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Como o Brasil submeteu-se à ditadura financeira

Num trabalho acadêmico recente, história e características de cada fase do processo: do modesto “overnight”, até os anos 1990, à abertura dos mercados, com o Plano Real e ao “financismo de esquerda” com Lula. Tudo piorou pós-2016, mostra estudo

Ilan Lapyda, em entrevista a Patrícia Fachin

Desde os anos 1970, quando a financeirização se tornou uma característica fundamental do capitalismo contemporâneo global, as economias financeirizadas passaram a ser marcadas pelo aumento da desigualdade social e pela financeirização das atividades das empresas industriais e comerciais. No Brasil, esse processo que está em curso há 40 anos, teve início num contexto de alta inflação e elevada dívida externa na década de 1980, e não dá sinais de que será interrompido. 

De acordo com o sociólogo Ilan Lapyda, autor da tese “Financeirização no Brasil nos anos Lula”, depois da instituição do Plano Real o país se transformou numa “plataforma de valorização financeira”, com o controle da inflação, o aumento da dívida pública e a adoção de uma das maiores taxas de juros do mundo. Já nos governos petistas, especialmente entre 2003 e 2010, a despeito do crescimento das políticas sociais, a financeirização ganhou novas dimensões no país. Segundo ele, “uma diferença marcante em relação ao período anterior é que até o início dos anos 2000, tínhamos aqui uma financeirização restrita e ‘de elite’ (limitada à acumulação financeira da burguesia e alta classe média), ao passo que, a partir de então, tem-se uma financeirização elevada e ‘de massas’, já que amplos contingentes de trabalhadores são incorporados”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail àIHU On-Line, o pesquisador explica as consequências desse modelo para o país. “A financeirização contribuiu para que o Brasil não conseguisse retomar um ritmo de crescimento econômico sustentado, nem de diminuição das desigualdades sociais”. Nesse sentido, lamenta, “o país continua preso à armadilha da dívida pública e vulnerável externamente, portanto, à mercê da volatilidade dos mercados financeiros. A desindustrialização e a ‘reprimarização’ da pauta de exportação tampouco foram revertidas”. Ao que tudo indica, adverte, “o governo Bolsonaro tenta acelerar esses processos através de uma série de outras reformas neoliberais e privatizações, além de possuir uma postura de submissão aos EUA no plano internacional”. E acrescenta: “Não à toa, após uma forte queda da Bolsa por causa da pandemia, que atingiu seu mínimo em meados de março de 2020, o mercado financeiro continua confiante no governo e as cotações vieram se recuperando, a despeito da queda da atividade econômica e dos milhares de mortes pela covid-19”.

Confira a entrevista

Ilan Lapyda

A sua tese de doutorado tratou do tema da “Financeirização no Brasil nos anos Lula (2003-2010)”. Como se deu esse processo, quais são suas particularidades nos governos do ex-presidente Lula e em que aspectos se diferencia ou se aproxima do período anterior, dos anos 1990?

Antes de começar a responder, não posso deixar de contextualizar meu trabalho à luz da calamidade que se abateu sobre nosso país – e eu não estou falando da pandemia. Iniciei meu doutorado em 2015, de modo que concebi o projeto da pesquisa entre 2013 e 2014, quando ainda se estava no primeiro governo Dilma e a discussão sobre o período Lula era acalorada. Após o golpe de 2016, mas, sobretudo, de seu desdobramento a partir de 2019, parte das críticas aos governos Lula se tornaram relativamente extemporâneas, ou pelo menos devem ser relativizadas e contextualizadas. A volta de uma coalizão neoliberal ao centro do Estado, da forma como se deu, torna patentes as pressões sofridas pelos governos do PT e, portanto, os limites de sua atuação. Assim, as críticas aos governos Lula, sobretudo no que se refere à financeirização, embora não percam sua razão de ser, devem ser compreendidas nesse quadro, o que não invalida a hipótese de que, caso tivesse havido um enfrentamento mais firme dos interesses financeiros por parte do governo quando ele estava em seu auge, talvez os rumos da política brasileira tivessem sido outros.

Um processo global

Dito isso, para se discutir a financeirização no Brasil, é preciso, primeiramente, enfatizar que esse processo é global. Tanto é assim, que um dos principais teóricos desse fenômeno, François Chesnais, fala em “mundialização financeira” já em seus primeiros escritos sobre o assunto, nos anos 1990. Assim, o aumento das transações financeiras e de títulos dessa natureza em circulação (ações, títulos de dívida, derivativos etc.), o predomínio da fração financeira da classe capitalista, a financeirização das atividades das empresas industriais e comerciais, a centralização do capital, o aumento da desigualdade social, entre outros elementos, costumam estar presentes em todas as economias financeirizadas e passam a ser características fundamentais do capitalismo contemporâneo desde mais ou menos os anos 1970.

Por outro lado, trata-se de um processo heterogêneo (como o é o próprio capitalismo), não ocorrendo com a mesma intensidade nem assumindo as mesmas características em todos os países ou regiões. É por essa razão que os capítulos iniciais da minha tese discutem justamente o conceito de financeirização, bem como apresentam um breve panorama de como ela se instalou na América Latina, antes de passar à análise do caso brasileiro. Não é difícil imaginar que o processo de financeirização em economias/sociedades periféricas ocorra de modo distinto do que no centro, sobretudo no que se refere às relações de exploração e dominação de uns países sobre outros (imperialismo). Como David Harvey já observava em O novo imperialismo, a financeirização colocou em prática mecanismos fundamentais para a ocorrência da “acumulação por espoliação” (ou “despossessão”, em algumas traduções) e, portanto, para as transferências de riqueza dos países subordinados aos dominantes.

Financeirização no Brasil

Passando às considerações sobre o Brasil, um aspecto interessante é que, aqui, a financeirização se inicia já nos anos 1980, devido ao cenário de altíssima inflação e elevada dívida externa. Os bancos e instituições financeiras auferiam “ganhos inflacionários” através de operações “overnight” com a dívida pública, por exemplo, e aumentaram sua proeminência sobre o Estado (reduzindo a autonomia deste na definição de políticas econômicas), assim como o comportamento rentista floresceu e o investimento produtivo caiu fortemente. No entanto, o país ainda não estava plenamente integrado à mundialização financeira nesse momento, o que só ocorreria nos anos 1990, com a rápida e profunda abertura comercial e financeira da cartilha neoliberal. Além disso, de 1980 a 1994, o índice de financeirização do Brasil (calculado por Miguel Bruno) era relativamente baixo, de apenas dois, ou seja, para cada unidade monetária aplicada em atividades produtivas, duas unidades eram alocadas em ativos financeiros.

Com o Plano Real, mudanças fundamentais ocorrem. O principal sustentáculo econômico da financeirização deixa de ser os ganhos com a alta inflação, que foi controlada, e passa a ser a dívida pública, já que altíssimas taxas de juros se tornam um dos pilares da política econômica praticada. Como é sabido, desde então o Brasil apresentou uma das maiores taxas de juros do mundo, o que, somado à política de valorização cambial e à liberalização da conta capital do país, transformou este numa “plataforma de valorização financeira” para o capital internacional, segundo os termos de Leda Paulani. Assim, além do aumento contínuo da dívida pública (e das consequências que o acompanham), de 1995 a 2015, o índice médio de financeirização salta para 7,7!

Quanto ao período Lula propriamente dito, alguns pontos podem ser ressaltados:

  • Primeiro, o forte aumento dos ativos aplicados em fundos de investimento e de previdência complementar. Ao lado das seguradoras, estes figuram como os principais “novos atores” das finanças em âmbito mundial, os chamados investidores institucionais. Se já nos anos 1990 eles vinham concentrando recursos em suas mãos, nos anos 2000 há um forte aumento, acompanhando o “boom” do mercado financeiro. Houve também elevação significativa da participação dos investidores institucionais e de estrangeiros na bolsa de valores, assim como concentração das ações negociadas.
  • Dada a manutenção dos juros altos, o processo de financeirização das empresas também continuou, com todas as suas implicações: elevação da posse de ativos financeiros, da distribuição de dividendos e dos recursos dirigidos à recompra de ações por parte das empresas, e, sobretudo, debilidade das taxas de investimento produtivo.
  • A forma de submissão imperialista do Brasil se alterou, na medida em que, a partir de 2006, a remessa de lucros e dividendos ao exterior supera a forma predominante por anos, o pagamento de juros (ex. aqueles pagos a instituições internacionais, como o FMI).
  • Os bancos, por sua vez, sofreram uma nova rodada de concentração da propriedade e as instituições públicas perderam participação no setor. Eles auferiram polpudos lucros, principalmente através da dívida pública, e continuaram sendo os principais administradores de fundos de investimento e de fundos abertos de previdência complementar, além de atuar fortemente no ramo de seguros. Ainda em relação aos bancos, embora a oferta de crédito ainda seja baixa no setor, a concessão de crédito pessoal e a inserção bancária de pessoas de baixa renda foi estimulada pelo governo, o que levou à ampliação da expropriação financeira dos trabalhadores e contribuiu para o aumento do endividamento (e da inadimplência) das pessoas físicas. Além disso, como apontam Lena Lavinas e Denise Gentil (no artigo “Brasil anos 2000”), houve o aprofundamento do processo de transferência ao setor financeiro de serviços até então prestados pelo Estado em termos de proteção social, revelando um ganho de escala e escopo da financeirização.
  • Assim, para concluir, uma diferença marcante em relação ao período anterior é que até o início dos anos 2000, tínhamos aqui uma financeirização restrita e “de elite” (limitada à acumulação financeira da burguesia e alta classe média), segundo a tipologia de Joachim Becker et al. (no artigo “Peripheral Financialization and Vulnerability to Crisis”), ao passo que, a partir de então, tem-se uma financeirização elevada e “de massas”, já que amplos contingentes de trabalhadores são incorporados.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/para-compreender-a-financeirizacao-do-brasil/

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