Clipping

A alternativa pós-capitalista do Green New Deal

É possível articular a agenda ecológica e a redução das emissões de CO² com vasto investimento público e criação de empregos dignos? O ambientalismo poderá, por fim, ter apoio das maiorias? Pronto no Brasil livro que debate estes temas cruciais

Por Naomi Klein

Seguir em frente é o único caminho possível.
Mas para que lado está a frente?
Roland Wank, arquiteto1

Green New Deal despontou no cenário político quando a organização do movimento realizou um protesto pacífico no gabinete da presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi (do Partido Democrata), no fim de 2018. A congressista fez pouco caso da ideia, referindo-se a ela como um “Sonho verde ou qualquer coisa assim”, mas seus organizadores e organizadoras não se deixaram abalar. Replicaram que oGreen New Deal era, de fato, um sonho, mas extremamente necessário, que mostrava o que pessoas organizadas e focadas são capazes de conquistar diante de uma crise que ameaça a condição de habitabilidade do planeta. Considerando a urgência e a radicalidade com que nossas sociedades precisam mudar se quisermos evitar uma catástrofe climática total (e dado o domínio do pessimismo e do desespero ecológico), compartilhar grandes sonhos sobre um futuro em que não tenhamos caído na barbárie climática parecia um bom começo.

A interação entre sonhos grandiosos e vitórias mundanas sempre esteve na essência dos momentos de transformação progressista profunda. Nos Estados Unidos, as grandes conquistas das famílias trabalhadoras depois da Guerra Civil e durante a Grande Depressão, assim como os avanços da luta por direitos civis e pela defesa do meio ambiente nos anos 1960 e início dos anos 1970, não foram apenas respostas para crises, exigidas pela base.

Foram também produtos de sonhos sobre tipos muito diferentes de sociedades, sonhos invariavelmente menosprezados e considerados impossíveis e impraticáveis na época. O que diferencia esses momentos não é a presença de crises, mas o fato de que foram tempos de ruptura, quando a imaginação utópica rebentou. Tempos em que as pessoas ousaram ter sonhos imensos, em voz alta, em público, juntas. Por exemplo, os grevistas da Era de Ouro do fim do século 19, revoltados com as imensas fortunas acumuladas às custas de trabalhadores reprimidos, inspiraram-se na Comuna de Paris, período em que os operários da capital francesa passaram meses à frente do governo da cidade. Seu sonho era por uma “comunidade cooperativa”, um mundo onde o trabalho fosse apenas um elemento de uma vida equilibrada, com tempo suficiente para dedicar ao lazer, à família e às artes. No período que antecedeu a implantação doNew Deal original, a organização da classe trabalhadora dos EUA tinha domínio não só das ideias de Marx, mas também de W.E.B. Du Bois, que defendia um movimento trabalhista e pan-africanista capaz de unir os oprimidos para transformar um sistema econômico injusto. Foi o sonho transcendente do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos — seja articulado na oratória de Martin Luther King Jr, seja na visão do Comitê Coordenador Estudantil Não Violento – que criou espaço e inspirou as mobilizações de base que, por sua vez, levaram a conquistas palpáveis. Um fervor utópico semelhante no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, surgido a partir da revolta da contracultura, quando a juventude questionou basicamente tudo, preparou o terreno para os avanços da luta feminista, lésbica, gay e ambiental.

Quando o fiasco financeiro de 2008 se desenrolou, aquela imaginação utópica já tinha, em grande parte, atrofiado. Uma imensa indignação moral eclodiu contra os bancos e os planos de resgate econômico e de austeridade que seguramente viriam salvá-los. Mas, apesar da revolta que tomou as ruas e praças, as gerações que tinham crescido sob o domínio do neoliberalismo se viram com dificuldade de imaginar alguma coisa — qualquer coisa — diferente daquilo que lhes era familiar. A ficção científica também não tinha ajudado muito. Quase toda visão de futuro que encontramos nos romances mais vendidos e nas grandes produções hollywoodianas dá como certo algum tipo de apocalipse social e ecológico. É quase como se muitos de nós tivéssemos, coletivamente, deixado de acreditar na existência de um futuro — que dirá vislumbrar um amanhã que pudesse ser, de muitas formas, melhor que o presente.

O movimento de luta contra as mudanças climáticas passou décadas sofrendo dessa asfixia imaginativa. O movimento ambientalista hegemônico conseguiu descrever muito bem a ameaça que enfrentamos com detalhes angustiantes. Mas quando chega a hora de falar a verdade sobre a profundidade da mudança sistêmica necessária para evitar as piores consequências, há muito tempo o que se vê é uma imensa incongruência. Passamos uma década ouvindo que deveríamos trocar nossas lâmpadas. Plantar uma árvore ao viajar. Deixar a luz apagada uma hora por ano. A parte mais importante da história sempre foi a mesma: mostrar às pessoas como elas podem mudar sem mudar praticamente nada.

Como esmiuçado neste livro urgente e estimulante, aquela era da pseudo-mudança definitivamente acabou. Ainda falta muito para oGreen New Deal constituir um plano de fato para chegar a zerar as emissões de carbono e, ao mesmo tempo, combater a desigualdade econômica desenfreada e as exclusões institucionais de gênero e raça. Mas ele começa com aquelas metas e apresenta um punhado de ideias grandiosas e ousadas para começarmos o planejamento, a organização e a elaboração de sonhos nas comunidades onde moramos e nos espaços onde trabalhamos.

Muitos comentaristas já declararam, é claro, que nada disso é possível. É muita ambição. Coisa demais. Tarde demais. Mas essa atitude ignora o fato crucial de que nada disso começou em 2018. As bases para este momento já estão sendo preparadas há décadas, longe das manchetes, com modelos de energia renovável de propriedade e controle comunitário e transições justas que garantem não deixar nenhum trabalhador ou trabalhadora para trás. Com uma análise mais aprofundada das intersecções entre racismo institucional, conflito armado e perturbação climática. Com o aperfeiçoamento da tecnologia verde e avanços na oferta de transporte público limpo. Com o movimento florescente de desinvestimento em combustíveis fósseis e o marco legal proposto pelo movimento por justiça climática, que mostra como a cobrança de um imposto sobre o carbono pode ajudar a combater a exclusão racial e de gênero. E muitos outros esforços. A única coisa que faltava era o poder político nos altos escalões para colocar o melhor de todos esses modelos em prática de uma vez, com o foco e a agilidade exigidos pela ciência e pela justiça.

Como detalhado nas páginas a seguir, o New Deal original estava cheio de falhas e exclusões. Mas o programa continua sendo uma referência útil para demonstrar como cada setor da vida, da silvicultura à educação, das artes à moradia e à eletrificação, pode ser transformado a partir da ideia de uma missão única e ampla para guiar toda a sociedade. E, ao contrário de tentativas anteriores de implementar leis de combate às mudanças climáticas, oGreen New Deal tem a capacidade de mobilizar um movimento de massas interseccional de fato — não apesar de sua imensa ambição, mas exatamente por causa dela.

Enquanto a indústria dos combustíveis fósseis reforça seus ataques, o Centro “sério” vai elaborar contramedidas limitadas para preservar somente as políticas que combatem as mudanças climáticas em sua definição mais estrita. A promessa de umGreen New Deal radical descrita neste livro baseia-se em rejeitar as duas coisas, exercendo pressão não apenas para promover as “mudanças rápidas, abrangentes e inéditas em todos os aspectos da sociedade” que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas encoraja, mas para tratar a crise climática como uma oportunidade de construir um mundo que seja mais justo, pacífico e democrático em sua totalidade. Temos muito trabalho pela frente. O que nos sustentará nos anos difíceis que virão é um sonho de futuro que não só será melhor que o colapso ecológico, como será muito melhor do que a maneira bárbara que nosso sistema trata as formas de vida humana e não humana na atualidade.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/a-alternativa-pos-capitalista-green-new-deal/

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