Clipping

A privatização da Eletrobras é ruim para a população e péssima para a natureza

No Brasil, temos a 2ª tarifa energética mais cara do mundo. A privatização da Eletrobras vai contra a tendência mundial, dificulta o combate à crise climática e deve elevar as tarifas e aumentar os conflitos nas regiões de grandes reservatórios para que poucos acionistas lucrem mais – a Fiesp estima uma transferência de renda de R$ 460 bilhões.

Por Fernando Machado

No momento em que o país está novamente diante da possibilidade de um novo racionamento de energia elétrica, o governo Bolsonaro tenta aprovar, em regime de urgência, a privatização da Eletrobras, maior empresa de energia elétrica da América Latina. Ao contrário do que afirmam os entusiastas da privatização e das reformas do setor elétrico, a crise que vive o setor elétrico nada tem de nova. Pelo contrário, ela é crônica e se manifesta nas elevadíssimas tarifas – 2ª mais cara do mundo pelo método da paridade do poder de compra –  e no déficit estrutural de investimentos do setor. 

O episódio é mais uma demonstração de que o capital, que impõe sobre a sociedade sua lógica expansionista independentemente do caráter devastador de suas consequências, é incapaz de dar respostas aos nossos problemas estruturais. Ao servir de suporte à contrarreforma neoliberal do setor elétrico, a privatização da Eletrobras é tida como uma medida central para abrir caminho para o avanço do processo de mercantilização da energia elétrica, dando a ela tratamento igual a outras commodities, estimulando a liberalização do mercado elétrico e fomentando, assim, o crescimento de mercados secundários e a configuração de mercados futuros.  

Privatizar os lucros e socializar os gastos

Aprivatização e a liberalização do setor tem como objetivo possibilitar a captura dos benefícios sistêmicos, convertendo vantagens competitivas em fontes de rendimentos privados extraordinários. Assim, tudo aquilo que deveria servir para a geração de vantagens de toda a sociedade na forma de tarifas mais baixas para os consumidores, pode se converter em uma fonte adicional de lucros particulares. Para que isso ocorra é necessário também a ordenação do setor em uma estrutura concorrencial e fragmentada.

Isso explica, em parte, a pressa para colocar na ordem do dia a privatização da Eletrobras. Em primeiro lugar porque a realização da operação antes da implementação do novo marco regulatório permite aos acionistas privados da empresa absorver uma parcela maior da valorização da empresa em consequência das mudanças regulatórias liberalizantes, previstas no Projeto de Lei 414/2021, que altera o marco regulatório do setor, já aprovado pelo Senado Federal e  na Câmara dos Deputados. Em segundo lugar, porque o fim do Regime de Cotas, proposto na MP de privatização da Eletrobras, permite a transferência de um grande volume de energia elétrica do mercado regulado para o mercado livre de energia elétrica. Essa operação ampliará o volume de liquidez das negociações no ambiente de contratação livre, incitando seu crescimento com vistas a dar suporte a posterior transição para o novo modelo regulatório e comercial.

Racionamento e as parcerias público-privadas

Oprocesso de liberalização do setor elétrico teve um marco importante na reforma do setor promovida pelo governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 1995. Essa reforma consistiu na criação de um mercado livre de energia, na privatização de empresas, no estimulo à maior participação dos capitais privados e na entrada de capitais estrangeiros. Com ela, a operação e o planejamento do setor que, em grande medida, se concentravam na Eletrobras, foram dissociados. Em um curto período de tempo, a falta de investimentos privados resultou no racionamento de energia, em 2001. 

O racionamento obrigou o governo a interromper temporariamente o radical processo de liberalização em curso. O rápido fracasso da reforma, que resultou num racionamento penoso para a população, foi um fator de extrema importância na derrota do PSDB nas eleições presidenciais de 2002. A grave crise provocada pelo racionamento e a vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) abriram uma grande janela de oportunidade para uma verdadeira reforma do setor elétrico. 

O PT trazia em seu programa a reforma estrutural do setor elétrico, em um momento em que as propostas de intervenção estatal e de reestatização das concessionárias privatizadas encontravam grande eco nos movimentos sociais organizados e na população em geral.  Todavia, a filiação do governo à estratégia de conciliação levou ao abandono do programa e à adoção de medidas que tentavam remendar o modelo de mercado, que, por fim, manteve sua estrutura básica. Essa opção permitiu que o processo de liberalização do setor elétrico continuasse avançando, ainda que em uma transição mais lenta.

Em lugar da liberalização total do mercado elétrico, estabeleceu-se uma divisão no segmento de geração em dois mercados, o Ambiente de Contratação Livre (ACL), onde as usinas de energia elétrica negociam energia elétrica diretamente com intermediários, comercializadoras, ou grandes consumidores, como indústrias, e o Ambiente de Contratação Regulado (ACR), onde as usinas vendem energia, através de leilões, para as distribuidoras de energia. Assim, o mercado livre continuou a crescer, mas sempre escorado pelo mercado cativo, que fornecia a previsibilidade e a rentabilidade necessárias à estruturação dos investimentos, usualmente caracterizados por serem intensivos em capital e de longo prazo de maturação. Diferente do período do racionamento, o investimento tinha também uma âncora nas estatais e no mercado cativo.

A solução encontrada para lidar com a insuficiência e instabilidade dos investimentos privados foi contar com o valioso auxílio das empresas estatais, Eletrobras e BNDES. A partir de 2003, a Eletrobras voltou a promover investimentos em geração e transmissão, especialmente em projetos que se mostravam pouco atrativos para o setor privado, e instituiu parcerias público-privadas nas chamadas Sociedades de Propósito Específico (SPEs), quase sempre com participação minoritária. Foram mais de 175 participações do tipo entre 2005 e 2018. Nos projetos estruturantes, como Belo Monte e Jirau, a Eletrobras entrava com o conhecimento técnico, assumia boa parte do risco do negócio e arcava com grande parte das pesadas garantias. A empresa funcionava também como promotora de programas de estímulo a investimentos, como o Proinfa, de fomento à energia eólica. O BNDES, por sua vez, participava do incentivo ao investimento concedendo crédito subsidiado para os setores público e privado.

Durante os governos do PT, portanto, as estatais funcionaram como meios de sustentação do avanço da liberalização do setor elétrico, seja via subsídios ou assumindo os riscos que ancoravam o avanço do investimento privado no setor. Essa adaptação do modelo garantiu a continuidade da privatização e internacionalização do mercado elétrico, a partir da entrada de diversos grupos estrangeiros no setor, e também o crescimento gradual dos mercados secundários de energia elétrica e de debêntures. 

Em 2012, durante o governo da ex-presidenta Dilma Rousseff, foi aprovada a Lei 12.783, que permitiu ao governo prorrogar, por até 30 anos, concessões de geração (usinas hidrelétricas e térmicas) e transmissão, instituindo o regime de cotas. Nesse regime, após o vencimento das concessões, os ativos passariam para a União e os novos concessionários receberiam apenas uma remuneração pela operação e manutenção dos ativos. As tarifas das usinas em regime de cotas são reguladas e estabelecidas a partir dos custos de produção, ao contrário do Ambiente de Contratação Livre, onde o preço é definido a partir das negociações entre os produtores, consumidores e comercializadores. 

O estabelecimento de uma tarifa para as cotas muito abaixo do custo real de operação e manutenção trouxe prejuízo à Eletrobras e reduziu sua capacidade de investimentos. A revisão dessas tarifas, e a consequente recuperação da capacidade de investimentos da Eletrobras ocorreu apenas em 2016. Mesmo após essa correção das tarifas, a Eletrobras recebe pela energia elétrica vendida no regime de cotas tarifas cerca de R$60/MWh, uma das mais baratas do mundo. Já no ambiente de contratação livre, os preços médios da energia estiveram acima de R$200/MWh em 2020.

A Lei 12.783 desagradou os entusiastas da liberalização do mercado sem, contudo, conter seu avanço. Entre 2005 e 2020, o número de agentes no mercado livre passou de 662 para 10 mil, entre comercializadores, consumidores livres e geradores independentes. Nesse mercado há um grande volume de negociações de curto prazo. Os preços podem apresentar picos de variação que ultrapassam 200% em uma semana. A atividade de especulação também é intensa, e o direito sobre a energia elétrica é transacionado em média cinco vezes antes de passar do produtor ao consumidor final. Apesar de não envolver nenhuma atividade operacional e atualmente concentrar apenas 30% do consumo de energia elétrica do país, o segmento de comercialização tem se destacado como um dos mais lucrativos do setor. Essa lucratividade tem atraído novos participantes, como a XP Investimentos e a recém-privatizada BR Distribuidora.

Apesar dos avanços, no caso brasileiro, a “transição para o mercado” enfrenta uma dificuldade adicional, que é dada pela incompatibilidade entre o modelo regulatório liberalizado, que procura dar um tratamento cada vez mais individualizado a cada etapa do processo de produção de energia elétrica, e as características operacionais do sistema elétrico brasileiro, como nos alerta há tempos o especialista em Energia Elétrica Roberto D’Araujo.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/06/a-privatizacao-da-eletrobras-e-ruim-para-a-populacao-e-pessima-para-natureza/

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