e do capitalismo, para compreender melhor as forças e tendências materiais deste sistema que acabam impondo-se como “dados de realidade”, a todos os Estados do sistema, e a todas as suas forças políticas, e por cima inclusive de suas diferentes opções ideológicas.
É óbvio que uma investigação deste tipo não cabe num artigo destas dimensões, mas mesmo assim é possível formular algumas hipóteses e premissas construídas a partir de uma longa pesquisa histórica que já vem sendo desenvolvida há algumas décadas:[1]
i. Sobre a origem do sistema de Estados nacionais, que remonta às “guerras de conquista” e à “revolução” comercial e financeira europeia dos séculos XIII e XI: trata-se de guerras e transformações econômicas que foram responsáveis por dois grandes processos históricos, intimamente relacionados entre si – o processo de centralização do poder, que levou ao nascimento dos Estados territoriais; e o processo de monetização de tributos e trocas, que levou à formação das economias de mercado e à criação de um sistema de financiamento “bancário” dos Estados e de suas guerras. Foi naquele período que se forjou, no continente europeu, um casamento inseparável entre a “necessidade permanente de conquista” dos Estados e a “necessidade de acumulação contínua de excedentes” e de “dívidas públicas” em mãos privadas, mas a serviço dos reis e de suas guerras. Um casamento que se transformou na “marca batismal” de toda a história posterior da Europa, e de todo o sistema interestatal.
ii. Sobre as guerras, os tributos, as moedas e o comércio, que sempre existiram: a grande novidade desse novo sistema de poder territorial criado pelos europeus talvez tenha sido exatamente a forma em que os três elementos se combinaram em pequenos territórios altamente competitivos, e em permanente preparação para a guerra. As mesmas guerras que obrigaram os soberanos a multiplicar seus tributos e dívidas, emitindo moedas e títulos, e que soldaram a aliança indissolúvel entre príncipes e banqueiros, com o aparecimento das primeiras formas de acumulação do “dinheiro pelo dinheiro”, através da senhoriagem das moedas e da negociação das dívidas públicas, primeiro nas “feiras” e depois nas bolsas de valores. E foi exatamente essa sociedade e articulação de interesses que estiveram na origem dos primeiros Estados e economias nacionais. Cada uma delas com seus próprios sistemas de bancos e de crédito, com seus exércitos e burocracias, e com seu sentimento coletivo de identidade e de “interesse nacional”.
iii. Sobre o fato de que esses Estados e economias nacionais não nasceram isoladamente: pelo contrário, já nasceram dentro de um sistema que aumentou sua riqueza e poder em conjunto, através da competição e da guerra permanente entre suas unidades constitutivas. E o fato mais importante ainda, de que foram essa competição e as guerras entre as novas unidades territoriais de poder que deram origem, de forma muito lenta, a um novo “regime de produção capitalista” indissociável dos Estados e de sua competição. Na verdade, esse novo regime de produção e acumulação de riqueza se transformou numa arma fundamental na luta pelo poder entre os novos Estados nacionais, dentro e fora do continente europeu.
Por isso, a luta interna desses Estados europeus se deu ao mesmo tempo que estes se expandiam para fora da Europa e constituíam seus primeiros impérios coloniais globais. E nesse movimento expansivo do poder territorial, junto com seus mercados e capitais privados, foram sempre os Estados mais poderosos e expansivos que lideraram a acumulação do capital e o “desenvolvimento” do capitalismo em escala global. Essa luta contínua promoveu uma rápida hierarquização do sistema, com a constituição de um pequeno “núcleo central” – de “grandes potências” – que se impôs aos demais Estados nacionais, dentro e fora da Europa. A composição interna desse núcleo foi sempre muito estável, devido ao próprio processo de concentração e monopolização do poder, e devido às “barreiras à entrada” de novos “sócios” que foram sendo criadas pelas potências ganhadoras ao longo dos séculos.
De qualquer forma, o ponto importante que se deve guardar é que o sistema mundial em que vivemos até hoje foi uma criação do poder expansivo de alguns Estados e economias nacionais da Europa, que conquistaram e colonizaram o mundo a partir do século XVI. A expansão competitiva desses Estados e economias nacionais capitalistas criou impérios coloniais e internacionalizou capitais, mas nem os impérios, nem o capital internacional conseguiram jamais eliminar ou dissolver as fronteiras nacionais dos próprios Estados, e tampouco de suas moedas e capitais nacionais – em última instância, porque os capitais nacionais só conseguem se internacionalizar e vencer sua competição global na medida em que sejam apoiados por seus Estados nacionais. E só conseguem realizar o seu “valor”’ na medida em que sejam “designados” em sua própria moeda, ou na moeda ou títulos da dívida de uma potência superior à sua própria.
Neste sentido, pode-se afirmar que as chamadas “moedas internacionais” sempre foram as “moedas nacionais” de algum Estado vitorioso que conseguiu projetar seu poder para fora de suas próprias fronteiras. Diga-se de passagem, desde o século XVI, só existiram duas moedas efetivamente internacionais: a libra e o dólar. Mas se pode falar de três sistemas monetários internacionais: o “padrão libra-ouro”, que ruiu na década de 1930; o “padrão dólar-ouro”, que terminou em 1971; e o “padrão dólar-flexível”, que nasceu na década de 1970 e segue vigente neste início de século XXI. Em todos esses casos, a moeda de referência só alcançou sua posição dominante depois de uma prolongada luta de poder com moedas de outros Estados nacionais, e nunca foi, portanto, uma escolha apenas dos mercados e de seus “agentes privados”, mantendo-se como um instrumento fundamental de poder nas mãos do seu Estado emissor. Por fim, a experiencia histórica ensina que é parte do poder do emissor da “moeda internacional” transferir os custos de seus ajustes internos para o resto da economia mundial, e em particular para sua periferia monetário-financeira.
Saiba mai em:https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Para-rebobinar-as-ideias-depois-do-colapso-3-/4/49593
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