Clipping

A história vista desde baixo

O historiador marxista E. P. Thompson faleceu neste dia em 1993. Sua trajetória foi marcada pela defesa de uma educação rebelde, o comprometimento com a luta antifascista e a construção de um socialismo humanista. Resgatamos aqui sua vida e obra.

Por Fernando Pureza

Quando E. P. Thompson faleceu, Eric Hobsbawm escreveu um tocante obituário dedicado a seu amigo para o jornal The Independent. Nele, Hobsbawm descreve Thompson como um intelectual eloquente, gentil, encantador, com presença de palco, com uma voz maravilhosa e “dramaticamente” bonito. Mais do que tudo isso, Thompson foi um desses casos fenomenais do século XX onde intelectualidade e militância caminhavam de mãos dadas, compondo um marxismo vivo e pouco afeito a ortodoxias. Honrar sua memória  27 anos depois do dia de seu falecimento, em 28 de agosto de 1993, inevitavelmente exige que reconheçamos algumas de suas maiores contribuições políticas e teóricas a partir da questão política crucial: no que uma perspectiva thompsoniana pode ajudar os socialistas hoje?

Experiência, o termo ausente

Uma das maiores contribuições teóricas de E. P. Thompson foi trazer a centralidade do conceito de “experiência” para os debates marxistas. Contudo, essa não é só uma contribuição teórica, mas eminentemente prática. Para Thompson, a experiência era um conceito que permitia olhar para uma profunda dialética entre as determinações objetivas e as subjetividades da classe. Sua própria trajetória de vida demonstra a centralidade da experiência.

O pai, Edward John Thompson, foi um poeta e intelectual metodista que se aproximou do anticolonialismo indiano. Casado com Theodosia Jessup, tiveram dois filhos: Frank e Edward. Ambos ingressaram na faculdade e, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, se alistaram na luta antifascista. Frank, o mais velho, se aproximou do Partido Comunista da Grã-Bretanha (PCGB) e, como oficial, se voluntariou a uma missão na Bulgária, onde foi assassinado em 1944. O irmão mais novo, Edward, acabou indo lutar na Itália. A perda do irmão em meio a luta antifascista contribuiu para reforçar o compromisso que compartilhavam, e o engajamento no PCGB.

Assim como Frank Thompson, Edward não estava propriamente convicto da infalibilidade das diretrizes de Moscou. Frank era abertamente crítico ao Pacto Ribbentropp-Molotov e se alistou por convicção de que a luta antifascista não poderia ser suspensa, mesmo que temporariamente. Já E. P. Thompson, tão logo a guerra terminou, decidiu participar da reconstrução da Iugoslávia sob o comando do Marechal Tito, construindo estradas de ferro. Nessas andanças, conheceu Dorothy Towers, também historiadora, militante do partido e engajada na reconstrução do país. A partir desse compromisso comum constituíram uma parceria que iria durar até o fim da vida de E. P. Thompson.

O engajamento real e concreto com o antifascismo certamente o diferenciava de muitos outros intelectuais marxistas da época. Convém ressaltar, no entanto, que a partir de 1946 o PCGB constituira um núcleo bastante ativo de historiadores, todos eles fazendo profundos questionamentos contra consensos acadêmicos e discutindo novas perspectivas para a historiografia inglesa. É nesse contexto que Thompson se alia com intelectuais como Christopher Hill, Eric Hobsbawm, Dora Torr, entre outros, que, decididos a deixar sua marca, criam a Past and Present, uma revista de intervenção política no cenário intelectual britânico. Os chamados “historiadores marxistas britânicos” causaram uma verdadeira revolução ao reivindicarem uma história dos de baixo.

De baixo para cima e à esquerda

Aideia de uma “história vista de baixo” buscava justamente resgatar as concepções das classes populares inglesas ao longo da história, por meio de uma orientação organicamente vinculada a um marxismo militante. Havia algo de heterodoxo na posição desses historiadores: a vida das classes populares deveria ser vista a partir do próprio contexto britânico, recusando-se a dispor de categorias de análise que fossem estranhas a essa realidade vivida, o que teria um imenso significado posteriormente na ideia de classe avançada por Thompson.

O cenário internacional passava então por mudanças profundas. A morte de Stalin em 1953 e o Relatório Kruschev, de 1956, abalaram profundamente as concepções de muitos desses historiadores filiados ao PCGB. Começaram a surgir denúncias e críticas internas ao partido. Thompson foi um dos que passou vocaliza-las, em parceria com John Saville, na criação de uma revista nova chamada Reasoner. De curta duração (fechada por orientação do próprio partido), a revista serviu para mostrar a necessidade de organizar as vozes críticas do que viam como o “dogmatismo político do Partido Comunista da Grã-Bretanha”. A gota d’água, contudo, foi a invasão soviética à Hungria, em 1956. Os eventos em Budapeste precipitaram a saída de Thompson e outros historiadores do partido. 

Os historiadores marxistas britânicos, contudo, não interromperam sua militância. A New Reasoner, surgida em 1957, anunciava seu compromisso com “valores socialistas”, mas também com uma “percepção não-dogmática da realidade”. Apesar de fora do partido, Thompson reafirmou-se marxista inúmeras vezes, um compromisso que o acompanhou até o fim da vida. Aos poucos, a revista foi abrindo espaço para as muitas dissidências na esquerda britânica, tanto entre comunistas quanto entre trabalhistas críticos das lideranças dos seus partidos.

A atividade de intervenção militante era acompanhada da docência. Desde 1955 Thompson atuava nas escolas para jovens e adultos, dando aulas de história e literatura inglesa – uma de suas paixões. As aulas, como o próprio Thompson lembrava, reafirmavam seu compromisso político com os “de baixo”, com sua cultura, suas tradições, suas visões de mundo. Aliadas com sua voz dissidente e radical, em pouco tempo a figura de Thompson se tornou famosa nos meios da esquerda britânica. Foi nesse meio tempo em que ele recebeu um convite inusitado: escrever um livro sobre a história da classe trabalhadora inglesa.

O enigma da classe

Aabordagem de E. P. Thompson surpreendeu. Até então, a esquerda britânica contava a história da classe trabalhadora a partir da história do movimento operário industrial, destacando as primeiras agremiações cartistas, na década de 1830, que tinham claro viés sindicalista. Thompson, por sua vez, resolvera retroceder até as últimas décadas do século XVIII para focar-se naquilo que ele chamara de “o fazer-se da classe operária” (making of, que na edição brasileira foi traduzido como “formação”). Dessa forma, a classe trabalhadora não nasceria “pronta”, dada como resultado das determinações econômicas objetivas, mas era resultado de uma longa formação social, política e cultural. O foco de Thompson seria justamente as experiências dos sujeitos proletários ao longo do tempo conforme compunha uma forma de sentir e agir em coletivo.

O impacto de A formação da classe operária inglesa foi imenso. Traduzida mundo afora, gerou impactos duradouros para além da Inglaterra e da própria Europa – Brasil, Índia, Egito, Japão, etc.. Trata-se de uma obra imbuída de um duplo sentido da ideia de experiência. Para Thompson, a experiência é o elemento capaz de mediar as determinações econômicas e as tradições culturais e políticas. Dessa forma, a categoria carrega uma dialética profunda, capaz de mostrar o movimento entre a transformação das forças produtivas ao mesmo tempo em que sugere que as relações produtivas são muito mais amplas do que aquelas do chão de fábrica. Tradições como o metodismo, ou hábitos alimentares, músicas, literatura, folclore, se soma ao tortuoso processo de formação da consciência coletiva dos trabalhadores ingleses, até o momento em que eles se reconhecem não mais por localidade, religião, ou ofício, mas sim como “classe”. Para tanto, era necessário criar uma nova linguagem e uma nova cultura que desse conta das novas experiências de exploração vivenciadas – esse arcabouço não emergia do nada, mas do acúmulo de inúmeras tradições vindas do passado.

Thompson enfatizava que sua obra só poderia ter sido escrita num contexto em que ele mesmo estava dividindo sua atenção com as aulas noturnas e com sua militância na Nova Esquerda. Como confessou, em 1961, em carta para o amigo e historiador Raphael Samuel:

“Além disso, estou com seis aulas e mais outros cursos adicionais para gerentes hospitalares (só essa semana já são nove aulas), além de estar no comitê de quatro departamentos diferentes, mais três crianças que continuam celebrando o feriado de Guy Fawkes e seus aniversários, além de um crescimento miraculoso das campanhas de desarmamento nuclear em Yorkshire e Halifax (em Yorkshire fomos de 0 para 150 comitês em dois meses!) – além de toda a correspondência do comitê editorial [da New Left Review] que você já deve ter ouvido falar. A única coisa em que sou parecido com Marx é que eu também estou ficando com furúnculos no pescoço.”

A experiência como militante e professor é fundamental para a escrita de Thompson. Dar aulas em diferentes cidades como Halifax, Yorkshire, Batley, Keighley, N’Allerton, permitia conhecer diferentes realidades de trabalhadores, diversos não apenas pela localidade como pelo ofício – trabalhadores manuais, de escritório, donas de casa, técnicos, professores. Uma classe multifacetada, com a qual Thompson tinha contato em suas aulas de história e literatura inglesa. Na sala de aula, estimulava que seus alunos trabalhadores falassem sobre suas tradições e cultura. Esse estímulo, tão vital para o processo de aprendizagem, o tornou cada vez mais atento às tradições culturais dos sujeitos subalternos, que eram frequentemente menosprezadas pela historiografia tradicional que tinha como objeto a classe operária.

A militância, por sua vez, seguia um caminho abertamente heterodoxo. Após a saída do PCGB, Thompson dedica sua atividade política a duas ações primordiais: a participação na New Left Review – e depois na Socialist Register – e o ativismo antinuclear, que gerou um livro pouco lembrado, mas muito instigante, Exterminismo e Guerra Fria. Thompson se manteve um socialista ferrenho até os últimos dias, reivindicando uma tradição histórica romântica e revolucionária – e, principalmente, radicalmente democrática.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2020/08/a-historia-vista-desde-baixo/

Comente aqui