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“Não subestimem o populismo de esquerda”

Chantal Mouffe sustenta: velhos partidos tornaram-se incapazes de enfrentar a direita por insistirem no bom-mocismo e na volta ao “velho normal”. É hora do choque Multidão X Oligarquia; e de recolocar os afetos no centro da política

Por Chantal Mouffe | Tradução: Simone Paz Hernández | Imagem: Cândido Portinari, A Onça (1955)

O fim do populismo de esquerda vem sendo anunciado por vários de seus críticos. Afirmam que, já que os partidos populistas de esquerda não conseguiram atingir seus objetivos, é hora de retornar à concepção tradicional de classe da política. Quero desafiar essa visão e argumentar que, na atual conjuntura, uma estratégia populista de esquerda é mais relevante do que nunca. A Covid-19 exacerbou as desigualdades existentes e acentuou a crise orgânica do neoliberalismo. Não haverá um retorno “normal dos negócios”, no pós-pandemia.

Isso, de fato, aconteceu após a crise econômica de 2008. Mas, naqueles anos, a hegemonia do neoliberalismo era quase incontestável e hoje o contexto político é diferente. A crise de 2008 trouxe à tona os limites do capitalismo financeiro e a globalização neoliberal deixou de ser considerada nosso destino. Depois de anos de pós-política, em que não havia nenhuma diferença fundamental entre as políticas de direita e esquerda, estamos testemunhando um “retorno da política”. Hoje em dia, em vários países existem movimentos radicais de esquerda, que desafiam o liberalismo social dos partidos de centro; também florescem diversas formas de ativismo, em muitos campos. Fridays for Future, o movimento juvenil em defesa do clima e as mobilizações antirracistas do Black Lives Matter trouxeram visibilidade internacional para essas lutas.

Estratégias de contestação

Acredito que a Covid-19 vai deixar como consequência um confronto sobre as diferentes estratégias que existem para lidar com a crise econômica, social e ecológica que a pandemia trouxe à tona. Os neoliberais, sem dúvida, tentarão usar o poder do Estado para reafirmar a predominância do capital. Este “neoliberalismo estatal” poderia ser apoiado por medidas autoritárias em certos países, confirmando a tese de Wolfgang Streeck de que a democracia e o capitalismo tornaram-se incompatíveis. O autoritarismo neoliberal pode assumir uma forma digital como previsto por Naomi Klein no Screen New Deal. Como mostra o debate atual sobre uma resposta tecnológica adequada à crise sanitária, é crescente a tendência de considerar que a solução consiste em adquirir aplicativos para controlar a saúde da população.

A crise do coronavírus representa uma grande oportunidade para os gigantes digitais se estabelecerem como agentes de uma política de saúde totalmente informatizada. A ambição de estender seu controle a outros domínios poderia ser legitimada pela promoção tão em voga do “solucionismo tecnológico”, que Evgeny Morozov já analisou. Em seu livro “Para salvar tudo, clique aqui” [1], Morozov nos alerta contra os perigos dessa ideologia do solucionismo promovida pelo Vale do Silício, segundo a qual todos os problemas, até os políticos, têm solução tecnológica. Ele ressalta o fato dos “solucionistas” defenderem medidas pós-ideológicas, que implementam a tecnologia para evitar a política.

Acreditar que plataformas digitais possam fornecer uma base para a ordem política condiz com a afirmação dos políticos da terceira via de que os antagonismos foram superados e que esquerda e direita são “categorias zumbis”. O solucionismo não passa de uma versão tecnológica da concepção pós-política que se tornou dominante durante a década de 1990. Facilita a aceitação de formas pós-democráticas de tecno-autoritarismo, imunes ao controle democrático. Uma versão neoliberal de tecno-autoritarismo pode não ser o Estado tecno-totalitário de vigilância que alguns temem, ainda — mas pode representar o primeiro passo nessa direção

Dos partidos populistas de direita, vem uma resposta diferente: dizendo-se a voz do povo, acusam as elites neoliberais de serem responsáveis pela crise, causada por suas políticas de globalização e de abandono da soberania nacional. Para restaurar essa soberania, eles defendem uma política de imunização que protegeria os cidadãos, restringindo drasticamente a democracia a apenas certas categorias e impondo barreiras muito rígidas à imigração. Seu discurso anti establishment e sua rejeição ao governo das corporações transnacionais são bem recebidos em vários setores e ressoam nos setores populares

Eles poderiam constituir uma força de resistência ao domínio pós-político do autoritarismo high tech, mas ao custo de impor um modelo nacionalista, autoritário, de natureza xenófoba e socialmente conservadora.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/chantalmouffe-nao-subestimem-o-populismo-de-esquerda/

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