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Arundhati Roy: “Cresci com todas as meias-verdades e mentiras sobre Gandhi”

A renomada intelectual e ativista indiana compila em seu último livro, ‘Coração Rebelde’, 30 anos de reportagens e artigos combativos

Andrea Aguilar

Ela fala de Nova Délhi por videoconferência, vestida de rosa e com uma voz tranquila e o toque suave do sotaque indiano, que não esconde o caráter contundente, combativo, bem articulado e radical de suas abordagens. A escritora Arundhati Roy ganhou fama internacional com seu romance O Deus das Pequenas Coisas há três décadas e não parou desde então na denúncia por meio de bem documentados artigos e ensaios sobre as injustiças e hipocrisias que o sistema neoliberal esconde. Coração Rebelde (ainda sem edição no Brasil) reúne 19 textos nos quais Roy aborda dos testes nucleares à conversão de Nelson Mandela, Martin Luther King e Gandhi em símbolos capitalistas. A Gandhi dedica algumas páginas desafiadoras nas quais tenta separar mito e realidade.

PERGUNTA. A senhora comparou a covid-19 a um desses experimentos com substâncias químicas que permitem iluminar coisas que estavam no escuro. Em que ponto estão as coisas?

RESPOSTA. O que aconteceu nos fala da crise do capitalismo e do neoliberalismo e da destruição de qualquer mínimo vislumbre de sociedade igualitária. Na Índia, tudo foi tão mal planejado e executado que há uma gigantesca crise de fome e desemprego, um colapso total. Além disso, neste mês tivemos a revogação do estatuto especial da Caxemira e a anexação. A retórica do Governo foi tão agressiva contra a China e o Paquistão que o Exército foi deslocado para a fronteira. A economia não mostra nenhum sinal de recuperação. É uma crise enorme. E continuam espalhando o ódio aos muçulmanos prendendo intelectuais, acadêmicos, advogados; assediando jornalistas que não seguem as mentiras do Governo. É um momento muito triste.

P. Neste verão do Hemisfério Norte foi o aniversário de Hiroshima e Nagasaki. A senhora escreveu há mais de 20 anos sobre os testes nucleares da Índia.

R. Sim, e neste momento há três potências nucleares, China, Paquistão e Índia, em um confronto cara a cara. E não se trata apenas sobre se haverá ou não uma guerra ou se será nuclear, mas sobre o efeito que essas armas tiveram na mente das pessoas. Os testes foram o momento em que esse nacionalismo hindu, que promove a islamofobia e considera que tem licença para matar e linchar na rua, passou da oposição a ocupar o Governo.

P. Como as redes sociais afetaram o cenário político e social que a senhora descreve há anos?

R. As redes ampliam as falsidades dos meios de comunicação, mas também são a plataforma na qual avança a pequena resistência que sobrevive. Não são um espaço totalmente cooptado pela direita, mas é aterrorizante o poder que têm, por exemplo, nos processos eleitorais e como o público é manipulado com a disseminação premeditada de notícias falsas. Mas tudo isso funciona em combinação com o poder da mídia estabelecida.

P. A senhora descreve a Índia como um “povo antigo que aprende a viver em uma nação recente”.

R. Eu a vejo como mais do que um país, como um subcontinente, com mais de 20 línguas oficiais e 700 dialetos, que tenta ser um Estado-nação e nesse processo inflige uma enorme quantidade de violência. Atualmente o nacionalismo hindu coloniza os povos indígenas, dos quais expropria terras e expulsa. Não houve um dia desde que a Índia obteve sua independência, em 1947, em que o Exército não tenha sido mobilizado nas fronteiras contra seu próprio povo.

P. Que efeito está tendo o nacionalismo nos EUA com Trump?

R. Conhecemos a história do Vietnã, do Irã e de qualquer país da América do Sul ou no Iraque. Não precisávamos das redes sociais para ver mentiras impressas nos jornais respeitáveis, como a história das armas de destruição em massa de Saddam. Agora estamos diante do surgimento de uma nova ordem mundial. É o fim da hegemonia mundial norte-americana.

P. Como a senhora lida com as críticas que seus escritos recebem? Seu ensaio sobre grupos maoístas foi ferozmente atacado.

R. Não sou maoísta, mas falo que forças paramilitares pretendem derrocar as guerrilhas em lugares onde 99% dos indígenas estão sob a influência de organizações maoístas. Pelo menos 40% deles são soldados dedicados à causa porque viram suas aldeias arrasadas, estupros e encarceramentos em massa. O que esperam que eles façam? Querem que sejam como Gandhi? Ele precisou de um grande palco e de muito público. Você não pode fazer greve de fome se já estiver passando fome.

Saiba mais em: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-08-26/arundhati-roy-cresci-com-todas-as-meias-verdades-e-mentiras-sobre-gandhi.html

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