No Brasil, Ocupe Estelita e o movimento Parque Augusta são exemplos de luta pela democratização real de espaços públicos. Na Itália, um passo além: o uso do Direito para garantir, nas cidades, zonas autônomas que não seguem a lógica do dinheiro
Por Rodrigo Savazoni | Imagem: Cais José Estelita, em Recife, ocupado
O cais José Estelita fica no centro histórico de Recife, Pernambuco, no nordeste do Brasil. É um terreno às margens do rio Capibaribe que corresponde a quase 14 campos de futebol e era propriedade da Rede Ferroviária Federal S.A. Em sua área, abriga construções históricas como pátios ferroviários e galpões de açúcar. Em 2008, foi vendido para um consórcio de empreiteiras que anunciou a construção de 12 torres de quarenta andares para uso privado. O projeto, que recebeu o sugestivo nome de Novo Recife – não, este não é o roteiro de um filme de Kleber Mendonça Filho –, revoltou arquitetos, ambientalistas, ativistas e grande parte da população. Apesar da localização privilegiada, que liga o centro histórico à parte rica da cidade, o terreno foi vendido pelo valor mínimo de R$ 55 milhões de reais, cerca de R$ 500 o metro quadrado, uma pechincha. Somente alguns anos depois, no dia 21 de maio de 2014, o consórcio das construtoras iniciou a demolição dos galpões. Foi quando um grupo de manifestantes ocupou o terreno.
Como na noite inaugural do 15-M espanhol, 15 pessoas acamparam no cais. Na madrugada, um dos ativistas foi agredido pelos seguranças privados. No dia 22, porém, a Justiça Federal concedeu liminar impedindo a derrubada dos galpões. E desse confronto nasceu uma mobilização popular que pode ser considerada um dos grandes exemplos de defesa de um comum urbano do Brasil: o #OcupeEstelita. Cais ocupado, em pouco tempo os ativistas reuniram milhares de pessoas em protestos com recital de poesias, exposição de fotos, feira de livros e outras intervenções artísticas. A notícia se espalhou pelas redes sociais, gerando repercussão positiva em todo o Brasil e no exterior. Assim, em 3 de junho, pouco mais de uma semana após o início da ocupação, a prefeitura anunciou a suspensão da licença que permitia a demolição do cais. Nos dias subsequentes, o terreno seguiu ocupado, enquanto prefeitura e empreiteiros, o Estado e o mercado, mancomunados, buscavam a portas fechadas uma solução favorável a eles. Com pouco menos de um mês de ocupação, o governador João Lyra ordenou a reintegração de posse, que foi realizada pela Polícia Militar com uso de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo, descumprindo um acordo com o Ministério Público que previa a saída pacífica dos manifestantes.
Quem imaginou que a repressão desarticularia o movimento se enganou. De lá para cá, o #OcupeEstelita tornou-se um campus avançado de experiências urbanas. De acordo com informações dos próprios organizadores, ao longo dos últimos três anos eles realizaram 64 oficinas, 6 assembleias, 5 feiras, 4 ocupações, 10 manifestações de rua; promoveram 23 debates, 14 aulas públicas, 2 palestras, 5 rodas de diálogo, 98 apresentações culturais, 7 mostras artísticas, 21 intervenções, 22 exposições de vídeo; e estiveram presentes em 5 audiências públicas, onde fizeram 297 contribuições de diretrizes urbanísticas para a área. O movimento criou até um plano urbanístico específico para o cais Estelita. O litígio, no entanto, segue em curso e parece longe de um desfecho.
O #OcupeEstelita é um caso eloquente das tensões que vivemos em nossas urbes. A meu ver, ilustra exatamente aquilo que o geógrafo britânico, David Harvey, defende como direito à cidade, algo que, segundo ele, só pode ser vivenciado a partir das lutas sociais, da ação dos movimentos sociais [1]. O processo histórico demonstra que os ricos costumam exercer seu direito à cidade sem se preocupar com a exclusão que suas ações geram. Dotados de poder econômico e político, moldam suas cidades de acordo com seus interesses, como no caso da Nova York dos anos 1970, dos irmãos Rockfeller. Harvey chega a dizer que é preciso, então, encher de significado a expressão direito à cidade, que, em si, é um conceito vazio. Não pode ser, como muitas vezes aparenta, uma espécie de ética agradável, que gera comunhão entre todos os habitantes de um determinado território. O direito à cidade, a partir desse olhar, se constrói na luta por afirmar o comum urbano e ao se contrapor à especulação imobiliária.
Pergunto, então, se não foi exatamente isso que os ativistas do #OcupeEstelita fizeram, inclusive explodindo as fronteiras do movimento para ganhar o apoio do conjunto da sociedade.
Em entrevista para este livro, um dos ativistas do #OcupeEstelita, Rud Rafael, explica que a compreensão de que estavam imersos na defesa do comum foi consequência do processo de resistência, da experiência de viver a ocupação e da coletivização do espaço. Seu depoimento corrobora a ideia de que o comum não existe sem o processo de produzi-lo. “Pode-se dizer que isso foi bem representado na insígnia que marcou as mobilizações: ‘A cidade é nossa! Ocupe- a!’. Nesse sentido, a gente tem um processo que estabelece a condição geral de que a cidade é comum e que o processo decisório em torno de como e para quem ela está sendo construída tem ameaçado essa construção”. Rafael explica que, a partir desse processo,
foram sendo formuladas outras questões, como a defesa do direito à paisagem, que dá visada para um conjunto de patrimônios tombados e configura um cartão-postal da cidade, e do patrimônio histórico, posto que o pátio ferroviário é o segundo mais antigo do país. No transcorrer da resistência, tantas outras lutas abarcaram no Cais, fazendo com que o território em questão se tornasse um polo agregador de várias discussões e resistências, um símbolo do potencial de revitalização que a apropriação coletiva é capaz de criar. [2]
A ocupação do Cais foi gerida por um processo de assembleias. Rafael destaca que a experiência produziu conflitos e aprendizados, mas acendeu a chama do movimento em defesa de uma outra cidade. O resultado foi a transformação da narrativa oficial sobre Recife, que estava nas mãos do mercado imobiliário A visão de que a capital pernambucana era um espaço de violência e que a segurança só seria possível em condomínios fechados ou em arranha-céus com cara de bunkers, aprofundando a exclusão dos pobres e periféricos, foi superada pela ideia de “cidade roubada”, saqueada pelas elites econômicas em aliança com a elite política. O comum surge nesse contexto como um sopro de esperança, terceira dimensão possível, baseada na auto-organização e na coletivização do espaço urbano em benefício das maiorias. O espaço público, ressignificado, tornou-se espaço de encontro e de produção da política.
A ocupação foi a radicalização de uma prática política que já vinha sendo desenvolvida na defesa do Cais e que foi desencadeada pela atitude destrutiva das empreiteiras, na tentativa de início de demolição ilegal dos armazéns de açúcar. Até então, a experiência das redes sociais, das lutas travadas no Judiciário, das ocupações temporárias do espaço público tinham sido importantes ferramentas políticas, mas uma ocupação permanente garantiu um salto na forma de viver. Diversos atores sociais que até então não tinham se envolvido na luta passaram a ser sujeitos importantes no processo (coletivos estudantis, organizações autonomistas e outros setores ligados a lutas antissistêmicas). Isso enriqueceu bastante a forma de fazer política, principalmente no que diz respeito às práticas de ação direta. [3]
Segundo o ativista do MTST, a síntese política desse processo foi a ampliação das visões e das práticas políticas por parte dos movimentos sociais, numa equação que envolveu “uma disputa contra o Estado (confrontando a lógica e as decisões dos entes envolvidos), pelo Estado (por exemplo, com a exigência de que as decisões passassem pelos espaços de gestão democrática institucionais, como o Conselho da Cidade e as audiências públicas) e para além do Estado (trabalhando fundamentalmente as práticas de autogestão do território)”.
Outro caso brasileiro emblemático de peleja por um comum urbano é o de um terreno de 24 mil metros quadrados localizado no centro de São Paulo, entre as ruas Augusta, Caio Prado e Marquês de Paranaguá. Quarenta anos atrás, atraídos pelo remanescente de mata nativa que habita o local – única área verde rodeada por um oceano de concreto – cidadãos paulistanos, muitos deles moradores do entorno, passaram a frequentar esse terreno informalmente e a geri-lo de maneira autônoma. Em 1996, porém, a terra foi comprada por uma incorporadora para especulação imobiliária, e em 2001 a associação de moradores do bairro realizou um abaixo-assinado pedindo ali a criação de um parque público, o que foi definido pelo Plano Diretor paulistano de 2002. É nesse momento que surge a ideia do Parque Augusta, e o bosque é então tombado pelo Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo em 2004.
De lá para cá a história tem se arrastado em uma disputa que envolve a cidadania, o mercado imobiliário e o poder público em quase sua totalidade: Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público.
Um dos episódios singulares dessa espiral sem fim – e que nos serve de gancho para uma análise sobre os comuns urbanos – foi a criação, em 2013, do Organismo Parque Augusta. O OPA se configurou como um movimento autogerido e horizontal, organizado por meio de assembleias presenciais, grupos de trabalho, ações diretas e pela internet. Com uma única reivindicação: a criação do parque 100% público, sem prédios, sem especulação imobiliária e com administração popular. O movimento foi responsável pela realização de festivais independentes, que levaram milhares de pessoas ao “organismo- parque”, e por ações diretas permanentes, como piqueniques, hortas comunitárias, atividades culturais e gastronômicas, construção de mobiliário urbano, festas e shows – também produziu uma série de publicações com enfoque no direito à cidade. Mesmo depois de o terreno ter sido fechado pela incorporadora, na mesma época que o então prefeito da cidade, Fernando Haddad, sancionou a Lei 15.941 criando o Parque Augusta, o OPA seguiu realizando mobilizações e intervenções. Em 2015, com a prefeitura querendo mediar um acordo que envolvesse a construção do parque, mas também de três grandes torres, os ativistas ocuparam o terreno. Depois de 45 dias, porém, a ocupação foi reprimida, com reintegração de posse garantida pela Polícia Militar. Nos últimos dois anos, o MP mediou um acordo para que a prefeitura use recursos recuperados pelas ações de combate à corrupção na construção do parque e os advogados do OPA obtiveram uma decisão da Justiça que considerou o trancamento dos portões ilegal. Em 2017, novo governo na cidade, a projeção mais concreta é de que o mercado vença a guerra.
Narradas essas histórias, talvez caiba a pergunta: por que o #OcupeEstelita e o Parque Augusta podem ser considerados exemplos de comuns urbanos? A teoria pode nos ajudar a respondê-la. Na introdução do livro The City as Commons: A Policy Reader, lemos a reprodução de um trecho de um artigo de Sheila R. Foster e Christian Iaione: “[…] a reivindicação dos bens comuns está alinhada com a ideia por trás do ‘direito à cidade’ – o direito de fazer parte da criação da cidade, o direito de fazer parte dos processos decisórios que moldam a vida dos habitantes da cidade e o poder dos cidadãos de moldar as decisões sobre os recursos coletivos em que todos nós temos uma participação” [4].
Processos vivos como o #OcupeEstelita e o Parque Augusta são emblemas desse possível comum urbano, que é uma forma de efetivação do direito à cidade a partir da negação do capital e dos governos a ele dóceis. Porque a cidade do comum é uma cidade coconstruída pelos seus habitantes, uma cidade que permite a governança colaborativa do que nos habituamos chamar espaço público: as ruas, praças, parques, várzeas dos rios, rios, bosques remanescentes etc. Essa cidade do comum também permite a reversão de processos de privatização, dando lugar a novos arranjos comunitários de usufruto cidadão, como ocorre quando terrenos baldios passam a ser usados para a construção de hortas urbanas, solários ou mesmo praças autogestionadas. Os dois casos são também demonstrações de uma nova cultura cidadã, que não pede permissão para se afirmar e produz, como quer o arquiteto grego Stavros Stavrides, um espaço que “acontece”. Ou, numa interpretação livre do geógrafo Milton Santos, que cria fluxos para os fixos. “Uma potencial cidade liberada pode ser concebida não como um aglomerado de espaços liberados, mas como uma rede de caminhos, como uma rede de espaços pertencentes a ninguém e a todos ao mesmo tempo, os quais não são definidos por uma geometria de um poder fixo mas pela abertura a um processo constante de (re)definição.” [5]
Podemos compreender o comum urbano, portanto, como um processo social que busca promover na cidade capturada pelo mercado – em específico pelo neoliberalismo – novas dinâmicas de encontro, articulando duas redes complementares: a virtual e a vivencial (atual). Não à toa, o teórico Manuel Castells, ao analisar os protestos ocorridos no mundo a partir da Primavera Árabe de 2011, fala do surgimento de um novo ambiente de mobilização política, que ele conceitua como espaço da autonomia. O que é comum, afinal, não tem um dono, mas muitos; é fluido, jamais fixo.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/como-criar-uma-politica-urbana-do-comum/
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