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Smart cities: Salvador e as novas faces da segregação

Sob a promessa de eficiência, corporações visam capturar a gestão urbana, ampliando vigilância e especulação. Mapeia-se sintomas, nunca causas da segregação. Direito à cidade é erodido – e cidadania, despolitizada e resumida à aplicativos

Por Gabriel Barros Bordignon| Imagem: eestingnef/iStock

1. Introdução

O presente artigo é resultado de reflexões críticas acerca do desenvolvimento urbano da Região Metropolitana de Salvador (RMS), abrangendo seus processos históricos, reverberações contemporâneas e tendências futuras. As análises revelam os diferentes papéis dos agentes envolvidos nas transformações urbanas da RMS, enfocando as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) como novas operadoras dos processos urbanos, de forma que as mesmas se configuram como importantes modeladoras dos cenários vindouros para a metrópole baiana. A relevância das TIC na governança e na gestão urbana instiga reflexões sobre a segregação socioespacial, a participação cidadã nas transformações urbanas e, no limite, o direito à cidade.

O uso de computadores e smartphones no Brasil apresentou um crescimento substancial, sobretudo a partir da segunda década do século XXI, a ponto de, em junho de 2020, o número de smartphones por habitante no país atingir uma proporção maior do que um para um (112%) (MEIRELLES, 2020). Na contemporaneidade, os indivíduos são atravessados por dispositivos tecnológicos em praticamente todas as instâncias da existência. A presença dos smartphones nas vidas cotidianas, de certa maneira, elimina a barreira espaço-temporal que havia entre a internet (ciberespaço), os corpos e o ambiente urbano, de forma que as ações humanas, as manifestações culturais, as trocas sociais, grosso modo, todo o modo de vida urbano é sensivelmente afetado e transformado.

A aplicação das TIC no âmbito urbano se dá em diversas escalas, sendo a câmera de vigilância talvez o símbolo maior da relação Cidade x Tecnologia. Entretanto, a abrangência dos dispositivos tecnológicos se estende para muito além da captação de imagens no espaço urbano, passando por coleta e sistematização massiva de dados de naturezas diversas, até a aplicação de tais dados no gerenciamento das cidades. Tal modelo resume o conceito de Cidade Inteligente, ou Smart City. A tendência de se projetar smart cities, ou de tornar inteligentes as cidades, cresce no Brasil em consonância com as políticas neoliberais de privatização dos espaços públicos, dado que as ferramentas tecnopolíticas de gestão urbana são desenvolvidas e comercializadas por empresas privadas, geralmente ligadas às Big Techs estadunidenses. As TIC, portanto, contribuem para a confirmação de uma tendência já anterior, presente em diversas metrópoles, incluindo Salvador, de deslocamento da gestão urbana dos interesses populares para a lógica da competição e do lucro.

Faz-se necessário, pois, compreender as novas TIC como fatores determinantes para os estudos urbanos contemporâneos, visto que as mesmas se fazem cada vez mais presentes em áreas como planejamento urbano, políticas públicas, economia urbana, mobilidade, legislações, meio ambiente, movimentos sociais, entre outras.

Neste quadro, o presente texto, configurado por revisões bibliográficas, apresenta, em um primeiro momento, uma breve contextualização histórica do desenvolvimento urbano da Região Metropolitana de Salvador, enfocando, especialmente, a questão da segregação socioespacial. Em seguida, reflete-se sobre os atores envolvidos nos processos de governança dos regimes neoliberais contemporâneos e sobre o poder político em Salvador, com grande predominância do setor privado (sobretudo o imobiliário) no desenvolvimento urbano da RMS. O embasamento teórico desta primeira metade do texto apoia-se, majoritariamente, em publicações de pesquisadores do Núcleo Regional Salvador da Rede Nacional Observatório das Metrópoles, que articula pesquisas sobre os desafios metropolitanos e suas transformações socioespaciais no desenvolvimento urbano nacional. Em um terceiro momento, discute-se acerca dos cenários futuros da metrópole, com alguns apontamentos sobre o crescente papel das TIC no planejamento urbano, sobretudo a partir de iniciativas como o Centro de Operações e Inteligência de Segurança Pública 2 de Julho (COI), e o Plano Diretor de Tecnologia da Cidade Inteligente (PDTCI). Tais iniciativas, articuladas ou não entre si, indicam um encaminhamento das discussões sobre o desenvolvimento de Salvador pautado pelas TIC, o que, de acordo com autores contemporâneos, além de contribuir com o já corrente processo de privatização da gestão pública, torna a participação cidadã um movimento passivo e ademocrático, o que agrava a já conhecida situação de segregação socioespacial na RMS. O artigo reflete, portanto, sobre a relação entre as TIC e o direito à cidade em Salvador.

Por fim, o trabalho aponta para um cenário onde as TIC serão encaradas como ferramentas de gestão urbana com papéis cada vez mais relevantes, sobretudo nas regiões metropolitanas do Brasil, enfatizando que em tais processos devem ser priorizadas questões como a transparência, a privacidade de dados, as liberdades individuais e os direitos humanos. À RMS, que desponta como uma das pioneiras nas questões de tecnologias aplicadas no desenvolvimento das cidades, deve ser dada atenção no que diz respeito à prevenção, mitigação e resolução de problemas que podem ser gerados dentro dessa nova dinâmica urbana, sobretudo os relacionados ao direito à cidade.

2. Processos urbanos da RMS: o papel do capital privado e a fragmentação urbana

Carvalho e Corso-Pereira (2014), no livro Salvador: transformações na ordem urbana, apresentam uma síntese da evolução econômica e social de Salvador desde sua fundação, em meados do século XVI, até a primeira década do século XXI. Tal contextualização é importante no sentido de que tanto as condições socioeconômicas da cidade quanto sua forma urbana atual, inserem-se em um processo histórico que envolve diferentes atores e momentos políticos relacionados ao longo do tempo.

Apesar de ter sido fundada em 1549, tendo sido a primeira capital do Brasil até 1763, Salvador só teve uma considerável evolução urbana a partir do final do século XIX (CARVALHO; CORSO-PEREIRA, 2014). Antes desse período, a economia da cidade baseava-se na agroindústria açucareira exportadora, que utilizava mão de obra escrava. O mercado interno de Salvador, assim como suas estruturas sociais, só começaria a se desenvolver a partir dos anos 1940, quando a industrialização brasileira, antes concentrada no sudeste e sul do país, chega às regiões norte e nordeste. A presença das indústrias gera um acelerado crescimento demográfico, sobretudo a partir de processos migratórios. Neste cenário, na ausência de políticas habitacionais, houve uma onda de ocupações do território urbano, as chamadas “invasões”, com uma população de mais baixa renda ocupando o centro da cidade e áreas de encostas. Algumas invasões tornaram-se bairros, mas a maioria foi desfeita, sendo as populações expulsas para regiões periféricas. Tal padrão de segregação socioespacial se consolidaria com a Lei da Reforma Urbana de 1968, quando a prefeitura municipal transfere a posse de muitas terras para algumas poucas e influentes famílias, determinando um modelo de ocupação em três vetores que dura até os dias de hoje: 1) Orla Marítima Norte, área nobre ocupada por moradias das camadas com maior renda, possuindo uma variedade de equipamentos e serviços urbanos, concentrando investimentos públicos, atrações turísticas, oportunidades de trabalho e interesses do capital imobiliário; 2) Miolo, região de classe média baixa, com conjuntos habitacionais e loteamentos populares, ocupações de encostas e carência de equipamentos e serviços urbanos; e 3) Subúrbio Ferroviário, no litoral da Baía de Todos os Santos, concentrando uma população mais pobre em assentamentos residenciais precários em infraestrutura e serviços coletivos (CARVALHO; CORSO-PEREIRA, 2014). A transição de um modelo escravista de ocupação do território para um sistema industrial com maior densidade demográfica em Salvador, não passou por programas habitacionais ou instrumentos legais que se preocuparam com a qualidade das moradias, o acesso às infraestruturas e equipamentos urbanos, ou qualquer tipo de programa social, estabelecendo uma distribuição territorial que segrega ricos e pobres ao longo de todo o processo histórico.

A partir dos anos 1980, seguindo a tendência de diversas outras metrópoles nacionais e internacionais diante da crise do modelo desenvolvimentista, com a reestruturação da economia brasileira para uma lógica neoliberal, Salvador começa a sentir os efeitos da desindustrialização, com a entrada do país na economia globalizada do capital financeiro e consequente abandono de políticas de desenvolvimento regional. Os principais efeitos deste fenômeno foram: cortes orçamentários, fechamento de empresas, desemprego e precarização do trabalho, informalidade, desorganização da classe trabalhadora e novas formas de administração pública baseadas em modelos empresariais. Neste período foram poucas as alterações na estrutura urbana, mantendo-se o padrão de segregação, destacando-se a expulsão de moradores tradicionais do Pelourinho para expansão do turismo na região (CARVALHO; CORSO-PEREIRA, 2014). Certa retomada econômica se inicia a partir de 2004, com um governo federal mais progressista e um cenário internacional favorável, quando houve expansão industrial, avanços no setor de habitação e ligeira redução da pobreza. Deste período, vale destacar a disseminação do modelo de condomínios fechados, sobretudo os de alto padrão, em um processo de autossegregação dos ricos; grandes obras viárias e sistemas de transporte público de administração privada; expansão do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), principalmente em regiões periféricas; e consideráveis transformações na orla marítima norte, incluindo mudanças legislativas para aumento do potencial construtivo/lucrativo da área e favorecimento dos interesses imobiliários.

De forma geral, o modelo de empreendedorismo urbano, advindo dos anos 1980/90 e concretizado no século XXI, produz certos efeitos que Carvalho e Corso-Pereira (2013), no artigo A cidade como negócio, consideram comuns a todas as grandes metrópoles, a saber: adequação da estrutura econômica à nova fase do capitalismo, do mercado financeiro globalizado; desindustrialização e avanço do setor terciário; aumento do desemprego, da precarização do trabalho e da informalidade; aumento da desigualdade social e da violência; crescimento das cidades para as bordas ocupadas por populações de baixa renda e deterioração de áreas mais antigas; surgimento de novas centralidades com a gentrificação de certas regiões ou construção de equipamentos de grande impacto na paisagem urbana; grandes obras viárias com concessões privadas de administração e políticas de mobilidade voltadas para a valorização do transporte individual em detrimento dos modelos públicos ou alternativos; separação física e simbólica da desigualdade urbana com a construção de grandes condomínios, verticais ou horizontais, para a população de alta renda; e transferência do papel de gestão e planejamento urbano do Estado para o setor privado, sobretudo o imobiliário. Em resumo, até as primeiras décadas do século XXI, Salvador e sua região metropolitana seguem corroborando com seu próprio processo histórico de segregação socioespacial. Ao adotar a razão neoliberal e sua lógica concorrencial, as preocupações com o crescimento econômico levam Salvador a mercantilizar seus territórios, terceirizando a gestão urbana em processos ademocráticos, realizados segundo o interesse de uma grande coalizão de empresas privadas e elites econômicas, em detrimento de diversas demandas sociais, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental (CARVALHO; CORSO-PEREIRA, 2013).

Dardot e Laval (2016), no livro A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, apresentam um panorama do pensamento liberal – suas diversas correntes, autores, crises e contradições – para refletir sobre o neoliberalismo, não apenas como a normativa prevalecente da atual fase do capitalismo, mas também enquanto modelador das relações sociais contemporâneas. Os autores delimitam os anos 1980 como o momento a partir do qual os países passam a se comportar como grandes empresas em competição internacional. Da mesma forma, as cidades, especialmente as metrópoles, passam a se desenvolver em linhas de disputa sobre investimentos nos territórios. Neste contexto, o conceito de cidadania é substituído pela noção de empreendedorismo, de forma que cada habitante é colocado dentro de uma lógica de competição individual. A ideia simplista de que Estado e Mercado seriam entidades em disputa pelo controle das pessoas é, portanto, desmontada, na medida em que indivíduos, empresas e governos, grosso modo, todas as instâncias da existência, estariam imbuídas dentro de uma mesma lógica: a da competitividade/rendimento (DARDOT; LAVAL, 2016). É neste sentido que Almeida, Clementino e Silva (2018), no artigo Governança colaborativa e regimes urbanos: convergências inesperadas em tempos difíceis, apontam que os regimes urbanos não podem ser reduzidos simplesmente às coalizões público-privadas, mas devem ser analisados também outros fatores como: os conflitos de interesses entre diferentes níveis de poder (federal, estadual e municipal); as dificuldades de conciliação entre os múltiplos atores governamentais, empresariais e populacionais; e os contrastes entre a lógica da eficácia econômica e as reivindicações de uma sociedade civil organizada. Desta forma, as decisões tomadas na gestão das cidades passam por diversas barganhas – por vezes assimétricas – que envolvem a burocracia estatal em todos os seus níveis (executivo, legislativo e judiciário), as elites financeiras e históricas, o mercado em seus variados ramos, a cultura política local, as organizações midiáticas, os sindicatos e demais grupos populares organizados. Nas cidades contemporâneas, portanto, os interesses são heterogêneos, porém, o desequilíbrio causado pelo poder econômico impossibilita que tais conflitos aconteçam de forma democrática, quiçá participativa, recrudescendo a já notória desigualdade socioespacial.

Arantes e Pereira (2020), no artigo Poder político e desenvolvimento urbano em Salvador: tendências das últimas décadas, apontam que na cidade de Salvador, a partir dos anos 1990, aplica-se a ideia de empreendedorismo na gestão urbana, sobretudo através das parcerias-público-privadas (PPP) com o setor imobiliário. Nesse período, a cidade adota o modelo empresarial de planejamento, baseado em estratégias de produtividade, rendimento e competitividade – objetivos nem sempre compatíveis com demandas sociais. Os autores refletem, ademais, sobre o poder político em meio a esse cenário, sobretudo os embates entre os governos estadual e municipal, e como ambos se relacionam historicamente, entre alianças e conflitos, com a elite soteropolitana (centrada no capital imobiliário). O modelo de cidade empresa, assim como o investimento na imagem de Salvador como polo turístico internacional, teve como objetivo a resolução de tais conflitos de interesses dos diversos atores envolvidos no poder local. Caberia, portanto, ao setor privado, a mediação justa das diversas demandas, tendo como fator de decisão a eficiência econômica. Neste contexto, foram comuns ações como: flexibilização de legislações em favor do interesse de incorporadoras e construtoras; tentativas de privatização de diversas áreas públicas, como trechos da orla marítima (e algumas privatizações efetivas, como a do antigo mercado de peixes do Rio Vermelho); redução da representatividade e da participação popular nos conselhos de reformas urbanas; e grandes projetos de requalificação com altos investimentos em turismo e entretenimento, que muitas vezes implicaram em processos de gentrificação (ARANTES; PEREIRA, 2020). O desenvolvimento urbano contemporâneo de Salvador passa, portanto, pelos interesses das elites e suas negociações com os poderes estadual e municipal, sendo que as demandas populares acabam se submetendo à lógica empresarial, que coloca objetivos econômicos acima dos sociais.

3. O futuro da metrópole: as novas tecnologias e as velhas tendências históricas

No capítulo Salvador Futura: cenários e desafios, do livro Salvador no Século XXI: transformações demográficas, sociais, urbanas e metropolitanas, Corso-Pereira, Mello e Silva e Carvalho (2017), especulando sobre cenários futuros da RMS a partir de diversos estudos – já apresentados no presente trabalho, sobre a evolução urbana de Salvador, seus processos históricos e socioeconômicos – apontam para uma metrópole ainda mais periférica, fragmentada e incompleta. As principais tendências seriam: a contínua expansão urbana para as franjas, exacerbando a segregação socioespacial com a população de baixa renda em bairros afastados do centro e a de alta renda autossegregada em condomínios fechados; economia ancorada em atividades terciárias com trabalhos informais ou precários; desconexão de áreas periurbanas das zonas urbanizadas através de um sistema de transporte coletivo desarticulado; pressão sobre mananciais; e deterioração do centro histórico. De acordo com os autores, os pontos mais críticos que podem conduzir a tal cenário são: 1) o contínuo protagonismo do setor imobiliário na gestão e no desenvolvimento urbano e 2) a ausência de um plano integrado de mobilidade urbana que conecte a cidade de forma funcional.

Em relação às tendências da RMS nas próximas décadas no campo dos recursos tecnológicos, os autores apontam a expansão da REMESSA (Rede Metropolitana de Salvador, que é responsável pela construção de redes ópticas de alta velocidade), a expansão de provedores privados e as coberturas 4G e 5G (CORSO-PEREIRA; MELLO E SILVA; CARVALHO, 2017). Não se indica, portanto, uma relação direta entre tecnologia e planejamento urbano na Salvador futura. Nos anos mais recentes, entretanto, seguindo uma tendência mundial, percebe-se em Salvador o surgimento de iniciativas que se apoiam nas TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) como importantes ferramentas de gestão urbana. Seja por parte do setor público, ou do setor privado, são cada vez mais frequentes os investimentos em TIC como instrumentos indissociáveis de um novo modelo de gestão do espaço urbano que evolui dentro da lógica neoliberal em seu discurso pautado na eficiência e na concorrência: a smart city. Neste sentido, aponta-se para uma outra perspectiva possível do futuro da RMS, a ideia de uma Smart Salvador, sendo fundamental refletir sobre as implicações que a adoção de ferramentas tecnológicas na administração da cidade pode acarretar na questão da desigualdade socioespacial e no direito à cidade, sendo que algumas iniciativas que apontam o caminho da “smartização” da cidade já se encontram em curso.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/cidadesemtranse/smart-cities-salvador-e-as-novas-faces-da-segregacao/

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