O mundo ainda não mudou, mas a ideia de que o Ocidente tem as chaves para interpretá-lo está em crise, diz filósofo espanhol. Ainda bem: só livres desta viseira tramaremos dissensos necessários para um novo horizonte civilizatório
Antoni Aguiló, em entrevista ao La Pensante // Tradução de Simone Paz Hernández | Imagem: Arte arborígine da Oceania
Filósofo, colunista e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra nas áreas de filosofia, política e sexualidade, além de defensor dos direitos LGBTQIA+, Antoni Aguiló é também uma das vozes mais visíveis e exigentes da comunidade filosófica da Ilhas Baleares (na Catalunha). Lá, trabalha pela produção de um pensamento filosófico de orientação crítica e descolonizadora, combinando filosofia política com abordagens contemporâneas, como as epistemologias do Sul Global propostas por Boaventura de Sousa Santos — de quem Antoni é um estreito colaborador.
Eles publicaram em 2019, a quatro mãos o ensaio-conversa Aprendizados globais: Descolonizar, desmercantilizar e despatriarcalizar desde as epistemologias do Sul. Conversamos com o filósofo sobre um livro que ele mesmo descreve, por um lado, como uma denúncia de uma realidade histórica ininterrupta de desumanização e, por outro, como um exercício que busca mostrar o quanto a Europa e o Norte global podem aprender com o Sul global, compreendido como uma metáfora do sofrimento que o colonialismo, o capitalismo e o patriarcado causaram ao longo da história, mas também como um espaço de emancipação e resistência.
Você explica que, desde o século XV, o Ocidente estabeleceu e disseminou em escala mundial uma visão da realidade e da cultura atravessada pelo eurocentrismo. Como você entende esse eurocentrismo?
O eurocentrismo é uma espécie de segunda pele tão ligada ao nosso corpo que nós nem percebemos. É uma ideologia supremacista composta por crenças, atitudes e práticas que acabaram se tornando um mau hábito. O ensaio de Montaigne “Sobre os costumes e a dificuldade de mudar os usos aceitos” começa com a história de uma mulher que aprendeu a carregar um bezerro no colo desde muito jovem. Com o tempo, ele se transforma em boi, mas a mulher continua a carregá-lo. Desde que nascemos, bebemos o leite dos costumes. Algo semelhante acontece com o eurocentrismo. É reforçado de várias maneiras, por exemplo, por meio da educação, e ele tem uma influência tão poderosa sobre nós que condiciona nossa maneira de ver e compreender o mundo. É o cimento que segura o muro da discriminação.
É certo que o etnocentrismo, o imperialismo e o patriarcado não são um “pecado” original da Europa. Povos não ocidentais (astecas, persas, otomanos, chineses, etc.) também construíram seus próprios impérios. No entanto, a modernidade europeia reforçou como nunca a obsessão pela superioridade europeia e pela conquista da Terra sob a certeza inquestionável de que a Europa foi o motor da história. Acreditava-se que os europeus possuíam qualidades distintivas e referenciais que nenhum outro povo ou cultura possuía, ou que possuíam racionalidade, liberdade, inventividade, curiosidade e tolerância, entre outras, em maior medida — o que resultou em conquistas civilizatórias consideradas superiores: ciência, tecnologia, burocracia, capitalismo, industrialização, etc.
O eurocentrismo gerou dicotomias que naturalizam e hierarquizam as desigualdades, como centro e periferia, superior e inferior, civilizado e selvagem, desenvolvimento e subdesenvolvimento, entre outras. O domínio eurocêntrico promove essas desigualdades, configura os imaginários sociais e sufoca a possibilidade de um processo cultural capaz de valorizar positivamente a diversidade. Temos o dever de combater o eurocentrismo como legado imposto. Para isso, é necessário inverter as questões: em vez de nos perguntarmos se somos racistas, deveríamos nos perguntar “como acabar com o racismo que habita em nós?”
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/eurocentrismoemxeque/aguilo-fascinante-declinio-do-eurocentrismo/
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