Quem diria: nos próprios EUA, a ideia de que os Estados “só podem gastar o que arrecadam” – mito central da ditadura financeira – balança. Abre-se espaço para a mudança, começando por serviços públicos de excelência e Renda Básica
Por Ladislau Dowbor | Egon Schiela, “Mulher sentada com joelho dobrado” (1917, detalhe)
O ciclo virtuoso
Hoje temos 820 milhões de pessoas passando fome, quando há comida sobrando por toda parte: só de grãos o mundo produz mais de um quilo por dia por pessoa, sendo que o Brasil produz 3,5 kg, isso sem contar tubérculos, frutas, legumes etc. Não há nenhuma razão econômica ou técnica para faltar alimento para ninguém. O mundo produz, com um PIB da ordem de 85 trilhões por ano, o equivalente a 18 mil reais de bens e serviços por mês, por família de quatro pessoas. No Brasil, o PIB de 2019, 7,3 trilhões de reais, equivale a 11 mil reais por mês por família de quatro pessoas. É dizer que no mundo não faltam recursos. Nosso problema não é econômico, é de organização política e social.1
A lógica de um sistema que funcione não apresenta mistérios. Como ordem de grandeza, o bem-estar das famílias depende em 60% de dinheiro no bolso, e em 40% de acesso aos bens de consumo coletivo, a escola para os filhos, a saúde e a segurança para todos uma rua asfaltada, um córrego tratado. O dinheiro no bolso permite pagar o aluguel e a compra no supermercado, mas não se compra a delegacia, o hospital, a escola: precisamos ter acesso, são bens que funcionam melhor sob forma de salário indireto, como serviço público, gratuito e universal. Assim que assegurar uma sociedade que funcione, e o bem-estar generalizado das famílias, não apresenta mistérios em termos econômicos: trata-se de assegurar o básico para todos, por exemplo com uma renda básica universal, e o acesso aos bens de consumo coletivo, em particular as políticas sociais. Como vimos, o que o planeta hoje produz permite assegurar o básico para todos, tanto em termos de renda básica como de bens de consumo coletivo, bastando para isso reduzir moderadamente a desigualdade. O mundo é hoje suficientemente rico para começar a pensar no uso inteligente do que temos.
Reduzir a desigualdade não representa um custo, e sim um estímulo à economia. No Brasil as empresas trabalham usando cerca de 70% da sua capacidade. Um empresário escreve em “O Estado de São Paulo” que realmente “está mais barato eu contratar, mas para que vou contratar se não tenho para quem vender? ” A empresa efetivamente produtiva não precisa de discurso ideológico, de uma fada chamada “confiança”: precisa de uma população com dinheiro para ter para quem vender, e de crédito barato para poder financiar a produção. No Brasil não tem nem uma coisa nem outra. O que aqui nos interessa, é que em condições de subutilização das capacidades produtivas, mais dinheiro assegurado na base da sociedade gera consumo de massas e, portanto, demanda para as empresas, que por sua vez passam a produzir e a contratar mais. Ambos geram mais receitas para o Estado, através do imposto sobre o consumo e dos impostos sobre os processos produtivos, equilibrando a conta do Estado.
Esta lógica básica do ciclo econômico é transparente e funciona. Funcionou ao tirar os EUA da crise de 1929, com o New Deal do Roosevelt, com as políticas de Estado de Bem-estar do pós-guerra em numerosos países, e é como funciona hoje na China, na Coreia do Sul, nos países nórdicos, na Alemanha e outros, com sistemas políticos diferenciados, mas com a mesma lógica básica de equilíbrio no ciclo econômico, entre a demanda das famílias, o investimento produtivo das empresas, e o investimento público em infraestruturas e políticas sociais. O que não funciona, é precisamente quando a desigualdade trava o consumo das famílias, reduzindo por sua vez a intensidade de produção das empresas, o que gera desemprego, e todos esses fatores reduzem os recursos do Estado, aprofundando o déficit. No Brasil, em nome de combater o déficit – a boa dona de casa só gasta o que tem – quebrou-se a economia, e está-se repassando rios de dinheiro aos intermediários financeiros.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/dowbor-quando-o-pesadelo-neoliberal-acabar/
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