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Entrevista com Milo Rau – Artista em Foco MITsp

O primeiro ponto do NTGent Manifesto, lançado por você em maio de 2018, diz que o teatro não é mais sobre mostrar o mundo e sim sobre mudá-lo. E que o objetivo não é descrever o real, mas tornar a representação em si real. De que modo essas duas premissas são trabalhadas nos espetáculos que você trará ao Brasil na MITsp?

Por Daniele Avila Small, Julia Guimarães, Luciana Romagnolli e Sílvia Fernandes / Tradução: Patrícia Lopes

Eu trabalho com uma dialética entre o ativismo e a substância mais trágica do mundo. A Repetição. História(s) do Teatro (I) e Compaixão. A História da Metralhadora, por exemplo, pertencem ao lado mais trágico do meu teatro. Mas algumas de suas características podem levar a mudanças. Uma redefinição do olhar da plateia sobre a homossexualidade e o direito do outro, por exemplo, seria possível a partir de A Repetição. Fora isso, a agressividade das personagens da peça — jovens de Liège, cidade belga, assassinos de um homossexual — pode ser vista como uma consequência da desindustrialização, da violência causada pelo neoliberalismo na Europa Ocidental. Mas não está em cena uma efetiva mudança das questões abordadas, o que de fato acontece nas peças que realizei na General Assembly — The Congo Tribunal, The Moscow Trials e The Zurich Trials. Nessas, recriamos instituições ou até mesmo inventamos organizações que não existiam. Já Cinco Peças Fáceis descreve o mundo, mais do que tenta transformá-lo.

Gosto sempre de citar o filósofo italiano Antonio Gramsci, que afirma que existe o pessimismo da razão e o otimismo da vontade. A Repetição e Cinco Peças Fáceis não são espetáculos otimistas, são bastante sombrios, até mesmo um pouco deprimentes. Mas apresentam um certo otimismo melancólico no quinto ato, no seu desfecho. É importante dizer que minhas peças, mesmo as mais sombrias, têm uma característica pela qual tenho muito apreço: a solidariedade dos atores com o público. Por exemplo, crianças interpretando o sombrio caso Dutroux. Para a minha geração, uma história extremamente grave. Para elas, algo superado. A maneira como elas interpretam esse caso, como se fosse uma fábula, é muito interessante. E é esse aspecto que gera um certo otimismo. O que também acontece em A Repetição. História(s) do Teatro (I), quando presenciamos pessoas sem camisa no palco, interpretando uma tragédia. É como se fosse uma vingança da arte contra a vida. Mas não configura de fato um ativismo, como o que se faz presente em The Congo Tribunal, por exemplo.

Outro ponto do manifesto propõe a participação de pelo menos dois atores não profissionais em cena. Quais questões eles trazem para o chamado “realismo global” que você tem buscado construir?

Sim, essa é uma das regras. Mas acredito ser necessário observar as regras como um todo. É difícil pinçar apenas uma delas, como a primeira, que é sobre a transformação da realidade. Ambas são importantes para o “realismo global”, assim como as diferentes línguas importam. Para mim, é também relevante que o teatro não seja realizado apenas por profissionais, por especialistas. Eu sou um diretor, por que só poderia dirigir peças previamente escritas ou interpretadas por profissionais, que, assim que aprendem as falas, apresentam-se num palco? Realmente me interessa entrelaçar essas funções. Por isso, peço aos atores para contarem sobre suas vidas ou escreverem as próprias falas. Os atores se tornam dramaturgos. Meu desejo de reunir profissionais com pessoas de um contexto diverso ao do teatro se origina também nesse ponto. Por exemplo, em Hate Radio, peça sobre o genocídio em Ruanda, trabalhar com ruandeses era de uma importância extrema. Eles conheciam o assunto e, de certa forma, tornavam-se moderadores, enquanto eu tentava dar forma a uma experiência que não era a minha. De alguma maneira, preciso deles. O fato de não serem profissionais não é o que importa, inclusive porque o que geralmente acontece – ocorreu após minha peça mais recente, Lam Gods, ou com A Repetição, e mesmo com as crianças que atuam em Cinco Peças Fáceis –, é que eles estreiam nas minhas peças e logo participam de outros espetáculos, filmes ou passam a fazer parte do Ghent Ensemble.

Você já disse em uma entrevista que “realismo”, para você, significa “criar uma situação incontrolável”. Por que o risco real te parece tão potente em termos artísticos, políticos, morais e existenciais?

Dentre os formatos artísticos, o teatro, especialmente, não se resume a um produto, já que abrange um ininterrupto processo de produção cênica, do qual nunca se sabe qual será o desfecho. Por exemplo, a peça que ensaio neste exato momento [janeiro de 2019], intitulada Orestes in Mosul, trata-se de uma coprodução com Mossul, a cidade iraquiana. Não sabemos como será o resultado. E o mesmo ocorreu com A Repetição, nós fomos até a cidade de Liège para iniciar o processo de seleção de elenco, e a peça aborda o processo como um todo. Fazer teatro é abrir um processo, iniciar uma discussão, criar uma espécie de novo coletivo, de nova solidariedade. E qual será o resultado? Não sei. Por isso, na maioria das vezes, não enceno clássicos. Para tentar escrever [as peças] no momento exato da criação. Portanto, o risco está no processo como um todo. Não se trata de ser perigoso. Eu não consigo ver nenhum sentido em simplesmente colocar pessoas em risco. É arriscado no sentido de que vivenciamos um processo que nunca saberemos se dará certo. O teatro, assim como a arte em geral, é uma espécie de desafio. Impossível saber se seremos bem-sucedidos. Para dar outro exemplo, quando montamos Hate Radio, a peça sobre o genocídio em Ruanda, antes de iniciar a turnê européia nos apresentamos na cidade africana; queríamos ter certeza de que havíamos conseguido realizar a peça, de que tivemos êxito em alcançar uma espécie de dureza presente na população de Ruanda. Nós estávamos muito nervosos, especialmente, é claro, os atores ruandeses. Eles não haviam retornado à cidade desde o genocídio e estavam muito apreensivos se seriam compreendidos. E foi necessário [para o processo] que eles vivenciassem essa situação. Fora isso, só fico motivado a trabalhar quando não tenho ideia do que irá acontecer no próximo ensaio. Diversas vezes, fiz a besteira de criar versões para as minhas peças. Sempre foi um erro. As reedições foram extremamente tediosas. Não é o jeito que gosto de trabalhar. Gosto simplesmente de improvisar, do início ao fim.

Há em alguns de seus trabalhos a criação de situações em que problemas sociais de outros países possam ser elaborados criticamente, por exemplo, o genocídio em Ruanda. Enquanto homem branco, europeu, nascido em um continente que foi responsável pela colonização de outros, quais reflexões críticas lhe parecem importantes para não repetir o gesto colonizador no teatro? E como isso pode ser visto em estratégias dramatúrgicas em suas peças?

Trata-se de uma questão de impossível superação. O único caminho seria não montar peças sobre outros países, sobretudo para quem, como eu, nasceu em um continente “colonizador”. Eu acho que o problema é que o homem branco, especialmente o europeu, está, de qualquer forma, presente na África. Por isso, uma presença solidária, um intercâmbio, um contra-ataque, uma resposta à participação do continente europeu na economia, configuram um rumo possível. Eu decidi, ou talvez não tenha sido uma decisão, seguir esse caminho, porque vivemos em um único mundo. Infelizmente, as alterações climáticas não cessam com as fronteiras, que, por sua vez, não paralisam a economia. Não há uma arte realista global, embora haja uma economia global. Eu aposto em uma abordagem global das questões universais, a partir da busca por uma metodologia com um enfoque horizontal. Talvez as críticas sejam dirigidas às abordagens verticais. Mas não tenho todas as respostas. Eu estabeleço práticas [para alcançar a abordagem horizontal] e as questiono a cada projeto. A peça Compaixão. A História da Metralhadora, por exemplo, aborda o genocídio em Ruanda e a Guerra Civil no Congo. Mas apresenta também uma vigorosa crítica à “indústria assistencialista ocidental” e à “miserabilidade na arte”, uma consequência do processo de globalização. Portanto, de certa forma, faço uma autocrítica sobre o meu gesto de falar a respeito da Rússia, de Ruanda e do Congo, e não apenas sobre Liège, Suíça e Alemanha.

Em entrevista recente, você afirma que há duas vias possíveis para o teatro contemporâneo, a tragédia e o ativismo. Como o ativismo se dá na prática de seu trabalho, dentro e fora da cena? Que aspectos do trágico identifica em suas peças que estão na MITsp 2019 e que estratégias utiliza para materializar a tragicidade no diálogo com dispositivos da cena documental?

Há sempre um equilíbrio entre esses dois caminhos. O início da nossa conversa abordou a estética e a arte descritiva. Eu acredito na arte realista. E a realidade é um processo trágico. Mas há outra faceta da minha obra, que tem uma abordagem mais ativista. Por exemplo, apresentei Compaixão. A História da Metralhadora e Hate Radio, enquanto encenava The Congo Tribunal, para a qual criamos uma inexistente e simbólica organização sindical econômica global, visando a compreender e, quem sabe, a transformar a situação do Congo. De fato, para que eu não me torne um cínico, buscamos um equilíbrio entre os projetos realistas/documentais e os utópicos/ativistas. Quanto mais envelheço, mais compreendo o quanto o otimismo e o pessimismo, a tragédia e o ativismo, estão vinculados. Sem a substância trágica do mundo, o ativismo torna-se apenas uma ingenuidade. Por outro lado, só o trágico, sem um traço de utopia, faria de mim, e de todos nós, cínicos. De fato, há uma dialética. Um precisa do outro.

Veja mais em: https://mitsp.org/2019/entrevista-milo-rau/

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