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Naomi Klein propõe os Anos da Reparação

É preciso construir um novo horizonte político, para um mundo devastado por pandemia, desigualdade e consumismo fútil. Autora de Capitalismo de Desastres sugere: reparar as tramas sociais rompidas será a oportunidade de reinventá-las

Por Alcira Argumedo | Tradução de Simone Paz

Na reunião inaugural da Internacional Progressista, a jornalista, escritora e ativista canadense Naomi Klein, anunciou que se avizinham longos e gratificantes tempos de reparação. Reparação fundamental na América Latina, diante das consequências da dominação, por décadas, das políticas neoliberais e de globalização — cujos fracassos já vinham sendo anunciados na Inglaterra, França, Itália, Espanha e Estados Unidos, e na Colômbia, Equador, Peru, Chile e Argentina. A Covid-19 não só aprofundou como foi o estopim de uma crise alimentada pelo crescimento exponencial do desemprego, pela precariedade do trabalho, pela pobreza e falta de moradia, cujo complemento tem sido o crescimento (também exponencial) da concentração e polarização da riqueza a limites insustentáveis: enquanto os 20% mais ricos da população mundial concentram 96% da riqueza, 80% — cerca de 6,5 bilhões de pessoas — detêm apenas 4% dela.

Esses tempos de reparação são uma resposta às políticas inspiradas por Friedrich von Hayek, Milton Friedman e a Escola de Chicago, que conseguiram instalar-se em nosso continente usando a “Doutrina do Choque”, tão lucidamente analisada por Naomi Klein em seu livro de 2007. Políticas que foram executadas “naqueles momentos em que diversos fatores negativos impediam a participação cidadã” — por exemplo, quando uma sociedade acaba de ser vítima de algum desastre e carece de defesas contra medidas econômicas socialmente agressivas. Na América Latina foram as ditaduras cívico-militares genocidas dos anos 1970; que, na Argentina, plantaram o ovo da serpente de uma dívida externa fraudulenta e abominável, e iniciaram os processos de desindustrialização e desemprego; enquanto, sob a ditadura de Augusto Pinochet no Chile, os Chicago Boys implantaram como teste-piloto todas as medidas que foram posteriormente impostas por Margaret Thatcher na Inglaterra, e por Ronald Reagan nos Estados Unidos. Desde o início da década de 1980, também tiveram a seu favor a poderosa arma da Revolução Científico-Técnica, que encerrou o ciclo histórico da Revolução Industrial e estabeleceu profundas transformações tecnológicas nas dinâmicas econômica e militar. Um ciclo neoliberal que se fecha simbolicamente, também no Chile, com a derrota avassaladora que seu povo impôs às pretensões de continuidade da Constituição de Pinochet.

No início da década de 1990, fortalecida pela euforia do “fim da história”, e pelo “único caminho” diante da queda do Muro de Berlim, expande-se e aprofunda-se aquilo que Naomi Klein chama de “lógica implacável da privatização” e, também, a conversão de direitos em mercadorias: saúde, educação, aposentadoria e pensões, a infra-estrutura dos serviços de assistência, o desmonte dos Estados de bem-estar — que vivenciaram um verdadeiro saque dos recursos naturais, de empresas públicas lucrativas, sistemas de comunicação e informação, do setor financeiro, transporte, controle de comércio exterior, das rotas nacionais ou regioniais e outras áreas estratégicas, para favorecer grupos econômico-financeiros locais e estrangeiros. Esta enorme transferência de riqueza combinou-se com uma reconversão tecnológica em larga escala nas mais diversas áreas de atuação, alimentando o duplo processo de crescimento exponencial do desemprego e da deterioração social, feito um espelho invertido da concentração de riqueza.

É bem significativo que em 1992, vinte anos após a Conferência de Estocolmo — quando a preocupação sobre os problemas de crescimento econômico e o futuro da natureza foi trazida à tona pela primeira vez, internacionalmente — a Cúpula da Terra tenha sido realizada no Rio de Janeiro. Na declaração final desta Cúpula, é reivindicado o direito de todos os seres humanos a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza. Nada poderia estar mais longe da realidade, como aponta Klein, num momento em que a expansão neoliberal vai transgredir dramaticamente ambas aspirações, promovendo um crescimento econômico intimamente ligado ao superconsumo supérfluo e de ostentação, especialmente entre os setores mais ricos da população mundial, principais responsáveis pela poluição e destruição do mundo natural como nunca antes na história. Considerando o acelerado crescimento econômico da Índia e da China hoje em dia, sustentado pelo uso massivo de carvão e outros combustíveis fósseis, essa situação é ainda mais grave.

Dinâmica essa que está nos levando à sexta grande extinção de espécies de plantas e vertebrados, destruindo seriamente os ecossistemas. É “um período de revelações implacáveis, sem trégua”. O que a Covid-19 descobriu e revelou é o que Naomi Klein chama de “um mundo rompido”. Um mundo rompido onde geleiras são fragmentadas, florestas queimadas, a poluição do ar com dióxido de carbono aumenta, eventos climáticos extremos se repetem, o nível do mar sobe e bilhões de seres humanos carecem das condições mínimas de sobrevivência. A confluência entre a crise econômico-social, a crise ambiental e a crise da saúde gerou as condições de uma crise civilizatória. Diante dela, se as estruturas de poder, os valores e as concepções dominantes (principais causadoras destas crises e de nosso mundo quebrado) forem mantidas, as perspectivas são catastróficas. Noam Chomsky e a Internacional Progressista já nos alertam para a possibilidade de extinção: especificamente, da vida no planeta. Diante dessas realidades, a grande tarefa, o desafio incontornável, é: encarar os anos de reparação.

Naomi Klein analisa os problemas atuais com aquele olhar integral e abrangente que caracteriza seus trabalhos — entre eles, “Tudo Pode Mudar: Capitalismo versus Clima” (2014) e “Não basta dizer não” (2017). Nessa perspectiva, ela explica o crescimento no mundo de “homens poderosos de extrema direita (que) empunham nacionalismos machistas e identidades supremacistas” e questiona duramente a ideia de progresso concebido como mero crescimento econômico. Essa perspectiva acarreta uma forte crítica à reivindicação da supremacia branca e às tradições racistas que marcam a longa história do capitalismo. Basta citar Marx quando se refere à fase de acumulação primitiva do capital e afirma que esse regime nasceu “coberto de sangue e lama” , devido ao comércio de escravos e à pilhagem do Novo Mundo. Mas não foi só nessa primeira fase: com diferenças dependendo das regiões e até das datas relativamente próximas, como os anos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial, 80% da população mundial na Ásia, África e América Latina foi submetida à dominação colonial ou neocolonial pelas potências ocidentais. Mais tarde, o fez o mesmo Japão nas áreas asiáticas, onde “os fundamentos racistas do capitalismo moderno” foram colocados em prática.

É por essas razões que Naomi Klein nos chama a aproveitar o tempo que a Covid nos deu, para “olhar para o passado e marcar aquele encontro que foi adiado com a sua história, e com seus crimes mais brutais”. Uma revisão essencial, dada a evidência de que o neoliberalismo gerou uma imensa massa de excedente populacional descartável. Vítimas da dinâmica econômica imposta pelos grupos dominantes, agora, não conseguem nem servi-los como mão de obra barata, substituídos por tecnologias; nem como consumidores, devido aos seus níveis de pobreza e indigência. À situação soma-se o fato das guerras contra os povos do “Eixo do Mal”, lançadas pelos Estados Unidos e pela OTAN desde o início do século XXI, terem gerado milhões de mortos — e também milhões de refugiados, que fogem da fome e da devastação, desde o Oriente e do Sul, em busca de refúgio. Porém, são rejeitados como “novos bárbaros” nas fronteiras da Europa e dos Estados Unidos. Diante desse drama concebido por eles mesmos, mais uma vez, no mundo todo, “homens poderosos de extrema-direita empunham nacionalismos machistas e identidades supremacistas, como suas armas mais letais para distrair e dividir povos, e acumular somas inimagináveis de riquezas ilícitas”.

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