Max Weber observou a profunda aversão da Igreja ao capital, novo ídolo na era moderna. Jorge Bergoglio resgata corrente anticapitalista – e não marxista – que propõe crítica radical à crise causada pelos modelos alienados de produção e consumo
Publicado 02/03/2020 às 18:49
Por Michel Löwy, no A Terra é Redonda
A hipótese de Max Weber
Max Weber argumentava, em seu célebre ensaio de sociologia das religiões, que a ética protestante era favorável ao desenvolvimento do capitalismo, especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos; encontramos uma hipótese análoga, meio século antes, em certos escritos de Marx (em especial, nos Grundrisse). Todavia, neste mesmo texto, Weber sugere que a ética católica era, ao contrário, fundamentalmente hostil ao espírito do capitalismo.
Em uma nota de rodapé, no contexto de uma polêmica contra os trabalhos de Franz Keller, ele afirma que as tomadas de posição da Igreja Católica em relação ao capitalismo enquanto tal são determinadas por uma “aversão tradicionalista, sentida o mais das vezes de forma confusa, contra o crescente poder impessoal do capital – dificilmente suscetível, por isso mesmo, de eticização”[i]
No decorrer do debate que provocou a publicação de seu livro, Weber propôs um novo conceito: o de uma incompatibilidade (Unvereinbarkeit) entre os ideais aos quais se subscreve o crente católico seriamente convencido” e a “busca ‘comercial’ do ganho”. De fato, esta incompatibilidade não exclui as adaptações, mas, acrescenta o sociólogo, “eu não posso interpretar os numerosos ‘compromissos’ práticos e teóricos senão justamente como ‘compromissos’”[ii]. Em outros termos: se existem compromissos, é porque duas potências hostis se confrontam, e a Unvereinbarkeit continua sendo o tom dominante da relação católica com o espírito do capitalismo.
Ele retorna a esta problemática em diversos outros textos, notadamente em sua História Econômica: “A aversão profunda da ética católica, seguida pela ética luterana, a toda tendência capitalista repousa essencialmente sobre a repugnância que lhes inspira a impessoalidade das relações no interior da economia capitalista. Esta impessoalidade subtrai da igreja e de sua influência moralizadora certas relações humanas, excluindo assim toda infiltração e toda regulamentação ética de sua parte.”[iii]
A hipótese weberiana me parece essencial para compreender diversos fenômenos sociorreligiosos, desde o século XIX até hoje. De fato, esta hostilidade, esta aversão, esta “antipatia” (um outro termo utilizado por Weber) contra o capitalismo assumiu, particularmente no século XIX, um caráter conservador, retrógrado, em uma palavra, reacionário. Estas manifestações não tinham escapado à atenção de Marx e Engels, que as designou ironicamente de “socialismo feudal”.
Eis o que dizem sobre o assunto no Manifesto do Partido Comunista, que as denuncia, mesmo reconhecendo a sua dimensão crítica (antiburguesa): “O socialismo feudal, um misto de lamento, pasquim, eco do passado e vaticínio das ameaças do futuro – por vezes, atingindo a burguesia no coração com veredictos amargos e espirituosamente dilacerantes, mas sempre causando impressão engraçada, graças a sua total incapacidade de compreender o curso da história moderna”[iv].
Tratava-se, provavelmente, de autores tais como o filósofo social romântico e católico Johannes von Baader, firme partidário da Igreja e do Rei que denunciava, no entanto, a condição miserável dos proletairs (seu termo) na Inglaterra e na França, mais cruel e desumana do que a servidão. Criticando a exploração brutal e nada cristã desta classe desprovida pelos interesses do dinheiro (Argyrokratie), ele propõe que o clero católico se torne o defensor e o representante dos proletairs.
Dito isso, vê-se aparecer, no seio do capitalismo, uma corrente anticapitalista de esquerda. Paradoxalmente, o crescimento de uma esquerda católica aparece em relação ao fato de que a Igreja se mostrava cada vez mais disposta a procurar um compromisso com a sociedade burguesa. Depois da mordaz condenação dos princípios liberais no Syllabus (1864), Roma parecia admitir, desde o fim do século XIX, o advento do capitalismo e o estabelecimento de um Estado moderno (“liberal”) burguês como fatos irreversíveis.
A manifestação mais aparente dessa nova estratégia foi a aproximação da Igreja francesa (até então defensora incondicional da monarquia) com a República. O catolicismo intransigente toma a forma de um “catolicismo social” que, ainda que criticando sempre os excessos do “capitalismo liberal”, não mais coloca verdadeiramente em questão a ordem social e a economia existentes. Seguem na mesma direção todos os documentos provenientes da magistratura romana (os encíclicos pontificiais) assim como a doutrina social da Igreja, do Rerum Novarum (1891) até Ratzinger (Bento XVI).
Foi precisamente no momento da “reconciliação” – real ou aparente – da Igreja com o mundo moderno que apareceu uma nova forma de socialismo católico, notadamente na França, que se tornaria uma minoria consequente na cultura católica francesa. Na virada do século, vê-se florescer simultaneamente as formas mais reacionárias do anticapitalismo católico – Charles Maurras, o movimento da Ação Francesa e a ala regressiva da Igreja, que assumiriam uma parte ativa na sinistra campanha antissemita contra Dreyfus – e uma forma de anticapitalismo não menos “intransigente”, mas agora de esquerda, cujo primeiro representante foi o escritor dreyfusiano filosemita e socialista libertário, Charles Péguy, que tornou-se católico em 1907 apesar de jamais ter sido recebido pela Igreja. Esta corrente não era isenta de ambiguidades, mas seu engajamento fundamental era à esquerda.
A partir do fim do século XIX, e mais ainda depois da Revolução Russa, era evidente que o inimigo principal do Vaticano não era mais o “liberalismo” burguês, mas definitivamente o movimento operário socialista e, em particular, o “comunismo ateu”. Pio XII vai se distinguir neste combate, excomungando os comunistas na Itália (1948) e interditando, na França, a atividade de padres operários, excessivamente próximos da CGT (anos 1950). Woytila, João Paulo II, o papa polonês, reassumirá esta iniciativa em um novo contexto histórico.
Apesar da hostilidade romana, a esquerda católica continua a se desenvolver na Europa e ainda mais na América Latina, com o crescimento, a partir de 1960, da Teologia da Libertação. Uma das características principais desta corrente, representada por movimentos estudantis, operários e rurais, por comunidades de base, teólogos, mas também de bispos, é a condenação intransigente, moral e política, do capitalismo, em termos nos quais a influência do marxismo é visível.
Veja-se, por exemplo, a conclusão do documento Marginalização de um povo: o grito das igrejas, assinado pelos bispos e superiores de ordens religiosas da região Centro Oeste do Brasil: “É preciso vencer o capitalismo: ele é o maior mal, o pecado acumulado, a raiz podre, a árvore que produz todos os frutos que conhecemos tão bem: a pobreza, a fome, a doença, a morte. Por isso, é preciso que a propriedade privada dos meios de produção (fábricas, terra, comércio, bancos) seja superada.”[vi]
e Paulo VI manifestou certa tolerância face à teologia da libertação, o mesmo não foi o caso dos dois pontífices seguintes: João Paulo II e Bento XVI perseguiram ativamente seus representantes, chegando a impor ao teólogo Leonardo Boff um ano de “silêncio obsequioso”.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/michel-lowy-explica-por-que-francisco-e-rebelde/
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