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Dinheiro: por que perder o medo de criá-lo

Agora, todos debatem a Teoria Monetária Moderna. Suas bases rompem a crença ilógica segundo a qual a moeda é um bem escasso. Emiti-la é uma relação política. Se a compreenderem, as sociedades podem libertar-se da ditadura financeira

Por Blair Fix | Tradução: Antonio Martins

Sempre me espantei pelo fato de a Teoria Monetária Moderna (TMM) ser chamada de “teoria”. Não faço a afirmação de forma depreciativa. Em relação às teorias sobre o dinheiro, estou convencida de que a TMM é a correta. Mas ter uma teoria adequada sobre o dinheiro é como ter uma teoria correta sobre semáforos

Os semáforos são (como o dinheiro) uma convenção social. Concordamos que o vermelho significa pare e o verde, siga. A razão pela qual escolhemos estas cores particulares é um tema interessante, assim com o é a escolha dos lugares onde situamos os semáforos. Mas o fato de o vermelho significar pare e o verde siga foi estabelecido. É algo que nós definimos. Algo similar se passa com o dinheiro. Claro, a moeda é mais complexa que os semáforos – mas apenas no que se refere a sua aplicação. Em termos conceituais, o dinheiro é igualmente simples. É uma convenção social cuja existência definimos.

Para organizar nossa discussão sobre dinheiro, vamos começar com o que ele não é. O dinheiro não é uma coisa. Claro, ele pode assumir formas concretas, como cédulas e moedas. Mas não precisa. Pode ser tão abstrato como dígitos numa conta bancária, ou marcas num bastão. O dinheiro é uma ideia. E um acordo para ligar nossas relações sociais a uma unidade de conta. Para entender a criação de dinheiro, basta observar os princípios da contabilidade de duplo registro. O débito entra de um lado; o crédito, de outro. Os dois lados gêmeos têm sinais opostos, e portanto cancelam-se mutuamente. Isso nos permite criar dinheiro ao mesmo tempo em que mantemos nossas contas equilibradas.

Eis um exemplo simples. Suponha que um amigo me faça um favor; e que eu queira retribuir, mas não tenha tempo de fazê-lo de imediato. Suponha ainda que dê a meu amigo um bilhete dizendo: “Blair te deve um favor”. Este bilhete é o dinheiro. É criado do nada, usando os princípios de contabilidade. De um lado, há um débito: devo a meu amigo um favor. Do outro, um crédito:meu amigo pode agora trocar o documento de dívida que lhe dei com outras pessoas. Temos agora dinheiro em circulação.

É trivial compreender este ato de criação de dinheiro – tanto quanto compreender a criação de um semáforo. Assim como definimos as regras de trânsito, fixamos as normas de contabilidade de dupla entrada. E então, usamos estas regras para regular nosso comportamento, criando dinheiro à nossa vontade.

O interessante, contudo, é que poucas pessoas não compreendem os semáforos. Todos sabemos que podemos colocá-los em qualquer lugar que desejemos, e que eles baseiam-se numa convenção social arbitrária. Contudo, isso não se dá em relação ao dinheiro. A grande maioria das pessoas não o compreende. Para elas, não se trata de uma convenção social arbitrária, que pode ser criada ou destruída à vontade. Em vez disso, enxergam o dinheiro como uma mercadoria escassa – algo que, como água num deserto, precisa ser guardado e conservado.

Por isso, não precisamos tanto de uma teoria do dinheiro – mas de uma teoria sobre por que as pessoas não compreendem o dinheiro.

A obrigação quantificada

Para pensar sobre este assunto, vamos manter em nossa mente a definição de dinheiro. O antropólogo David Graeber é que melhor o define. O dinheiro, ele argumenta, é uma obrigação quantificada. O possuidor de dinheiro está qualificado a receber coisas de outras pessoas (Leia Dívida, os primeiros 5000 anos [em papel | em pdf (inglês)]de sua autoria, para uma explicação detalhada)

Podemos ver, a partir desta definição, que o dinheiro é uma ferramenta poderosa. Na verdade, é uma ferramenta pra o poder. Se tenho muito dinheiro, posso levar outras pessoas a obedecer meus comandos. É um fato sem controvérsias. Todos conhecemos o adágio: “dinheiro é poder”. Mas por algum motivo nos esquecemos dele, quando pensamos na criação do dinheiro. Ele não é nada mais que uma obrigação quantificada. Por isso, em princípio, todos podemos criá-lo. Mas na prática, poucas pessoas têm este poder. O problema é que, para o dinheiro circular, as pessoas precisam acreditar que podem usá-lo para receber uma obrigação. Eu poderia tentar fazer com que circulasse uma cédula dizendo: “Blair te deve um abraço”. Mas, além da minha esposa e filha, poucas pessoas querem este documento de dívida. Por isso, ele nunca circulará como dinheiro.

Na prática, a criação de dinheiro é feita quase exclusivamente pelos poderosos. Livros de Economia sobre o dinheiro usarão a palavra “confiança”. Eles dirão que o dinheiro pode circular enquanto confiemos no emissor. Isso é verdade, mas esconde o lado obscuro da relação de confiança. Quando soldados confiam em seu comandante, é provável que obedeçam ordens. Isso dá poder ao comandante. A confiança é, de muitas maneiras, a base do poder. Não é possível ter relações de poder estáveis sem ela.

Por isso, embora eu pudesse tentar criar dinheiro, poucas pessoas estariam interessadas. Falta-me a confiança do público, o que é outra maneira de dizer que tenho pouco poder. Mas se o Estado quiser criar dinheiro, muitas pessoas estarão interessadas. Muitas pessoas creem no Estado, e é por isso que eles têm poder.

Violência legítima

É famosa a definição do sociólogo Max Weber, segundo a qual o Estado tem o “monopólio do uso legítimo da violência”. Penso que poderíamos igualmente definir o Estado como controlador do monopólio da criação legítima de dinheiro1. Há paralelos muito interessantes, aliás, entre a violência e o dinheiro.

Assim como qualquer um pode criar dinheiro, qualquer um pode praticar violência. Você pode sair à rua neste exato momento e atirar em alguém. Mas a maior parte de nós não o faz. Por que? Primeiro, por acharmos que é errado. Segundo, porque o Estado pune os assassinos. Em outras palavras, a violência, nas sociedades modernas, é altamente regulada. O mesmo é verdade em relação ao dinheiro. Tecnicamente, qualquer um pode criá-lo. Mas poucos de nós o fazemos. Seu documento de dívida pessoal nunca circulará amplamente. E se você tentar criar o dinheiro garantido pelo Estado, este irá puni-lo. Assim como a violência, a criação de dinheiro é estritamente controlada. Para constatar este fato, basta examinar a linguagem. Temos um nome para o tabu da violência (assassinato) e um para o tabu da criação de dinheiro (falsificação).

Os que crescemos em sociedades estáveis acreditamos que tanto a regulação da violência quanto a do dinheiro estão asseguradas. Esta regulação passa a ser sentida como uma “ordem natural”. Mas se você tivesse nascido num país em guerra, suspeito que pensasse diferente. Você compreenderia que qualquer um pode praticar violência – com resultados devastadores. E se você vivesse num período de hiperinflação, provavelmente compreenderia melhor que qualquer um pode criar dinheiro. (As pessoas tendem a definir sua própria moeda, quando o dinheiro estatal perde a confiança).

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/dinheiro-por-que-e-preciso-perder-medo-de-cria-lo/

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