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Como o debate sobre reparações pela escravidão voltou a ganhar força nos EUA

Desde que em 1865, ao fim da Guerra Civil americana, um general da União prometeu “40 acres e uma mula” às famílias negras que haviam sido escravizadas nos Estados Unidos, a questão de reparações financeiras pela escravidão é debatida no país.

Alessandra Corrêa

A ordem emitida pelo general William Sherman em janeiro daquele ano previa que 400 mil acres de terras confiscadas dos confederados fossem redistribuídos entre os ex-escravos, recém libertos, em lotes de 40 acres por família. Eles também teriam direito a uma mula.

A promessa nunca foi cumprida, e o breve período da Reconstrução, em que houve iniciativas para garantir direitos iguais à população negra, fracassou e foi seguido por décadas de segregação e terror racial, que agravaram ainda mais a desigualdade econômica entre americanos negros e brancos.

Nesses mais de 150 anos desde a promessa dos “40 acres e uma mula”, a ideia de que o governo deveria pagar compensação financeira pelos dois séculos e meio de escravidão e pelas décadas de discriminação racial que se seguiram sempre esteve presente nos Estados Unidos, em alguns períodos com maior ênfase do que em outros.

Mas, recentemente, há um novo interesse nesse debate, em um momento em que as disparidades raciais no país ficaram ainda mais claras em meio à pandemia de covid-19 (a doença causada pelo coronavírus) e a crise econômica, que afetam desproporcionalmente a população negra.

Desde o final de maio, protestos contra o racismo e a brutalidade policial contra a população negra – desencadeados depois que George Floyd, um homem negro, foi morto sob custódia de um policial branco – levaram centenas de milhares de pessoas às ruas em todo o país e se espalharam pelo mundo.

Nesse contexto, o tema das reparações tem aparecido nas plataformas de vários candidatos, tanto negros quanto brancos, que disputam vagas no Senado, na Câmara e outros cargos públicos nas eleições deste ano. Até mesmo Joe Biden, que deve ser o candidato democrata à Presidência, disse neste mês que apoia a realização de estudos sobre o assunto.

“É o maior nível de debate nacional sobre reparações que já vi na minha vida. E talvez desde a Era da Reconstrução. Dos últimos 150 anos”, diz à BBC News Brasil o economista William Darity, professor da Duke University, na Carolina do Norte, e coautor do livro “From Here to Equality: Reparations for Black Americans in the Twenty-First Century” (“Daqui à Igualdade: Reparações para Americanos Negros no Século 21”, em tradução livre).

Escravos trabalhando com algodão em fazenda na Carolina do Sul, em 1862
Image captionEscravos trabalhando com algodão em fazenda na Carolina do Sul, em 1862

Mudança

Darity ressalta que a “mudança de clima” em torno do debate sobre reparações começou já no ano passado, quando o tema foi citado por vários dos pré-candidatos que buscavam a indicação do Partido Democrata para concorrer à Presidência – entre eles Julián Castro, Beto O’Rourke e as senadoras Kamala Harris e Elizabeth Warren.

“O fato de que havia candidatos presidenciais mencionando o termo ‘reparações’ era surpreendente”, afirma o economista.

Segundo Darity, até então essa discussão costumava ficar, na maior parte, restrita à comunidade negra. “O que é diferente agora é que se tornou um debate que foi aberto ao grande público”, observa.

O congressista democrata John Conyers, morto em 2019, foi o político negro que serviu durante mais tempo no Congresso americano. De 1989 a 2017 (quando renunciou), ele apresentou todos os anos um projeto de lei que previa um estudo sobre o legado da escravidão e propostas de reparação. Mas a possibilidade de uma lei do tipo ser aprovada sempre foi considerada remota.

Recentemente, porém, iniciativas semelhantes vêm sendo adotadas por outros políticos. No ano passado, a congressista Sheila Jackson Lee reapresentou o projeto de Conyers, com o apoio da presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi. Uma subcomissão da Casa realizou audiência histórica para discutir a proposta. O senador Cory Booker apresentou projeto semelhante no Senado.

A questão também vem sendo debatida por vários governos municipais e estaduais e por instituições privadas – algumas das quais estão estabelecendo fundos de reparação para compensar descendentes dos escravizados.

A historiadora Ana Lúcia Araujo, professora da Howard University, em Washington, e autora do livro “Reparations for Slavery and the Slave Trade: A Transnational and Comparative History” (ainda sem tradução no Brasil), que trata da história dos pedidos de reparações financeiras e materiais, observa que esses pedidos nos Estados Unidos são muito antigos e vêm desde o século 18.

“De tempos em tempos essa questão volta à tona”, diz Araujo à BBC News Brasil.

Ela lembra que houve um movimento muito grande de libertos que, no final do século 19, pediram pensões ao governo como forma de reparação. Uma nova onda de discussões sobre o tema ocorreu nos anos 1960.

“Nos períodos em que a questão dos direitos civis começa a declinar, os pedidos de reparação financeira têm tendência a reaparecer”, afirma a historiadora.

Saiba mais em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53190231

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