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Os Direitos Humanos e a impunidade global corporativa

A verdadeira História não é uma ficção oficial e deve ser buscada além das notícias postadas na imprensa

Por Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima

A verdadeira História não é uma ficção oficial e deve ser buscada além das notícias postadas na imprensa, que muitas vezes se baseia em informações forjadas por equipes de especialistas para desinformar o público e criar uma opinião favorecendo interesses particulares.

Caso emblemático de sentença judicial da mais alta Corte do Equador que condenou uma corporação, Chevron, a pagar indenização para os autores, representando grupo de campesinos e de vários povos indígenas da região amazônica, deixou de ter eficácia, por decisão da Justiça de outro país, no caso os Estados Unidos, — violando lei federal dos EUA e o princípio de cortesia internacional de respeito mútuo das decisões dos tribunais de outros países –, e também proibida sua execução pelo governo do Equador por ordem de Tribunal arbitral em Haia composta por advogados privados. Houve uma grave inversão de valores jurídicos que cabe apenas na mentalidade de uma construção corporativa de impunidade global engendrada por tratados entre Estados em favor de corporações mundiais.

No Brasil, estamos vivenciando, indignados, ações para destruir a nossa Floresta Amazônica, cuja proteção é de competência dos órgãos subordinados ao Ministério do Meio Ambiente, cujo titular da pasta vem tolhendo a necessária atuação, mais recentemente também acompanhado pela Comissão especialmente designada para cuidar dos assuntos da Amazônia. A continuar assim, é provável que a “boiada passará” e, certamente, não restrita fisicamente a essa espécie animal, pois, a “boiada” poderá ser representada por outras formas ilegais de avanços de maior gravidade, numa agressão ao meio ambiente da região, que é composto por ecossistemas frágeis, ricos em água e biodiversidade. E, principalmente, prejudicando a vida dos moradores tradicionais, representados por povos indígenas.

Em 21 de maio de 2019, carta subscrita por duzentos e sessenta e sete entidades, entre internacionais, regionais e nacionais, de quarenta e cinco países, foi encaminhada ao presidente Lenin Moreno, que tomara posse na presidência do Equador em 2018.

Ela resume a indignação coletiva dos defensores dos direitos humanos diante da negação do Direito por decisão tomada fora do Equador, posteriormente ao processo já decidido, em três instâncias e confirmada, por fim, pela Corte Nacional de Justiça do Equador, em 2013, ratificando as decisões anteriores e condenando a Chevron a pagar indenização de 9,5 bilhões de dólares aos querelantes, formados pela UPDAPT – União dos/as Atingidos/as pela Chevron-Texaco, apenas excluindo a anterior pena de multa.

Menciona também a crescente mobilização popular internacional contra o mecanismo ISDS. Prova disso é que mais de meio milhão de assinaturas de cidadãos e cidadãs da União Europeia foram entregues ao Vice-Presidente da Comissão Europeia nos últimos dias, pedindo à União Europeia que rejeite o ISDS e apoie o Tratado Vinculante das Nações Unidas, bem como outras normas para obrigar as empresas transnacionais a respeitar os direitos humanos.

Falam na carta que o Equador era o país que estava liderando o processo nas Nações Unidas para o estabelecimento de um Tratado Vinculante sobre corporações transnacionais e direitos humanos, que poderia pôr fim à impunidade empresarial, e que é negociado no Conselho de Direitos Humanos. Esse Tratado constitui uma demanda de milhões de pessoas, agrupadas em centenas de organizações sociais, ambientais, sindicatos e comunidades afetadas em todo o mundo.

Destaca, ainda, que as empresas petrolíferas, como a Chevron, têm uma forte responsabilidade histórica com as mudanças climáticas, que já resultam em centenas de milhares de vítimas, na expulsão de milhões de pessoas de suas casas – as/os refugiadas/os por causas climáticas -, além do que, levam todo o planeta à maior crise ambiental conhecida.

A questão envolve o processo judicial no Equador, que fez coisa julgada inclusive da decisão da Corte Suprema, que condenou a corporação Chevron ao pagamento de indenização para os reclamantes, na maioria campesinos e pessoas pertencentes a grupos indígenas, moradores na região do Lago Agrio, no Equador, devido a sua responsabilidade empresarial pelo derramamento de óleo nas atividades de extração petrolífera realizada por sua antecessora Texaco, entre os anos de 1964 e 1992. Esses fatos tiveram por consequência enormes prejuízos socioambientais, inclusive causando graves doenças para os grupos humanos, além de afetar sua cultura tradicional, com forte desagregação nas famílias e nos grupos.

Apesar dessa decisão, alguns atos da Chevron inviabilizaram a execução da sentença. Em primeiro lugar pela retirada de todos os bens da Chevron, em 2011, quando houve a condenação na primeira instância, representando notório caso de fraude à execução. Por último, ocorreu, em 2019, a reviravolta da situação pelo Tribunal de Arbitragem, com a aplicação do sistema ISDS (Investor-State Dispute Settlement), um instrumento de direito internacional privado, disponível exclusivamente para investidores estrangeiros processarem Estados, que a estes se submetem livremente, entre outros, através de acordos de investimento.

Nesse interim, em março de 2015, a decisão de um Tribunal arbitral, em Haia, denegou o pedido apresentado, ainda em 2009, pela corporação Chevron para evitar essa multibilionária condenação da Justiça equatoriana por danos ambientais e sociais na Amazônia, aceitando os argumentos apresentados pelo estado do Equador, no caso conhecido como “Chevron III”. Foi, portanto, reconhecida pela corte arbitral a legalidade do processo judicial contra a Chevron no âmbito do Judiciário do Equador. Diego Garcia, o procurador-geral do Estado equatoriano na época, ressaltou que o tribunal de arbitragem concluiu expressamente que o invocado acordo pela Chevron “de 1995 não exonerava a Chevron de ser processada por pessoas a título privado”, significando admitir que os tribunais do seu país constituem o foro competente para conhecer e resolver “as reivindicações dos litigantes”. Este argumento fora também defendido por Pablo Fajardo, advogado dos litigantes equatorianos, contra a suposta “fraude” alegada pela Chevron, sem qualquer sustentação probatória, relativo a um processo em Nova York. Este advogado, de origem camponesa e morador da região, teve um papel destacado desde o início do processo, ainda em 1993, quando teve que enfrentar graves ameaças contra sua vida, inclusive tendo que se proteger, dormindo cada noite em local diferente. O precedente foi o fato do sequestro, por engano, de seu irmão, torturado e morto.

Não satisfeita com a decisão em Haia, a Chevron apresentou novo pedido perante o tribunal Permanente de Arbitragem, que, em setembro de 2018, alterou sua posição sobre a questão e considerou que o Equador violou um “Tratado de Proteção de Investimentos entre Washington e Quito”, ao negar julgamento favorável à petroleira americana no caso do Lago Agrio, o que poderia ser sancionado com o pagamento de uma indenização para a Chevron por parte do Estado equatoriano.

O processo do mecanismo do ISDS tem tramitação processual diferente daquele de um Tribunal judicial, de competência legitimamente instaurada e integrante de um dos poderes internos do Estado nos país. O caso do ISDS é analisado por um tribunal privado composto por três “árbitros” escolhidos pelas partes – dentre um grupo reduzido de advogados ou juristas, com honorários de $1.000 (mil dólares) por hora – e que podem assumir, alternadamente, o papel de acusação, defesa ou de decisão. As sessões são secretas e não cabe recurso das decisões, pois inexiste instância para recurso. As despesas com os processos chegam a milhões de euros.

As consequências de adoção do sistema ISDS são mais profundas, pois têm efeito de intimidação sobre o próprio processo democrático dos países, ante a simples possibilidade de ser alguma corporação processada com base em legislação interna de defesa do consumidor ou meio ambiente, entre outros. Portanto, um acordo externo comercial entre corporação internacional e o Estado pode impedir as formas de garantir a efetividade dos direitos humanos da população desse Estado nacional, caso violados pelo investidor. É uma forma de inviabilizar o cumprimento da decisão do próprio sistema judicial dos países soberanos.

Desta forma, ao invés de ser a corporação Chevron obrigada a indenizar as vítimas dos crimes ambientais cometidos por sua antecessora, a petrolífera acabou sendo beneficiada com essa decisão da corte arbitral no sentido de obrigar o estado do Equador a indenizar a corporação com um valor a ser arbitrado, em decorrência do contrato firmado entre o Equador e o Governo dos Estados Unidos em benefício do investidor.

Essa determinação absurda foi fortemente criticada por Paulo Fajardo, advogado dos reclamantes equatorianos, que contestou a validade desse resultado arbitral, afirmando não ser possível admitir que o Equador, como país soberano, tenha que indenizar a corporação que fora autora de gravíssimos crimes ambientais e de violação de direitos humanos. Alegou que a questão da arbitragem entre Equador e Chevron difere da questão judicial movida por vítimas desses crimes, na Amazônia equatoriana, cujo andamento foi retardado pela corporação, de inúmeras maneiras, a ponto de demorar 25 anos para ter a sentença homologada em última instância pela Corte Nacional de Justiça de Equador.

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