O escritor Ernest Hemingway nasceu neste dia em 1899. O novo documentário de Ken Burns e Lynn Novick lança uma nova luz sobre a vida do escritor, mas deixa de fora detalhes importantes sobre suas convicções políticas de esquerda – incluindo a vigilância do FBI que o perseguiu até seu suicídio.
Por Eileen Jones / Tradução: Paulo Antunes Ferreira
Ernest Hemingway tinha medo do escuro. Depois de ter sido gravemente ferido na Primeira Guerra Mundial, sempre que estava em casa precisava manter a luz acesa a noite toda e a sua irmã as vezes tinha de sentar ao seu lado apenas para o manter calmo. Ele tinha sido alvejado numa batalha noturna e disse que sentiu a sua alma partir do seu corpo e misteriosamente regressar. Depois disso tinha a certeza de que se se encontrasse novamente na escuridão total a sua alma abandonaria o seu corpo permanentemente.
O jovem Hemingway, tal como apresentado no primeiro dos três episódios da série da PBS, Hemingway, dirigida por Ken Burns e Lynn Novick, é uma figura interessante – um tipo grande e desajeitado que se sente mais confortável na natureza, lutando numa família estranha e perturbada, propensa a doenças mentais e ao suicídio. Tenta encontrar o seu caminho inicialmente como repórter e depois como escritor. O episódio cobre o tempo antes de desenvolver a personalidade extravagante pela qual é mais conhecido, o escritor agressivo e conflituoso, que bebia em excesso, o homem macho sempre assistindo a touradas, falando sobre as fraquezas de escritores rivais e sendo fotografado sorrindo ao lado dos grandes e belos animais que caçou. Essa personalidade, que o tornou rico e famoso, bem como opressivamente egocêntrico, é explorada no segundo episódio. O terceiro episódio aborda como essa mesma personalidade ajudou a agravar o seu alcoolismo e doença mental que acabou por levá-lo ao suicídio.
A série trata Hemingway com o tom de reverência solene, ou mesmo lúgubre, pelo qual Ken Burns é conhecido, como se todos ainda considerassem que Hemingway foi o maior escritor americano do século XX, o que, tanto quanto sei, não é de modo algum o caso.
Na altura em que tomei consciência dos debates sobre o cânone literário americano, a reputação de Hemingway já estava bastante danificada:
Nos anos 80, escreve Mary Dearborn, na sua biografia ricamente detalhada, “Hemingway e o seu lugar na tradição literária ocidental passaram a estar sob ataque total, à medida que leitores e estudiosos questionavam urgentemente o que os ‘homens brancos mortos‘ como Hemingway têm para nos dizer numa época multicultural que já não lhes confere prioridade automática. O chamado código Hemingway – uma abordagem dura e estóica da vida que aparentemente substitui a coragem física… por outros tipos de feitos – parecia cada vez mais provinciano e cansativamente macho”.
Mas podemos continuar recuando mais no tempo e encontrar a decadência instalando-se no estatuto de estrela de Hemingway enquanto escritor importante. O documentário comprova o fato surpreendente de Hemingway já estar desgastando suas boas-vindas nas várias críticas na década de 1940. Talvez tenha sido uma reação inevitável a todo aquele culto do herói nos anos 20 e 30, quando ele era o escritor mais admirado e servilmente imitado da América.
Já em 1974, Orson Welles descrevia a reputação literária de Hemingway como estando “num eclipse total”. É uma entrevista engraçada, com Orson Welles falando sobre a amizade um tanto ou quanto conflituosa que existia entre eles e que começou com uma luta incompetente durante uma projeção de Terra de Espanha, um documentário dirigido pelo comunista holandês Joris Ivens. O filme tinha sido financiado por um grupo de pessoas de esquerda que apoiavam à causa republicana durante a Guerra Civil Espanhola. A narrativa foi lida por Orson Welles e escrita por Hemingway e pelo seu amigo John Dos Passos, que deixou de ser seu amigo após discussões sobre a política do filme. Orson Welles criticou parte da narrativa, o que enfureceu Hemingway. Welles então zombou do escritor por ser “tão grande e forte”, desencadeando uma torrente de punhos voadores, a maioria deles errando o alvo.
Orson Welles observa também que, por muito que admirasse a arte de Hemingway, uma característica muito importante dele enquanto pessoa estava ausente nas suas obras mais famosas:
Aquilo que nunca encontramos nos seus livros é o seu humor. Dificilmente há uma palavra de humor num livro de Hemingway porque ele é tão tenso e solene e dedicado ao que é verdadeiro e bom. Mas, quando estava descontraído, Hemingway era tremendamente divertido e era isso que eu adorava nele.
Penso que essa é a razão pela qual os seus romances mais famosos – O Sol Nasce Sempre, O Adeus às Armas e Por Quem os Sinos Dobram – podem ser chatos de ler. Na minha juventude, quando lia tudo o que me era recomendado por pessoas de alto nível literário, não lhes dei importância. Pareciam livros rígidos e extenuantes, mal escritos. O caráter pesado da abordagem de Hemingway é comovedoramente explicado no documentário de Burns, que mostra como o autor aliviaria a sua ansiedade diária de escrever dizendo a si próprio: “Escreve apenas uma frase verdadeira”.
Tenho atualmente muito mais simpatia pela condição e problemas do escritor e provavelmente poderia ler os seus romances com maior empatia. Mas, por outro lado, sempre detestei tiques como a sua recusa frequente em usar contrações, o que parecia absurdamente afetado, alternando frases como “Nick didn’t look at it” e “Nick did not watch“. Evitar as contrações é claramente uma forma de acrescentar solenidade e peso emocional, neste caso ao agonizante nascimento de um bebé no conto Acampamento Índio, frequentemente citado no documentário de Burns e Novick.
Tal como Charles Dickens, que tinha uma tendência para o uso de palavras em inglês arcaico como “thee” e “thou” em vez do moderno “you” em momentos de grande significado espiritual, Hemingway experimentou a mesma técnica em Por Quem Os Sinos Dobram, escrevendo o conhecido desastre pós-coital “And did thou feel the earth move?” (“E sentiste a terra mover-se?).
É uma pena que para chegar às coisas mais interessantes sobre Hemingway – a sua juventude dura, alguns dos seus excelentes contos e a sua política de esquerda – se tenha de percorrer o pior da sua escrita e depois todos os disparates em torno da sua personalidade pública extravagante. Ouvimos como Hemingway costumava gabar-se interminavelmente sobre os perigosos lutadores que derrotara e sobre as medalhas que ganhara por bravura em combate – tudo mentiras, como o documentário aponta – quando, de acordo com qualquer padrão razoável de coragem, ele já tinha provado ser mais do que corajoso no início da sua vida.
A explicação para este comportamento é tão óbvia que dificilmente é necessária uma série documental de três episódios para explicar. É bastante claro atualmente que Hemingway era uma manteiga por dentro, assustado pela morte tal como todos nós, as pessoas normais, e estava apenas construindo uma fachada de grande homem para evitar que alguém reparasse.
Os esgotamentos mentais do pai que tanto amava, que acabaram por levá-lo ao suicídio, abalaram tanto Hemingway que ele se virou contra o pai de uma forma brutal, condenando-o pela sua “fraqueza”. Hemingway odiava e temia a sua mãe controladora, apoiando-a financeiramente mas recusando-se a vê-la durante muitos anos antes da sua morte. Ficou tão destroçado com a carta de rejeição que recebeu da sua primeira noiva, uma enfermeira do exército da Primeira Guerra Mundial, que nunca a superou. Passou o resto da sua vida tentando desesperadamente controlar as mulheres, empurrando cada esposa para o papel de dona de casa-enfermeira-concubina, aborrecendo-se em seguida e deixando-a por outra mulher, mais aventureira.
Conheceu o seu par ideal na 3º esposa, Martha Gellhorn (a quem Meryl Streep dá a voz no documentário), uma colega jornalista que também cobria a Guerra Civil Espanhola. Ela deixou-o para cobrir a Segunda Guerra Mundial, que Hemingway tentou evitar cobrir porque tinha um medo desesperado de ir – sentiu, não sem razão que, agora na casa dos 40 anos, já tinha levado a sua sorte longe o suficiente para sobreviver a duas guerras. Mas seguiu-a para a batalha e envergonhou-se quando ela conseguiu uma cobertura muito melhor do Dia D do que ele – Martha Gellhorn escondeu-se destemidamente num navio de combate em direção à praia de Omaha, enquanto Hemingway esperava a uma distância segura com os outros jornalistas. Provavelmente para compensar por ter sido desmascarado, cruzou a linha que separa o repórter do civil-soldado e lutou realmente na terrível batalha da Floresta Hurtgen com o 22º Regimento de Infantaria.
Foi com Mary Welsh, a 4º esposa (voz de Mary-Louise Parker no documentário), que finalmente conseguiu uma descoberta sexual, capaz de admitir por fim, na sua velhice, que a sua preferência era por mulheres de aparência andrógina e pelo jogo erótico de troca de papéis, com ele desempenhando o papel de Catarina e ela o papel de Pedro. No entanto, fora do quarto, continuava tratando ela não muito melhor do que às anteriores e é espantoso o que a maioria das esposas de Hemingway estavam dispostas a suportar. Mas é verdade que tentou escrever sobre como encontrar maior liberdade sexual no seu último romance inacabado, O Jardim do Éden.
Para muitos, esse livro foi o primeiro sinal de que talvez algo mais estivesse acontecendo por baixo de todo aquele vozerão. Para mim, era o estudo do film noir, cujas raízes estão em dois grandes escritores americanos: o brilhante mestre da literatura policial Dashiell Hammett e a figura ligeiramente surpreendente de Ernest Hemingway. Ambos chegaram à notoriedade na década de 1920, escrevendo ficção baseada na observação, que se assemelhava a reportagem, combinando insipidez e vivacidade com um resultado surpreendente. Esta abordagem fazia sentido vinda de Hemingway, um antigo repórter. Hammett, no entanto, havia trabalhado como detetive até ficar tão enojado com seus serviços de fura-greves (muitas vezes envolvendo assassinato) que desistiu. Como Hemingway, ele finalmente abraçou a política de extrema esquerda, causando problemas com o governo norte-americano mais tarde.
Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/07/ernest-hemingway-era-um-esquerdista-perseguido-pelo-fbi/
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