O sociólogo e militante socialista Florestan Fernandes nasceu neste dia em 1920. Em homenagem, republicamos seu artigo que afirma a atualidade do pensamento revolucionário de Marx, que não reside na letra de suas obras, mas sobretudo no apelo para estudar e reinterpretar a história, a fim de liberar a imaginação inventiva a serviço da emancipação humana.
Por Florestan Fernandes
Hobsbawm, em um livro inteligente e provocativo, procurou demonstrar que o drama da Europa consistia na conjunção (ou tradição) de intelectuais revolucionários e uma sociedade que repele a revolução. Durante a leitura senti o historiador, que vivera o pós-bolchevismo, lidando sutilmente com convicções íntimas e a justificação dos erros da União Soviética nas questões internas do partido, dentro de suas fronteiras, e na política internacional de concessões à “Guerra Fria”.
Nós, no Brasil, nem isso poderíamos fazer. Os nossos partidos de esquerda viram-se forçados a um oportunismo tortuoso, compensado com momentos de exaltação teórica, e só uma vez chegaram à prática, com a experiência da Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1935. Esse “revolucionarismo subjetivo” começou a sofrer retificações, exatamente na época em que ruiu a “Guerra Fria” e se proclamou o novo credo burguês da “morte do socialismo”. Os intelectuais, na maioria, quando desligados da prática preferem salvar a pele, para não sacrificar a consciência.
Houve um deslocamento nem sempre coerente e encoberto em direção à social democracia, que não seria um mal em si. O mal procedeu na disposição de ceder terreno sem luta e na instrumentalização da social democracia para a condição de mão esquerda da burguesia. Esse processo continua e nos ameaça com a perda das poucas alternativas partidárias de construção de uma sociedade nova.
Gostaria de tratar do tema como sociólogo. Na PUC-SP, por exemplo, onde passei a lecionar no último trimestre de 1977, deparei com uma oferta rica de cursos. Havia um que focalizava a organização social. Em um ímpeto automático, perguntei por que não havia um curso que tratasse não apenas da mudança social, mas especificamente da revolução social. Aí estariam dados os dois pólos: a ordem e a sua reprodução; a ordem e sua transformação radical ou pelo avesso. Meus colegas do curso de pós-graduação, que eram abertos à reflexão crítica, logo endossaram essa complementação necessária.
De uma perspectiva macrossociológica, a revolução é mais importante que a estabilidade social, vistas como assuntos específicos. Os evolucionistas foram combatidos por causa da predominância de abordagens mecanicistas e positivistas. Não existiria, porém, “evolução social da humanidade” ignorando-se mudanças sociais abruptas, provenientes de invasões, difusão cultural e mudanças sociais que adaptassem a ordem a inovações que conduziam à reforma social e à revolução.
Se ultrapassássemos os raciocínios circulares, a ordem social não ganharia muito com a obsessão comparativa. Especialmente em sociedades estratificadas, nas quais a ordem social pode conter contradições e tensões mais ou menos violentas em virtude de sua constituição. É um mito postular que os dinamismos reprodutivos são mais importantes que os transformadores. Nessas sociedades, a estabilidade procede do monopólio do poder por uma categoria social, uma casta, um estamento ou uma classe. Como explicaram Marx e Engels em A ideologia alemã, o monopólio do poder e a estabilidade vinculam-se à supremacia ou à dominação predominante.
Isso não pressupõe, por si só, a existência de tensões e de contradições que exijam algum tipo de mudança social. E a revolução (como a reforma social, de outro ângulo) cria as motivações da rebelião. A dominação de classe, que nos interessa aqui, tende a reforçar a estabilidade e a prolongar a ordem social existente além da capacidade de tolerância e submissão de outras classes ou dos sem-classes, que chegam a uma visão negativa da ordem social e terminam por desejar explodi-la, eliminando a ordem prevalecente e a dominação de classe.
A desintegração da era feudal foi prolongada. Apesar da dispersão dos núcleos de população e do grau de autonomia dos grandes senhores, a solidariedade dos estamentos dominantes conteve as impulsões que poderiam acelerar os ritmos históricos. O preço da salvação da nobreza decidiu-se pela centralização do poder nas mãos das casas nobres mais poderosas, no aparecimento resultante da monarquia e na dissociação progressiva dos artífices-comerciantes de controles rígidos. Foi assim que surgiram as premissas históricas da difusão do capital sob a forma de moeda, da propriedade privada moderna e das relações mercantis correspondentes. Aos poucos, esse estamento intermediário ajudou a soterrar a ordem feudal e tornar-se ele próprio muito importante na sociedade emergente.
Ficando dentro dessa perspectiva morfológica, que abstrai aspectos decisivos da totalidade dos processos econômicos e políticos, observa-se que se formava uma classe nova, interessada na desintegração da sociedade feudal apenas para aproveitar-se dos dividendos que podiam ser convertidos em riqueza ou poder. A burguesia abriu o seu caminho de forma sinuosa e inseriu-se na revolução – ao mesmo tempo ativa e parasitariamente. Iria demorar mais de três séculos para que ela brandisse bandeiras revolucionárias “populares” e de “salvação nacional”.
O exemplo é esclarecedor, porque mostra a formação de uma dominação de classe segundo moldes dissimulados e sob o manto de uma espoliação de outros setores da sociedade, de alto a baixo, com economia de energias sociais e por meio da penetração sistemática em todos os postos acessíveis de poder. Nesses termos, a desintegração da sociedade feudal e a consolidação da monarquia erigem-se em um modelo de rebelião silenciosa, que abrange reformas sociais sucessivas, a extinção paulatina da herança feudal e a fermentação de inovações estruturais de cima para baixo e vice- versa.
De fato, antes de encerrar esse complexo ciclo de alteração da ordem, burgueses conseguiram enobrecer-se, suas subclasses se irradiavam por todo o sistema de poder e, no conjunto, ardiam pelo advento de uma ordem social na qual não encontrassem obstáculos para difundir uma nova concepção do mundo. A revolução social coroa, nos fins do século XVIII e no início do século XIX, essa eclosão tardia que transmuta uma rede intricada de interesses econômicos, valores sociais e aspirações políticas.
No comando das fábricas, de outras instituições-chaves da sociedade e, em particular, do Estado inaugura-se outro estilo de ação social burguesa. Com ritmos rápidos, a burguesia consolida uma dominação de classe que inverte os pilares centrais da “Grande Revolução”. Liberdade, igualdade e fraternidade, nos seus principais desdobramentos, não eram conciliáveis com a forma moderna de propriedade, com a acumulação ampliada do capital, que impunha, inexoravelmente, a exploração intensiva do trabalhador, e com as lutas sociais inerentes ao novo tipo de sociedade civil.
A burguesia “conquistadora” não podia ceder espaço à ebulição que agitava a sociedade. Ela não interrompe sua revolução, mas passa a graduá-la com o fito de estendê-la a todos os recantos do meio sócio-econômico, cultural e político. As suas bandeiras revolucionárias foram enroladas e toda transformação que afetasse a estabilidade da ordem sofria paralisações prolongadas.
Excluído, de fato, das malhas do confronto tolerado e da submissão ao poder, o proletário não dispunha de vias de auto-emancipação coletiva. Só a experiência ensinaria quais eram as armas institucionais que deveriam ser postas em movimento para desencadear lutas sociais que ameaçassem a organização das fábricas ou da sociedade. O Estado assumiu o pendão de garantir a estabilidade e de selecionar mudanças que só a largo prazo teriam um significado positivo para todos. Não havia como infiltrar-se, a não ser por peneiramento social, que desfalcava os proletários de seus quadros mais capazes e combativos (“circulação das elites” acompanhada da acefalização decorrente da pequena burguesia e dos líderes dos trabalhadores qualificados).
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