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Não há luta por liberdade sem a luta indígena

A direita brasileira se fundamenta até hoje em um projeto colonial. Lutadoras indígenas como Sônia Guajajara representam a resistência que há mais de 500 anos desafia esse projeto e mostra como frear o avanço da crise climática causada pela devastação ambiental.

Uma entrevista com Sônia Guajajara | Ilustração de Priscila Barbosa.

Não há luta por liberdade sem a luta indígena – Jacobin Brasil

Há 521 anos, o território hoje conhecido como Brasil foi invadido por uma frota portuguesa e colonizado. Como consequência, muitos dos indígenas que habitavam a terra morreram de doenças, foram assassinados ou escravizados. A população indígena foi reduzida a menos de um milhão e suas terras foram tomadas e exploradas. Esse roubo das terras não teve como efeito apenas danos insuperáveis ao ecossistema nativo, mas também, ao concentrar a propriedade nas mãos de pouquíssimos, inscreveu a desigualdade nas fundações do Brasil moderno.

É por isso que, mais de cinco séculos depois, Sônia Guajajara, uma mulher indígena, da região de Arariboia, no Nordeste, se destaca na defesa contra ações e discursos que tratam os povos indígenas como entraves para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

Os povos indígenas representam uma pequena parcela da população brasileira, mas sua luta política conquistou força e visibilidade nos últimos anos – o que torna difícil negar sua importância para as reivindicações que envolvem classe, imperialismo e capital financeiro. Sua luta é urgente; somente em 2016, 118 indígenas foram assassinados. Após a eleição de Jair Bolsonaro, a violência bate à porta com ainda mais força. Esses assassinatos costumam estar ligados às contínuas tentativas do agronegócio de penetrar nos territórios indígenas, embora também estejam enraizados no racismo.

Guajajara, que é membro do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) desde 2011, foi candidata à vice-presidenta pelo partido, junto de Guilherme Boulos, também do PSOL e membro do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). No entanto, o partido e a campanha pressionaram por um acordo de “cocandidatura”, em vez do esquema de presidente/vice-presidente. Dessa forma, buscaram contestar a hierarquia de candidatura tradicional e promover uma aliança tríplice e igualitária entre o PSOL, os povos indígenas e o MTST.

Especialista em linguística, mãe de três filhos e talvez a líder indígena mais conhecida no país e no exterior, Guajajara faz parte da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Nesta entrevista exclusiva à Jacobin, ela fala sobre o estado das lutas indígenas no país, a política ambiental, a relação entre organização indígena e a esquerda e o que representou sua candidatura presidencial com o PSOL.


SF

Hoje, uma parte central da luta indígena no Brasil é sobre o direito aos territórios. No entanto, você frequentemente coloca esses esforços no contexto da luta contra o racismo e como parte de uma luta secular dos povos indígenas pelo direito de existir. Você pode nos falar mais sobre isso?

SG

Sim, nós também estamos lutando contra o racismo, especialmente o racismo institucional. Nos últimos anos, ele se proliferou e se tornou mais visível. Para nós, se superarmos essas barreiras, poderemos finalmente entrar em outros espaços também. Se tivermos nossos territórios, teremos uma vida plena, porque é através do território que você pode exercer sua cidadania como indígena. Poder viver junto do nosso povo e da própria natureza garante nossa cultura, nossas tradições, nossos rituais.

A violência tem surgido dos conflitos pelos territórios. Os setores do agronegócio, da pecuária, da especulação da terra e imobiliário; eles querem ter acesso aos territórios indígenas, levando a muitos conflitos e assassinatos. E há o racismo, que está conectado com os discursos feitos por personalidades públicas, por políticos conservadores, por fascistas. Eles têm dito muitas coisas racistas, ajudando a sociedade a sentir-se com apoio para ser publicamente agressiva em relação aos outros. Isso tem se intensificado.

SF

Então você diria que o discurso racista empregado por personalidades públicas e por políticos piorou no recentemente?

SG

Piorou muito. Nós sempre sentimos um certo grau de indiferença entre os brasileiros para com os povos indígenas. Mas era uma questão de apenas nos ignorar. É uma minoria da sociedade que sabe da existência de povos indígenas no nosso país. As pessoas sabem que originalmente havia povos indígenas no Brasil, mas não sabem sobre nossa existência contemporânea.

Nos últimos anos, a indiferença e a ignorância diminuíram; mas eles também começaram a nos atacar. Hoje há ataques através das redes sociais, mas também ataques violentos que levam a mortes. No Sul, Vitor Kaingang foi decapitado nos braços de sua mãe. Em 2018 foi um professor Xocleng em Santa Catarina. Houve um Guarani no Rio de Janeiro, um Tapirapé em Mato Grosso e um Tremembé em Fortaleza. Esses quatro assassinatos aconteceram todos no primeiro mês de 2018. Esse racismo tornou-se muito evidente, de uma forma muito brutal. Já não é mais apenas discurso, estão nos matando.

SF

Você diria que agora é mais comum que esses agitadores racistas sejam confrontados pelas comunidades indígenas? As comunidades indígenas estão mais organizadas agora, mais capazes de se manifestar contra a estrutura da supremacia branca no Brasil?

SG

Nós sempre estivemos por aí e fazendo nossa luta, resistindo para proteger os nossos territórios. Nossa luta contra os megaprojetos e o atual modelo de desenvolvimento econômico – por mais de 500 anos nós temos lutado para sobreviver. A luta para existir é algo que temos que levar em frente todos os dias, dia após dia. Mas agora estamos nos mobilizando de uma maneira mais sistemática; aumentamos nossas mobilizações em Brasília e as conectamos a outras lutas regionais. Se formos fazer uma grande mobilização em Brasília, ao mesmo tempo faremos isso em outros Estados. Se chamamos as pessoas para impedir alguma medida anti-indígena na capital, nós convocamos e as pessoas vêm. A APIB hoje tem um bom nível de visibilidade e sua atuação é muito ampla, além do nível nacional.

Nós conseguimos atravessar as fronteiras e denunciar o que está acontecendo internacionalmente também. Temos denunciado produtos produzidos em territórios indígenas não demarcados, em áreas de conflito, e pedimos o boicote internacional desses produtos. Nós temos denunciado o ecocídio, como o que aconteceu no Rio Doce e que está acontecendo em Bacarena e em Belo Monte.

Continuamos fazendo referência a Belo Monte como um ataque contra os povos indígenas porque já estamos sofrendo suas consequências. As consequências são reais e nós as mostramos como exemplos negativos. Acho que isso tem impactado as estruturas legais e os setores do agronegócio que estamos enfrentando.

Mesmo que o público nos veja “apenas” como indígenas, nossa luta não é pequena. Na verdade, nós estamos enfrentando o Estado brasileiro e toda sua negligência. Para isso, temos de enfrentar os proprietários do agronegócio, a elite empresarial, a própria mídia, a imprensa tradicional. As redes sociais realmente têm nos ajudado nisso. Hoje, não precisamos tanto da mídia tradicional para ter o alcance que temos. Tudo isso vai atingir os ouvidos das pessoas. Essa visibilidade crescente definitivamente está incomodando um pouco mais aqueles que estão no poder.

SF

Existe alguma diferença entre quando as questões indígenas eram traduzidas por um olhar branco, como na mídia tradicional, e agora, quando pode ser apresentada pela sua voz diretamente?

SG

Faz diferença. Na imprensa tradicional, nós dizemos as coisas, eles cortam e editam para tirar o que não for do seu interesse ou o que poderia prejudicar seus aliados. Às vezes, o que dizemos é retirado do contexto e obtém um significado diferente.

Às vezes, o que dizemos para a mídia tradicional acaba sendo interpretado contra nós mesmos. É muito perigoso, dependendo de quem te entrevistar.

SF

Como você e a APIB têm sido recebidos internacionalmente? De que maneira eles reagem às histórias que vocês contam? As reações são diferentes das que vocês recebem quando tentam ser ouvidos no Brasil?

SG

Aqui a nossa capacidade de denunciar as coisas e de nos expressar ainda é muito restrita; mas hoje estamos ganhando mais visibilidade. Parte dela é visibilidade negativa, relacionada à discriminação e ao ódio. Mas entre os movimentos sociais, está crescendo a compreensão da importância das lutas indígenas – como elas nos impactam, ao meio ambiente e à vida em geral.

Mas ainda é difícil fazer com que as pessoas entendam o que significa ser indígena. A maioria das pessoas não consegue traduzir isso, elas nos olham como o “outro”. As pessoas abrem algum espaço para o “índio” falar, mas na maioria das vezes somos convidados para cantar e dançar; como seres exóticos para embelezar o local. Então, sentimos que mesmo quando os movimentos sociais tentam nos incluir, eles ainda acabam expressando certo tipo de preconceito.

SF

A esquerda esqueceu o povo indígena por algum tempo?

SG

Esqueceu, totalmente. Ela nos isolou. Eles nos chamavam para ir a determinados lugares, parecia bom, tirávamos fotos, eles podiam dizer que estavam nos apoiando. Mas em geral isso era muito isolado. Acho que uma maneira que descobrimos para romper com essa situação foi nos aproximarmos, como APIB, de artistas e celebridades. Eles têm um público diferente, às vezes compartilhado com o nosso, mas é muito mais amplo. Os cantores, atrizes, eles se aproximavam e compreendiam a nossa causa; a importância dos territórios, da floresta, de ecossistemas como o cerrado.

Como proteger esses territórios também protegeria a água. A discussão no nível global sobre as mudanças climáticas também é importante porque ela se relaciona com coisas que nós, como povos indígenas, temos falado desde o início.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/09/nao-ha-luta-por-liberdade-sem-a-luta-indigena/

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