“Se o texto constitucional regula dois mundos, o sagrado e o cotidiano; e engloba duas gentes, a originária e a colonizadora, também é certo que entre esses mundos há uma greta, que só pode ser validada por um pacto de respeito mútuo”
Por Carol Proner, Diego Vedovatto e Rafael Modesto dos Santos / Créditos Foto: (José Cruz/Agência Brasil)
Na antessala de um dos julgamentos mais importantes para os povos originários do Brasil, com início esta semana, acreditamos na coerência e na coesão político-jurídica do Supremo Tribunal Federal, entendendo que não abandonaria os povos indígenas em momento tão crítico da política indigenista em âmbito nacional.
A Corte Suprema sempre foi grandiosa quando precisou dizer aos índios sobre seus direitos e não será desta vez que deixará de fazer justiça ou permitir retrocessos ao direito de ocupação tradicional das terras.
O indigenato – ou direito originário – norteou o debate em 1988 e, de forma eloquente e fecunda, o Constituinte Originário o fez albergar no artigo 231 da Constituição. Mendes Júnior, jurista inominável e também Ministro do STF ao tempo de 1917 já defendia, com nobreza e vivacidade, o direito originário dos índios e o seu contributo vive em cada palavra incrustada no Capítulo “Dos Índios”, da Carta Política vigente.
As terras do indigenato não se perdem no tempo, não se dispõem ao mercado, não se sujeitam a uso diverso do que cada etnia entenda como mais apropriado, e isso em decorrência do usufruto exclusivo e imanente que liga cada povo e cada comunidade indígena ao verdadeiramente sagrado.
Em respeito ao legado de luta e resistência secular de todos os povos indígenas, e do papel coadjuvante porém indispensável de muitos juristas, como Mendes Júnior, o Constituinte Originário fez valer o direito originário dos índios sobre suas terras de ocupação tradicional e a previsão constitucional contou com a contribuição direta de muitos povos indígenas entre 1987 e 1988. De lá para cá, internacionalmente também foram muitos os marcos convencionais a proteger os direitos originários dos povos indígenas, sendo o Brasil signatário de ampla gama de instrumentos de proteção consoantes com o espírito do pacto constitucional.
Tanto a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 231 como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em seu artigo 14 não deixam qualquer margem interpretativa para a admissão da artimanhosa tese do Marco Temporal. A proteção dos direitos e territórios indígenas é cláusula pétrea, não havendo salto hermenêutico capaz de revogá-la.
Se é certo que o texto constitucional regula dois mundos, o sagrado e o cotidiano, bem como engloba duas gentes, a originária e a colonizadora, também é certo que entre esses dois mundos há uma greta, um distanciamento abissal que somente pode ser contemporizado pela existência de um pacto de respeito mútuo. Sabemos que este pacto não foi totalmente cumprido. A República Federativa do Brasil está em mora com os povos indígenas porque não cumpriu com os mandamentos constitucionais e com a vontade do Constituinte Originário.
A União deveria ter demarcado as terras dos índios no prazo de 5 anos a partir da promulgação do Texto Constitucional e, ao não fazer, sujeitou os povos da terra a toda sorte de violência e aceitou o risco de prejuízos socioculturais e ambientais que são incalculáveis.
Além do mais, à omissão do Estado brasileiro na política indigenista também se soma uma história de genocídio, de caçadas humanas e de violência generalizada que se naturalizou durante o trágico período da ditadura militar. Um documento histórico, conhecido como Relatório Figueiredo (disponível nos arquivos de Memória Histórica, Comissão Nacional da Verdade) narra os casos de horror que envolveram maus-tratos, expulsões de comunidades inteiras, assassinatos, castigos, torturas, doação ilegal da renda e da propriedade indígena e a consequente perda forçada do território, o uso de venenos como estricnina jogado de aviões e até a crucificação de índios, atos que foram cometidos como parte de uma estratégia genocida contra os povos e suas riquezas originarias.
O Relatório, assim como outros documentos inéditos, foram revelados como resultado de uma Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI instalada em plena ditadura militar, em 1967, e que tinha por objetivo apurar as atrocidades do Serviço de Proteção aos Índios – SPI (o que mais tarde veio a ser a Fundação Nacional do Índio – FUNAI).
Os relatos dessa investigação produzem asco e assombro diante dos gritos de dor que parecem sair das páginas dos documentos anexados ao Relatório. Mas as atrocidades registradas não sensibilizaram o Estado, não foram suficientes para que a União, por meio da FUNAI, resolvesse de uma vez por todas a demarcação das terras conforme mandamento constitucional.
Ao contrário, foi o deficit na demarcação das terras indígenas que fez manter as posses injustas de particulares sobre terras do indigenato, estimulando a prática do esbulho e outras formas de violência contra as terras e os povos.
Um dos casos especialmente dramáticos que exemplifica as consequências desse deficit diz respeito à Comunidade do Povo Xavante do Território Indígena Marãiwatsédé, no município de Boa Vista (MT), ocupada há séculos pelos índios Xavante.
O povo Xavante de Marãiwatsédé foi vítima do Estado Brasileiro que, por meio do Serviço de Proteção aos Índios e com o apoio de aviões da FAB, em 1966 enganou, forçou e deslocou os indígenas para outro imóvel localizado há mais de 500 km de suas terras com o fim de legitimar ocupação não indígena para a exploração da madeira, pecuária agricultura (projeto que ficou conhecido como Suiá-Missú).
Logo após a remoção forçada, e diante de uma grave epidemia de sarampo que vitimou centenas de indígenas na região de São Marcos (MT), os sobreviventes resolveram, com o apoio da igreja, retornar a pé para suas terras originárias. O documentário Vale dos Esquecidos (de Maria Raduan, 2013), conta essa história, incluindo o relato de quem viveu ou sobreviveu aos abusos, como o Cacique Damião, à época uma criança de apenas 6 anos de idade, e atualmente um destacado líder a se insurgir contra a ignomínia tese do Marco Temporal.
Desde que voltaram heroicamente às suas terras, o povo Xavante de Marãiwatsédé passou a enfrentar outra jornada, longuíssimos processos administrativos e judiciais para estabilizar a retomada do território, homologado pelo STF somente em 2012. Mesmo com as terras demarcadas, os Xavante vivem intranquilos e protegendo seu território de diversas tentativas de intrusão ilegal.
Eis que mais uma vez o Supremo Tribunal Federal é chamado a restabelecer o respeito à ancestralidade e a garantir as terras originarias a serem demarcadas e devolvidas aos povos indígenas, conforme já preconizava o Alvará da Coroa Portuguesa de 1º de abril de 1680 que, ao cuidar das sesmarias, ressalvava as terras dos índios, considerados “primários e naturais senhores delas”.
Com o julgamento que terá início nesta quarta-feira, o STF poderá reverter o curso da história de violência e garantir hígido o texto constitucional, não permitindo que fiquem impunes os crimes cometidos contra os índios e seu patrimônio, em especial, os crimes de esbulho e apropriação ilegal das terras do indigenato.
São tempos sombrios para os povos indígenas e para a política indigenista. Mas, é também, em contraposição à lógica da destruição da natureza, da floresta, do meio ambiente e dos povos indígenas, que o máximo Guardião da Constituição cumprirá a missão precípua, de impor obediência ao estatuto jurídico-constitucional dos índios, conforme quis Mendes Júnior, como já apontava o Alvará Régio e como fez valer o Constituinte Originário em 5 de outubro de 1988.
Veja em:https://outraspalavras.net/crise-brasileira/como-o-stf-pode-defender-os-indigenas/
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