Mortes se propagam nas aldeias. Governo abandonou-as — e ruralistas seguem no ataque. Frente ao genocídio, um saber antigo: retornar às florestas, para proteger os idosos, guardiões da ancestralidade, e os valores de coletividade…
Por Susana Prizendt
Nas tradições indígenas, a origem de muitos elementos, considerados benéficos para os seres humanos, está relacionada a uma perda, um acontecimento doloroso, vivido por integrantes de uma determinada etnia. Para o povo Sateré-Mauê, os surgimentos da castanheira, da seringueira e do cajueiro, por exemplo, ocorreram, através de processos mitológicos envolvendo a morte de guerreiros ou de animais, valorizados pela sociedade de um passado distante.
Alimentos como o caju, a mandioca ou a castanha do Pará possuem estórias em que um ser vivente, ao ser morto, é enterrado em um determinado local e sofre uma transformação pela ação das forças da Mãe-Terra, ressurgindo como uma planta ou uma árvore, com partes comestíveis, que se tornarão ingredientes estruturais na culinária indígena.
A cultura alimentar desses povos traz, em sua essência, os ciclos de transformação da natureza, nos quais os seres vivos são gerados pela terra e a ela retornam após experienciarem suas formas corporais e percorrerem seus caminhos no mundo que conhecemos. E, acolhidos pelo ventre da Mãe-Terra, se metamorfoseiam e afloram novamente, sob novas formas corporais e com novas funções no ambiente. A vida se renova e nutre todos os seres que a compõem. As histórias dessa renovação também nutrem, espiritualmente, os seres humanos, assim como os alimentos, descritos por elas, os nutrem fisicamente.
Desta maneira, há o estabelecimento de um sentido para o fluxo vital, mesmo em relação aos seus componentes dolorosos. As perdas nunca são definitivas, mas são parte do surgimento de novos elementos, que vão enriquecer a experiência existencial. Quando este elemento é um alimento e é ingerido por um integrante do povo Sateré-Mauê, esse integrante absorve a memória ancestral, transmitida por ele, e se conecta com todo o universo material e espiritual que forma a sua cultura, criando laços de pertencimento ao processo histórico que a define.
Nos cerca de 500 anos de colonização pelos homens brancos, os povos indígenas experienciaram perdas incalculáveis, tendo sua população reduzida de milhões para milhares de indivíduos, além do sufocamento de suas culturas e da invasão e degradação de seus territórios, tão sagrados em seu modo de viver.
Mas, mesmo com essa violência, constantemente sofrida por séculos, as sociedades indígenas ainda seguem resistindo, revelando uma resiliência que só pode ser compreendida quando entendemos os conceitos, como o que expus sobre as perdas e as transformações da cultura Sateré-Mauê, que norteiam sua existência.
Agora, com o surto da covid-19, o momento é extremamente crítico para os povos indígenas. Além da sua vulnerabilidade às doenças provocadas por vírus, eles têm sofrido falta de assistência médica, invasões de suas terras, pressões culturais por grupos religiosos evangélicos e sentido a crescente destruição ambiental, promovida pela atual administração do país.
Um estudo realizado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) revelou que as taxas de contaminação e mortalidade por covid-19 nas comunidades indígenas na Amazônia são mais altas que a da região e a do país, sendo que a taxa de mortalidade entre indígenas pela doença é 150% maior do que taxa média da população brasileira, em geral.
Segundo matéria do portal G1, “diante do avanço da pandemia do coronavírus entre os povos indígenas, a preocupação com essas comunidades passa a tomar conta das autoridades sanitárias e de cientistas, inclusive sobre a extinção dos povos indígenas em decorrência da covid-19. O procurador jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Eliésio Marubo chegou a alertar, em entrevista à Rede Amazônica, a respeito de um possível genocídio, ou seja, extermínio total da população indígena.”
Em virtude da gravidade da ameaça de extermínio, o observatório De Olho nos Ruralistas mudou o nome de sua cobertura da epidemia para De Olho no Genocídio, enfatizando o aspecto político dessa matança dos povos do campo e da floresta — indígenas, quilombolas e camponeses em suas várias ramificações — durante a crise do novo coronavírus.
São muitos os componentes que caracterizam as atuais políticas do governo federal como políticas genocidas em relação aos indígenas. Desde o início de mandato, a atual administração do país não apenas paralisou todos os processos de demarcação dos territórios das várias etnias brasileiras, como adotou posturas que estimularam a invasão desses locais.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/a-estrategia-indigena-para-enfrentar-o-virus/
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