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O vírus transparente e os unicórnios invisíveis

Entre o reino transcendente, dos deuses e mercados; e o mundano, das desigualdades e devastação, há uma esfera intermediária. Três seres astutos e terríveis a habitam. Sua força: não serem percebidos e agirem em conjunto

por Boaventura de Sousa Santos

Publicado 07/04/2020 às 20:03 – Atualizado 07/04/2020

Os debates culturais, políticos e ideológicos do nosso tempo têm uma opacidade estranha que decorre da sua distância em relação ao cotidiano vivido pela grande maioria da população, os cidadãos comuns – “la gente de a pie”, como dizem os hispano-americanos. Em particular, a política, que devia ser a mediadora entre as ideologias e as necessidades e aspirações dos cidadãos, tem vindo a demitir-se dessa função. Se mantém algum resíduo de mediação, é com as necessidades e aspirações dos mercados, esse mega-cidadão informe e monstruoso que nunca ninguém viu, nem tocou ou cheirou, um cidadão estranho que só tem direitos e nenhum dever. É como se a luz que ele projetasse nos cegasse. De repente, a pandemia irrompe, a luz dos mercados empalidece e da escuridão, com que eles sempre nos ameaçam se não lhe prestarmos vassalagem, emerge uma nova claridade. A claridade pandêmica e as aparições em que ela se traduz. O que ela nos permite ver e o modo como for interpretado e avaliado determinarão o futuro da civilização em que vivemos. Estas aparições, ao contrário de outras, são reais e vieram para ficar.

A pandemia é uma alegoria. O sentido literal da pandemia do coronavírus é o medo caótico generalizado e a morte sem fronteiras causados por um inimigo invisível. Mas o que ela exprime está muito para além disso. Eis alguns dos sentidos que nela se exprimem. O invisível todo poderoso tanto pode ser o infinitamente grande (o deus das religiões do livro) como o infinitamente pequeno (o vírus). Em tempos recentes, emergiu um outro ser invisível todo poderoso, nem grande nem pequeno porque disforme: os mercados. Tal como o vírus, é insidioso e imprevisível em suas mutações, e, tal como deus (Santíssima Trindade, encarnações), é uno e múltiplo. Exprime-se no plural mas é singular. Ao contrário de deus, o mercado é onipresente neste mundo e não no mundo do além, e, ao contrário do vírus, é uma bendição para os poderosos e uma maldição para todos os outros (a esmagadora maioria dos humanos e a totalidade da vida não humana). Apesar de onipresentes, todos estes seres invisíveis têm espaços específicos de acolhimento: o vírus, nos corpos; deus, nos templos; os mercados, nas bolsas de valores. Fora desses espaços, o ser humano é um ser sem abrigo transcendental.

Sujeitos a tantos seres imprevisíveis e todo-poderosos, o ser humano e toda a vida não humana de que depende são iminentemente frágeis. Se todos estes seres invisíveis continuarem ativos, a vida humana será, em breve (se o não é já) uma espécie em extinção. Está sujeita a uma ordem escatológica e aproxima-se do fim. A intensa teologia que é tecida à volta dessa escatologia contempla vários níveis de invisibilidade e de imprevisibilidade.

O deus, o vírus e os mercados são as formulações do último reino, o mais invisível e imprevisível, o reino da gloria celestial ou da perdição infernal. Só ascendem a ele os que se salvam, os mais fortes (os mais santos, os mais jovens, os mais ricos). Abaixo desse reino está o reino das causas. É o reino das mediações entre o humano e o não humano. Neste reino, a invisibilidade é menos rarefeita, mas é produzida por luzes intensas que projetam sombras densas sobre esse reino. Este reino é composto por três unicórnios. Sobre o unicórnio escreveu Leonardo da Vinci: “O unicórnio, através da sua intemperança e incapacidade de se dominar, e devido ao deleite que as donzelas lhe proporcionam, esquece a sua ferocidade e selvageria. Ele põe de parte a desconfiança, aproxima-se da donzela sentada e adormece no seu regaço. Assim os caçadores conseguem caçá-lo.” Ou seja, o unicórnio é um todo poderoso, feroz e selvagem que, no entanto, tem um ponto fraco, sucumbe à astúcia de quem o souber identificar.

Desde o século XVII, os três unicórnios são o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. São os modos de dominação principais. Para dominarem eficazmente têm de ser, eles próprios, destemperados, ferozes e incapazes de se dominar, como adverte Da Vinci. Apesar de serem onipresentes na vida dos humanos e das sociedades, são invisíveis na sua essência e na essencial articulação entre eles. A invisibilidade decorre de um sentido comum inculcado nos seres humanos pela educação e pela doutrinação permanentes. Esse sentido comum é evidente e é contraditório ao mesmo tempo. Todos os seres humanos são iguais (afirma o capitalismo); mas, como há diferenças naturais entre eles, a igualdade entre inferiores não pode coincidir com a igualdade entre os superiores (afirmam o colonialismo e o patriarcado). Este sentido comum é antigo e foi debatido por Aristóteles, mas só a partir do século XVII entrou na vida das pessoas comuns, primeiro na Europa e depois em todo o mundo.

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