Fabio Magalhães Candotti, da Frente Estadual pelo Desencarceramento do Amazonas, afirma que situação é calamitosa dentro dos presídios do Estado apesar da queda de mortes em 2020
O Amazonas foi durante anos recentes o epicentro do embate entre facções criminosas rivais no Brasil. Lá ocorreram dois grandes massacres penitenciários no Complexo Penitenciário Anísio Jobim que ajudaram a redesenhar a geografia do tráfico de drogas no país. Foi nesta unidade que a Família do Norte matou mais de 70 presos do Primeiro Comando da Capital, e posteriormente se viu acuada pelo ex-aliado Comando Vermelho. Mas em 2020, contrariando as expectativas, houve ao menos um preso vítima de homicídio atrás das grades, segundo estatísticas oficiais —contestadas por grupos que monitoram a questão. No entanto, de acordo com relatos dos detentos feito a defensores de direitos humanos, as autoridades parecem querer fomentar o conflito: “Em fevereiro a Secretaria de Administração Penitenciária transferiu cerca de 25 presos da FDN e do PCC, que estavam isolados no seguro [área isolada para presos jurados de morte ou de facções minoritárias] do Instituto Penal Antonio Trindade para um pavilhão do CV [rival das demais]. Passaram uma semana lá!”, afirma Fabio Magalhães Candotti, professor da Universidade Federal do Amazonas e membro da Frente Estadual pelo Desencarceramento do Amazonas.
Felizmente, a mudança foi revertida a tempo. “Fizemos a inspeção no dia 3 de março por conta disso. Quando chegamos já tinham desfeito. Mas o diretor confirmou. E os presos foram muito explícitos: servidores da administração atiçaram o conflito lá dentro”, diz. Esse não é o único problema dos detidos: agora também existe um rival invisível agindo dentro do sistema carcerário, a covid-19, que matou ao menos dois apenados. Ao novo coronavírus se soma também o aumento das violações de direitos dos presos, fruto também da militarização da gestão das penitenciárias, segundo denúncias de entidades que monitoram a situação nos presídios. “A principal mudança nos últimos anos foi a consolidação da Polícia Militar na administração. E se a PM está em ‘guerra’ com o ‘crime’, não é surpresa que as pessoas presas sejam tratadas como prisioneiras de guerra”, diz o professor.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Amazonas para comentar as afirmações feitas por Candotti, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.
Pergunta. Como é a situação atual dentro dos presídios do Amazonas?
Resposta. Sabemos muito pouco. E esse é o problema. O sistema carcerário já opera normalmente ocultando informações. Com a pandemia, isso piorou. Nos períodos em que as visitas de familiares estavam suspensas [voltaram em março], não sabíamos se tinha gente infectada ou morrendo lá dentro. Hoje continuamos sem ter informações confiáveis. Desde a primeira onda da pandemia, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP) não publica nada em seu site sobre resultados de testagem. E são somente dois óbitos por covid-19 e o segundo, registrado em março, não sabemos onde foi.
E isso não é só um problema para as pessoas presas e suas famílias, isso é um problema para a saúde pública. Em março, ao menos, conseguimos participar de uma inspeção em um pavilhão de uma penitenciária, junto com a Defensoria Pública e a Comissão de Direitos Humanos da OAB. O que vimos e ouvimos foi pior do que imaginávamos. Entre os principais problemas relatados pelos presos está o atendimento médico. Além disso, eles falam numa política de terror cotidiano. É um gestão militarizada.
P. Falta transparência das autoridades com relação à situação da covid-19 no sistema prisional amazonense?
R. Imaginem que depois de um ano de pandemia, se a gente considerar o site da SEAP, nas cinco prisões masculinas de Manaus, com mais de 4.500 presos, só se tem registro de um único caso de covid-19. Se isso está certo, é o lugar mais saudável da cidade. Somente em fevereiro, depois de muita pressão nossa, a Defensoria Pública conseguiu alguma resposta, com dados genéricos, que ignoram o interior do Estado e que até hoje não foram publicados no site da Secretaria. Segundo a própria narrativa da administração, começaram a aplicar testes em Manaus somente após o fim da primeira onda. Em uma das testagens de servidores, foram 68% de resultados positivos. Na outra, 28%. Entre pessoas presas, testadas só em agosto, aparecem 56 positivos que nunca entraram na contabilidade oficial.
Enfim, durante a segunda onda, começaram a aplicar testes quando já faltava oxigênio no Amazonas. Sobre mortes ocorridas durante a pandemia, nunca responderam. E só em maio do ano passado, houve pelo menos uma morte por “insuficiência respiratória” e outra por “causa indeterminada”. Das pessoas que sobreviveram e das que ainda estão lá dentro, ouvimos, no mínimo, muitos casos de perda de paladar e olfato. De resto, muitos dos sintomas dessa doença são comuns dentro de prisões: febre, dores no corpo, diarreia, tosse, problemas respiratórios… Um sobrevivente falou de pessoas desmaiando por falta de ar. Não foi por acaso que teve uma rebelião em maio do ano passado.
P. O que provocou esta rebelião na Unidade Prisional do Puraquequara em 2 de maio, a pior de 2020 no Amazonas que terminou com 17 feridos?
R. Em abril já tinha vazado um áudio com um pedido socorro por conta da quantidade de pessoas doentes. Depois, parece que houve uma sequência de castigos coletivos, ou seja, suspensão de banho de sol e de limpeza, racionamento extremo de alimentação e água, terror psicológico e agressões físicas. Isso por semanas, e no pico da pandemia. Quando se rebelaram, a primeira coisa que fizeram foi comer. Nos vídeos e áudios que vazaram durante a rebelião, falavam de pessoas doentes e morrendo. Mostraram que estavam sem fiação elétrica nos pavilhões, ou seja, sem luz e ventilador. Imagine o que é isso no calor de Manaus. Eles pediam a presença de representantes dos direitos humanos, da defensoria e da Vara de Execução Penal. Mas o que receberam foi a invasão da PM. Teve gente que tomou bala de borracha na boca e perdeu os dentes. Para não falar em fraturas. A gente passou uma semana acompanhando familiares com parentes em hospitais. E depois da rebelião, mais castigo coletivo.
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