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Rondônia: tensão e risco de um novo massacre

Um latifúndio grilado, com área semelhante à do Bahrein. Um “proprietário” poderoso, acusado de múltiplos crimes. Seiscentas famílias sem terra, expulsas com violência. Os Bolsonaro envolvidos. Porto Velho pode estar à beira da explosão

Por Daniel Camargos, de Porto Velho (RO) | Fotos: Fernando Martinho

Duas picapes pretas freiam bruscamente. Sete homens com camisetas negras pulam dos veículos empunhando pistolas e fuzis prontos para o disparo. Apontam na direção de dois camponeses que jogam sinuca diante de um bar na zona rural de Porto Velho (RO). Ao notarem a minha presença e a do fotógrafo Fernando Martinho, perguntam quem somos, com uma das armas voltada para o meu rosto. Passa um pouco do meio-dia. Minutos antes, uma tempestade havia transformado as estradinhas sem asfalto da região num lamaçal. 

“Sou jornalista. Aquele ali é o fotógrafo”, respondo, de mãos para cima. Só então um dos homens, com barba e chapéu de palha, abaixa o fuzil .565 e pede minha carteira profissional. Quero saber quem são eles. Dizem ser policiais militares. No entanto, não usam uniformes nem etiquetas com os próprios nomes. As picapes tampouco exibem qualquer tipo de identificação. 

Os sete revistam os camponeses e, logo em seguida, o dono do bar. Também param dois jovens que transitavam numa motocicleta. “Tomem cuidado! Vocês estão no meio de uma guerrilha…”, me avisa o policial com chapéu de palha. O grupo não nos impediu de fotografar toda a ação, mas solicitou mais de uma vez que não divulgássemos o rosto de nenhum dos agentes nem as placas dos carros. 

Policiais militares sem farda fazem ‘batida’ próximo ao acampamento da LCP, em Rondônia, em uma caçada pelos assassinos de dois colegas (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Naquela quinta-feira de dezembro, estávamos ali, a 130 km do Centro de Porto Velho, aguardando autorização para visitar o acampamento Tiago dos Santos, organizado pela Liga dos Camponeses Pobres. A LCP, fundada em 1999, é o principal movimento social de Rondônia em defesa da reforma agrária – ou “revolução agrária”, como costuma apregoar. Os trabalhadores rurais que a compõem pregam a “morte do latifúndio” e seguem princípios do comunista Mao Tsé-Tung, que liderou a Revolução Chinesa em 1949. Os trinta acampamentos mantidos pela liga no estado recebem a denominação de “áreas revolucionárias”.

Já os sete homens de camisetas pretas estavam na zona rural da capital rondoniense para uma caçada. Procuravam seis acusados de matar um tenente e um sargento da Polícia Militar em outubro do ano passado. A delegada que investiga o caso, Leisaloma Carvalho, indiciou dez integrantes da LCP que vivem no acampamento Tiago dos Santos pelos assassinatos. Quatro deles foram presos, mas soltos em poucos dias por falta de provas. Os outros seis estão foragidos porque já tinham ordens de prisão por crimes anteriores: homicídio, latrocínio e assalto, segundo relato de Carvalho, que não mostrou evidências, alegando que o inquérito corre em sigilo.

A Associação Brasileira de Advogados do Povo (Abrapo), uma entidade sem fins lucrativos que defende os acampados, nega o envolvimento dos dez no episódio: “O que me surpreende é que a polícia tenha adotado nenhuma outra linha de investigação além da que criminaliza o acampamento”, diz a representante Lenir Correia Coelho. Ela também lança dúvidas sobre a idoneidade do fazendeiro que disputa com os acampados a área ocupada – perto do local onde os policiais foram mortos. 

Os 50 mil hectares ocupados pelos camponeses, segundo a LCP, pertencem à União e estavam improdutivos. Já Odair Martini, o advogado do fazendeiro Antônio Martins dos Santos (conhecido como Galo Velho), diz que a área faz parte de uma propriedade do seu cliente, a fazenda Norbrasil. 

‘Queriam a todo custo que disséssemos quem tinha matado os dois policiais. Perguntavam se era gente nossa’, afirma um dos acampados (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Investigações do Ministério Público Federal e da Polícia Federal apontam que o fazendeiro comanda uma organização criminosa responsável por desviar mais de R$ 330 milhões com fraudes no estado, incluindo a grilagem de terras que formam a Norbrasil. A defesa do ruralista, porém, afirma que todos os imóveis de Galo Velho foram adquiridos legalmente. Há quase oito meses, ele teve bens bloqueados e sofreu uma ação de busca e apreensão. Foi apontado, durante a CPI da Terra, em 2005, como o maior grileiro de Rondônia.

Na versão da Abrapo, os policiais que foram assassinados trabalhavam como seguranças para o Galo Velho e teriam se envolvido em conflitos com madeireiros, o que explicaria o crime. 

Diante das versões contraditórias sobre os assassinatos, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) pede uma investigação “imparcial (…), com atenção aos protocolos de respeito aos direitos humanos” e sem que seja alimentada por uma “sede de vingança”. “Só assim teremos uma apuração justa, com a individualização das condutas responsáveis, que não podem recair sobre o coletivo ou movimento social”, diz nota da entidade, publicada logo após a morte dos policiais. 

A relação dos sem-terra locais com a polícia nunca primou pela tranquilidade, ao menos desde 1995, quando cerca de trezentos homens, entre pistoleiros e policiais, atacaram um grupo que ocupava uma fazenda no sul do estado, em episódio que ficou conhecido como o “Massacre de Corumbiara”. Oito lavradores foram assassinados, vinte desapareceram e 350 se feriram. Dois policiais também morreram. 

Desde então, levantar a bandeira da reforma agrária em Rondônia pode ser bastante perigoso. Entre 2015 e 2019, de acordo com a CPT, 64 pessoas morreram no estado por causa de conflitos rurais – mais de uma vítima por mês. “Quem ousa apoiar a causa vai na contramão da história local”, diz Afonso Chagas, especialista em questões fundiárias que leciona no departamento de ciências sociais e direito da Universidade Federal de Rondônia (Unir). O professor explica que o estado sempre esteve sob o controle de grandes ruralistas, uma elite que costuma difamar os movimentos sociais. “Usar o assassinato daqueles dois policiais para criminalizar toda a luta pela reforma agrária é uma estratégia que acaba gerando bons resultados eleitorais”, acrescenta o procurador Raphael Bevilaqua, do Ministério Público Federal, que combate grilagens de terra. 

Não à toa, em 2018, Rondônia elegeu como governador um coronel da PM que se declara bolsonarista e avesso às reivindicações dos camponeses. O estado foi o terceiro do país que mais garantiu votos ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ficou atrás somente do vizinho Acre e de Santa Catarina.

Se o clima já era tenso, piorou desde a morte dos militares. As 600 famílias de lavradores que acampam na área em disputa sofrem abordagens policiais constantes e, muitas vezes, violentas. Embora haja versões diferentes para os dois homicídios, não restam dúvidas de que, naquela parte de Rondônia, o bolsonarismo e a luta pela reforma agrária encontraram seus representantes mais radicais.

Área ocupada pela Liga dos Camponeses Pobres a 130 km de Porto Velho é alvo de disputa judicial; um fazendeiro, com suspeita de grilagem, se diz dono das terras (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/rondonia-tensao-e-risco-de-um-novo-massacre/

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