Um antropólogo sonda a ética de reticência andina e as reviravoltas políticas num país submetido à guerra híbrida. A tentativa de manipular o resultado a partir do exterior. A avalanche de votos de protesto. O erro de Evo e a autocrítica do MAS
Por Ricardo Cavalcanti-Schiel | Imagem: Satori Gigie
Para Memélia Moreira, jornalista veterana,
pela sua insistência por esse artigo
Quem já viveu e, sobretudo, realizou pesquisas sobre as dinâmicas sociais na Bolívia durante alguns anos, sabe que os cenários políticos contingentes naquele país são, por regra, instáveis e, em boa medida, inusitados. Os sucessivos e notavelmente estáveis governos de Evo Morales estão mais próximos da exceção que da regra, como também o esteve a sequência de governos neoliberais entre 1985 e 2003. Por um lado, as castas senhoriais do país sempre tiveram que se ver à voltas com disputas faccionais intestinas, além de irrupções contestatárias e eventualmente insurgentes de parte da maioria da população, o que contribuiu para um longo rosário de golpes de Estado ao longo da história republicana do país. Por outro lado, os últimos vinte anos foram marcados pela emergência decisiva das forças populares, de extração indígena andina, nos espaços institucionais de poder de Estado, o que implica, muitas vezes, em lógicas distintas, e não facilmente perceptíveis, de legitimação da representação.
No caso da ação política direta dessas forças populares, é notável como os circuitos de informação e de decisão são sutis e mutáveis. No final do século passado e início deste século, o canal de informação fiável por excelência eram as rádios locais, que transmitiam em quéchua e em aymara, como também as rádios católicas, como a Erbol e a Fides. A partir das mobilizações populares que levaram à queda do neoliberal Gonzalo Sánchez de Lozada em 2003, os celulares passam a servir de canal privilegiado. Em termos ainda mais capilares, a conversação entre membros e representantes sindicais nas comunidades rurais e entre compadres no campo em geral conformam um espaço “invisível”, onde decisões são tomadas e, ao dia seguinte, alguma estrada é bloqueada logo pela manhã, deixando viajantes no meio do caminho, salvo aqueles que, por alguma razão, têm acesso a esses circuitos de informação. É por aí que se desenrola a mobilização popular.
Não é fácil ter informações precisas, na Bolívia, sobre o rumo exato dessas mobilizações, mesmo porque, no nível local, particularmente na porção andina, a tomada de decisões é regida por uma espécie de ética da reticência. Ninguém se adianta às decisões coletivas e tampouco se presta a exibir conhecimento analítico ou prospectivo. A sabedoria (em quéchua, yachay) não se conforma como um cabedal de experiências ou técnicas, que leve ao reconhecimento de uma autoridade diretiva ou instrutiva, mas como uma capacidade de fazer e de realizar esforço, que se expressa como potência de interação e de intercâmbio. As decisões coletivas são sempre comunitárias e consagram-se como consensos. Posições eventualmente divergentes se acomodam a esse consenso ou, do contrário, tenderão progressivamente a se consolidar como uma cisão da comunidade local, como foi o caso da comunidade quéchua onde realizei pesquisas ao longo de muitos anos e onde fiz inumeráveis compadres (leia-se também, inclusivamente, comadres). Nesse mundo, ter compadres é, na realidade, um dos poucos canais eficientes de acesso a informações. O compadrio implica uma relação de lealdade de parte a parte, e sua lógica já chegou a ser eficientemente apropriada, ao final do século passado, para o meio urbano, por um hábil comunicador social, Carlos Palenque, para consolidar seu próprio movimento político, o CONDEPA (“Conciencia de Patria”), o primeiro a lançar mão, em sua discursividade, e de forma sistemática, da simbologia andina e o primeiro a eleger uma “chola”, Remedios Loza, para a Assembleia Nacional Boliviana.
Ainda assim, mesmo entre compadres, a prospecção das movimentações políticas da base popular na Bolívia é um exercício imponderável e arriscado. Sabiamente, se inquirido sobre o rumo das coisas, um compadre diria a outro: “Não sei, compadre. O que será que a comunidade vai decidir?” E esse tempo da decisão é crucial. Depois dele, tudo se precipita.
No mundo popular boliviano (em especial o andino), o voto até pode ser individual, mas a ação política sempre tende a ser coletivamente orientada ou, ao menos, induzida. E isso vale para o campo, para as minas, para os mercados urbanos, para os sindicatos de motoristas, toda uma extensa malha de inclusão das pessoas sociais, que, nesses espaços, compartilham festas e santos padroeiros. Nesse circuito fechado de intercâmbio muito próximo de lealdades, fake news, por exemplo, podem ter uma enorme dificuldade para prosperar. Fake news parece ser, mais, um fenômeno característico de um mundo de individualidades conectadas digitalmente e desconectadas socialmente.
Na última vez que estive na Bolívia, por um mês, imediatamente antes da conflagração da pandemia de coronavírus, havia, por um lado, no meio urbano, uma sensação generalizada de desorientação política, e, por outro, uma bronca surda contra Evo Morales. E ambas as coisas pareciam se misturar. No meio rural, a bronca dos meus compadres com Evo Morales era menor, mas era o mesmo o desconhecimento sobre o que realmente aconteceu por ocasião do golpe de Estado. A mídia local bombardeara exaustivamente ― e tratou-se, de fato, de um bombardeio de saturação ― a versão preparada pelo plano da CIA (com o auxílio da OEA e do Grupo de Lima), de que as eleições tinham sido fraudadas. E essa versão havia se assentado como consenso irrefletido, a ponto de produzir o fenômeno inusitado de que, enquanto todo o resto do mundo sabia que as eleições de 2019 não sofreram qualquer fraude, só na Bolívia a fraude era largamente admitida como fato.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/como-a-bolivia-profunda-derrotou-a-fraude/
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