Os países fortes tornam-se cada vez mais fortes, e os fracos, dia a dia, mais fracos; as pequenas nações se veem, da noite para o dia, reduzidas à condição humilde de estados pigmeus […] e a equação de poder do mundo simplifica-se a um reduzido número de termos, e nela se chega a perceber desde já apenas raras constelações feudais de estados-barões rodeados de satélites e vassalos.
Gal Golbery do Couto e Silva, 1952, “Geopolítica e estratégia”, in “Geopolítica e Poder”, Editora UniverCidade, Rio de Janeiro, 2003, p. 17
Por José Luis Fiori
Segundo Joffrey Sachs, Mike Pompeo, chefe do Departamento de Estado norte-americano, é um ardoroso evangélico que considera que é chegada a hora do Apocalipse, da volta de Cristo e da batalha final do “bem” contra o “mal”, que será liderada pelos Estados Unidos, o maior de todos os povos judaico-cristãos.[1] Além disso, Mike Pompeo é um empresário “rude e simplista”, e um homem da comunidade de inteligência americana, ex-diretor da CIA, sem nenhuma formação diplomática, que opera como uma espécie de ventríloquo de Donald Trump e de sua diplomacia agressiva de desacato às pessoas e de ameaças aos países que discordam ou competem com os Estados Unidos. De qualquer maneira, é um homem que não usa “meias palavras” nem esconde intenções, e foi absolutamente explícito com relação aos objetivos de sua visita-relâmpago à Base Aérea de Boa Vista, no estado de Roraima, junto à fronteira da Venezuela, no dia 18 de setembro de 2020. Todos entenderam sua encenação eleitoral, mas ele também foi claro na sua demonstração ostensiva de poder frente aos governos, e frente às “tropas satélites”, que estão participando do cerco militar ao território venezuelano que está em pleno curso.
O cerco militar à Venezuela começou no mês de abril, com uma grande demonstração do poder naval dos Estados Unidos no Mar do Caribe, mas depois disto, nos meses de junho e julho, a Marinha americana realizou novas simulações de guerra e uma grande “Operação Liberdade de Navegação”, comandada pelo Alm. Craig Fallen, chefe do Comando Sul das Forças Armadas do Estados Unidos, “USSOUTHCOM”, com sede na Flórida, e liderada por uma das mais modernas embarcações da Marinha norte-americana, o destroier USS Pinckney (DDG91). Imediatamente depois, foi a vez da “Operação Poseidon”, que já contou com a participação direta da Colômbia, e foi realizada junto com a visita de Mike Pompeo, que antes de aterrissar em Roraima visitou a Guiana e o Suriname, e obteve o consentimento para utilização de seu espaço aéreo, a leste da Venezuela, pela Força Aérea dos Estados Unidos. Por fim, a visita de Mike Pompeo coincidiu com a “Operação Amazônia” das FFAA brasileiras, realizada entre os dias 4 e 23 de setembro, envolvendo três mil militares trazidos de cinco comandos diferentes, juntamente com uma bateria completa do Sistema Astros, completando o cerco pelo sul do país vizinho.
Apesar da data e das dimensões da operação brasileira, ela foi tratada pelas autoridades militares locais como um exercício regular de suas FFAA, quando de fato envolve acordos e encobre decisões que dizem respeito ao futuro de todos os brasileiros. Mesmo quando essas decisões não sejam novas nem originais e reproduzam a história de longo prazo das relações militares entre o Brasil e Estados Unidos, que começou na primeira metade do século XX, são tratadas como se fossem de exclusiva responsabilidade das Forças Armadas. Uma história longa, mas que pode e deve ser dividida em dois grandes períodos: antes e depois de 1941.
Nas duas primeiras décadas do século XX, a geração do Barão de Rio Branco, e do presidente Hermes da Fonseca concebeu e se propôs fazer uma aliança estratégica do Brasil com os Estados Unidos, que deveria ocorrer junto com a recentralização do poder do Estado e a reorganização das Forças Armadas brasileiras. O objetivo era enfrentar a competição econômica e militar da Argentina, mais rica e poderosa e apoiada pela Inglaterra na disputa pela hegemonia da Bacia do Prata e da própria América do Sul. Nesse período, entretanto, os Estados Unidos estavam absorvidos pela Primeira Guerra Mundial e sua grande crise econômica da década de 30, e deram pouca atenção aos seus vizinhos da América do Sul. Mas isso mudou radicalmente com a entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial, em 1941, e com sua pressão sobre os países do hemisfério para que suspendessem suas exportações para a Alemanha e a Itália.
Foi então que o Brasil tomou uma série de decisões que marcariam sua história militar posterior. Primeiro, cedeu aos norte-americanos o monopólio de sua produção de bauxita, berilo, manganês, quartzo, borracha, titânio e vários outros minerais estratégicos para os Estados Unidos. E logo em seguida, no mesmo ano de 1941, o governo brasileiro concedeu à Marinha americana o direito de operar na costa brasileira, e o direito das tropas americanas de utilizarem suas bases aéreas e navais. Finalmente foi assinado, em 22 de maio de 1942, um Acordo Militar que garantiu o alinhamento das Forças Armadas brasileiras ao lado dos Estados Unidos, em troca de um financiamento de U$ 200 milhões de dólares para aquisição de equipamentos, armas e munições norte-americanas, junto com o compromisso de desenvolver planos conjuntos de defesa e capacitação das FFAA brasileiras.
Em seguida, em agosto de 1942, o Brasil declarou guerra às potências do Eixo, mas o reequipamento das suas Forças Armadas só começou a ser feito, de fato, depois que o país garantiu o envolvimento direto de seus militares no campo de batalha, com a criação da Força Expedicionária Brasileira, em agosto de 1943, e com o envio de seus soldados para a Itália, em fevereiro de 1944, onde foram situados junto ao 371o Regimento Afro-Americano. Um ano depois, a FEB participou da tomada do Monte Castelo, ao lado da 10a Divisão de Montanha Estadounidense, e passou a fazer parte do IV Corpo de Exército Americano, localizado na zona central da Itália. A FEB teve 12 mil baixas, e a maioria de seus oficiais ficou estreitamente ligada a seus parceiros americanos depois do retorno ao Brasil, no segundo semestre de 1945, onde muitos deles vieram a participar do golpe militar que derrubou o presidente Vargas, em 3 outubro de 1945, e decretou o fim do Estado Novo, que os próprios militares haviam instalado em 1937. Por fim, essa mesma geração de militares teve papel decisivo na negociação e assinatura do grande “Acordo de Assistência Militar entre a República do Brasil e os Estados Unidos da América”, em 15 de março de 1952.
Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-lenta-construcao-de-um-Estado-vassalo-e-o-papel-dos-militares-brasileiros/4/48885
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