Ele renegou o racionalismo eurocêntrico, baseado em fragmentação do saber, na busca da certeza e no tecnomercado. E sua aposta na indeterminação levou-o a ver na ação e na metamorfose as únicas esperanças contra a devastação e a barbárie
Por Antônio Sales Rios Neto
“Com frequência, é preciso ser um desviante minoritário para estar no real.
Embora, aparentemente, nele não haja nenhuma perspectiva,
nenhuma possibilidade, nenhuma salvação, a realidade
não está paralisada para sempre, ela tem seu mistério e sua incerteza.
O importante é não aceitar o fato consumado”
Edgar Morin
A inaudita perspectiva de uma extinção precoce da espécie humana em decorrência de suas próprias ações, como vêm apontando muitos especialistas nas ciências da Terra, provavelmente será um dos principais estigmas que deve assombrar a humanidade neste século XXI. Inauguramos um tempo sombrio, que nasce sob o signo ignominioso de uma profunda agudização do processo de destruição dos ecossistemas, em aceleradíssimo curso nesta Era do Antropoceno, no qual os humanos alcançaram, por meio da hegemonia capitalista predatória globalizada, o estágio mais avançado do seu ímpeto de dominação e subordinação da natureza e, por consequência, de pulsão de morte e de autoaniquilação.
O trágico século XX foi marcado pelas guerras e pelos totalitarismos desencadeados no seio dos dois principais projetos civilizatórios fracassados – o capitalismo e o socialismo real –, os quais rivalizaram ao longo do período em que a humanidade vivenciou os maiores horrores contra a condição humana. Estima-se que pelo menos 187 milhões de vidas foram dizimadas (Brzezinski, 1993) por deliberações humanas, o equivalente a algo em torno de 12% da população mundial em 1900. Neste início do século XXI, com a insistência da humanidade em continuar na rota ecocida do sistema-mundo capitalista, a degradação ambiental em escala planetária, combinada ao crescente declínio das democracias e às ameaças dos avanços do fenômeno da algoritmização da vida, ambos patrocinados pela globalização insana de uma visão tecnomercadológica de mundo, constituem os dois principais motores da regressão e da barbárie civilizatória que se anunciam, já para as próximas décadas.
Como compreender as forças que nos arrastaram, ao longo do tortuoso percurso civilizatório, para um modo de viver tão incongruente com a natureza? Como se contrapor a uma sociabilidade capitalista tão dissonante das dinâmicas que sustentam a imensa teia de vida do nosso planeta e que está nos empurrando para uma realidade tão distópica e insustentável? Como entender e resistir a um comportamento humano tão esquizofrênico, ecocida e, no limite, suicida?
Um pensador planetário
Uma das respostas a essas grandes indagações do nosso tempo está na trajetória de vida de um dos mais prodigiosos pensadores contemporâneos, que hoje (8/7/2021) celebra seus 100 anos de insurgência contra um modo de viver de viés unidimensional, fragmentado, controlador e, portanto, desconectado da complexidade do mundo real. Estamos falando do multifacetado Edgar Morin, notável pensador francês que, mesmo tornando-se um centenário, conseguiu manter, até os dias atuais, a sua lucidez e capacidade de compreender e lidar com as realidades tão precárias que ele mesmo vivenciou desde os tenebrosos anos 1920, incluindo-se as adversidades que se impuseram à sua própria vida pessoal. Como ele mesmo sempre gosta de mencionar, uma vida inspirada pelos versos do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminhante, não há o caminho. O caminho se faz ao andar, ao andar se faz o caminho”.
O renomado sociólogo francês Alain Touraine o chamou de “humanista planetário”. De fato, Morin é reconhecido por muitos como um pensador planetário que, para compreender as muitas facetas do real, optou por transitar, simultaneamente, pela sociologia, filosofia, antropologia, biologia e muitas outras áreas do saber, sempre buscando as conexões (invisíveis aos olhos da racionalização disjuntiva, que tudo separa) entre as diversas ilhas de conhecimento e integrando-as a partir de um “pensamento do contexto e do complexo” que pudesse dar um melhor entendimento das contradições da condição humana e de sua cada vez mais desajustada interação com a realidade complexa que a cerca e que a desafia permanentemente.
Desde cedo, Morin começou a perceber que a realidade não poderia ser reduzida às noções de ordem, certeza, separação e causalidade linear – atributos considerados alicerces dos ideais iluministas da modernidade, ainda muito dominantes na contemporaneidade. Para ele, a busca da compreensão do real está nas incessantes interações e retrointerações entre uma infinidade de componentes que o integram, isto é, a realidade é mais bem compreendida pelo entrelaçamento de atributos como incerteza, desordem e acaso.
Por isso, o estranho mundo real, na visão de Morin, comporta riscos constantes de erros e ilusões, face à aleatoriedade que o permeia. “A complexidade”, afirma Morin, “é o desafio, não a resposta”. Diferentemente das visões de mundo que moldaram a experiência humana no passado e ainda a moldam no presente, a complexidade (a origem do termo complexo vem do latim complexus, que significa “o que é tecido junto”) nos remete a uma visão de mundo aberta, plural e incerta. Ela procura acolher e conciliar as inúmeras “verdades” que tentam decifrar a realidade. Ela reconhece que tais “verdades” são indecifráveis, pois resultam de um oceano de relações e de incessantes interações que integram o real. Por isso, lidar com o real é estar em permanente processo de descoberta, desconstrução e reconstrução, em um constante diálogo com a realidade, cujos principais atributos parecem mais próximos da ideia de aleatoriedade, diversidade, ambiguidade, pluralidade, instabilidade, multiplicidade, imprevisibilidade e incerteza.
Uma vida desafiada pelo inesperado
Sua própria experiência de vida, intelectual, política e pessoal, o levou a essa percepção de um real imponderável. Morin já chega ao mundo, em 8 de julho de 1921, tendo seu primeiro contato com o imprevisível. Segundo ele, “o parto foi um momento trágico, no sentido de que a vida de minha mãe necessitava da minha morte e minha vida devia provocar sua própria morte. Minha mãe sobreviveu à expulsão, mas eu nasci quase morto, estrangulado pelo cordão umbilical.” A mãe, Luna Beressi, uma judia sefaradita, em razão de ter contraído gripe espanhola, sofria de uma grave doença cardíaca, o que a desaconselhava ter filhos. Beressi, com quem Morin estabeleceu uma ligação maternal muito forte, faleceu 10 anos depois, o segundo imprevisível devastador na vida de Morin, que lhe provocou “uma Hiroshima interior”.
A partir daí, Morin entra num processo de imersão pessoal, buscando refúgio na literatura e no cinema, principais influências na sua formação. “A literatura, assim como o cinema”, na ideia de mundo de Morin, “quando bem concebidos, representam uma aprendizagem da compreensão humana (…) Entendemos o próximo muito melhor do que na vida real, e é esta compreensão que é preciso inserir na realidade”.
Sua adolescência foi marcada pelas turbulências da Europa dos anos 1930, que se afundou em regimes ditatoriais implacáveis e sanguinários. Em 1940, antes dos nazistas chegarem à França, Morin, com apenas 19 anos e já sem a proteção do seu pai – Vidal Nahoum, também judeu sefaradita, que havia sido convocado para guerra –, resolve assumir sua liberdade. Pega um trem e vai se refugiar em Toulusse onde conseguiu continuar seus estudos. Poucos anos depois, em 1942, para escapar da ocupação das tropas nazistas, foge para Lyon. “Conquistei minha liberdade”, diz ele, “contraditoriamente, quando a França perdeu a sua”.
Após a guerra, em 1945, Morin voluntariou-se para ajudar na reconstrução da Europa e foi nomeado oficial do exército francês de ocupação para trabalhar numa Alemanha devastada. Lá escreveu seu primeiro livro, O ano zero da Alemanha (L’An zéro de l’Allemagne. Paris, França: La Cité universelle, 1946.). Nessa obra, Morin registra suas primeiras percepções acerca da complexidade do real. Ele mergulha nas contradições da condição humana ao refletir sobre a trágica experiência do povo alemão na guerra. Como uma sociedade que produziu mentes notáveis como Hegel, Marx, Brecht, Kant, Beethoven e tantos outros foi capaz de se deixar levar pelo devaneio nazista? “Perplexo, olhando aquele país destruído”, reflete Morin, “me perguntava como era possível que aquela nação, que abrigou a mais rica filosofia, a mais bela música, uma cultura extraordinária, tenha sucumbido ao nazismo.”
Assim foi a adversa trajetória de Morin nas suas primeiras experiências de vida. Outros momentos marcantes de sua vida podem ser consultados no sítio eletrônico produzido pelo SESC-SP (acesso aqui), que reúne o melhor acervo, disponível no Brasil, sobre a vida, a obra e a visão de mundo desse extraordinário pensador.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/cem-anos-morin-filosofo-da-complexidade/
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