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Os EUA têm o dever de anistiar Julian Assange

A um passo de derrotar Trump e a extrema-direita, país tem um dever com o mundo: cancelar a perseguição kafkiana contra quem revelou verdades do poder. Aqui, um grande escritor relata a agonia de Assange no cárcere

Por John Pilger, entrevistado por Timothy Erik Ström, em seu blog | Tradução: Gabriela Leite e Simone Paz | Imagem: Subash Thebe

John Pilger assistiu ao julgamento de extradição de Julian Assange na galeria pública da Corte Criminal Central de Londres. Foi entrevistado por Timothy Erik Ström da revista australiana “Arena”.

Após assistir em primeira mão ao julgamento de Julian Assange, você pode descrever qual era a atmosfera que prevalecia na corte?

A atmosfera foi chocante. Digo sem hesitar: já estive em muitos tribunais e raramente presenciei tanta corrupção do devido processo — isto é, devida vingança. Deixando de lado o ritual associado à “justiça britânica”, em alguns momentos parecia-se com um julgamento-espetáculo stalinista. A diferença é que, nesses julgamentos-espetáculo, o réu permanecia no tribunal adequado. No julgamento de Assange, o réu estava enjaulado atrás de um vidro espesso, e tinha de rastejar até uma fenda no vidro, sob os olhares de seu guarda, para conversar com seus advogados. Sua mensagem, sussurrada e difícil de ouvir por trás da máscara facial, era então passada por meio de um bilhete por toda a extensão do tribunal até onde seus advogados discutiam o caso contra a sua extradição a um inferno norte-americano.

Considere a rotina diária de Julian Assange, um australiano que está sendo julgado por fazer jornalismo verdadeiro. Ele era despertado às cinco da manhã em sua cela na prisão de Belmarsh, no desolado sul de Londres. Da primeira vez que vi Julian em Belmarsh, após passar por meia hora de averiguação da “segurança”, o que incluiu o focinho de um cachorro no meu traseiro, me deparei com uma figura dolorosamente magra, sentada sozinha usando uma pulseira amarela. Ele perdeu mais de dez quilos em questão de meses, seus braços não tinham mais músculos. Suas primeiras palavras foram: “acho que estou perdendo o juízo”.

Tentei assegurar a ele que isso não era verdade. Sua coragem e resiliência são formidáveis, mas há um limite. Isso foi há mais de um ano. Nas últimas três semanas, durante a madrugada, ele foi revistado, algemado e preparado para o transporte até o Tribunal Criminal Central, o Old Bailey, em um caminhão que sua companheira, Stella Moris, descreveu como um caixão virado. Tinha uma janela pequena, que ele precisava se levantar precariamente para conseguir alcançar. O caminhão e seus guardas eram operados pela Serco, uma das muitas empresas politicamente conectadas que comandam boa parte da Grã Bretanha sob Boris Johnson.

A viagem até o Old Bailey demorava ao menos uma hora e meia. Isso significa um mínimo de três horas sendo sacudido em um trânsito lento todos os dias. Foi levado até sua jaula estreita, no fundo do tribunal, e então olhou para cima, piscando, tentando reconhecer rostos na galeria pública por trás dos reflexos do vidro. Viu a figura cortês de seu pai, John Shipton, e eu, e nossos punhos ergueram-se. Através do vidro, ergueu os braços para tocar os dedos de Stella, que é advogada e estava sentada no corpo do tribunal.

Estávamos lá para o caso definitivo do que o filósofo Guy Debord chamou de Sociedade do Espetáculo: um homem lutando por sua vida. E seu crime é ter realizado um serviço público notável: revelar aquilo que temos o direito de saber, as mentiras de nossos governos e os crimes que cometem em nosso nome. Ao criar o WikiLeaks e sua proteção à prova de falhas, revolucionou o jornalismo, restaurando a como era visto por seus idealistas. A noção de jornalismo livre de Edmund Burke como um quarto poder é, agora, um quinto poder que acende uma lanterna sobre aqueles que diminuem o próprio significado de democracia com seu sigilo criminal. É por isso que sua punição é tão extrema.

O puro preconceito nos tribunais em que estive neste ano e no ano passado, com Julian no banco dos réus, arruína qualquer noção de justiça britânica. Quando a polícia criminosa o arrastou de seu asilo na embaixada equatoriana — olhe de perto na fotografia e você verá que ele está agarrado a um livro do Gore Vidal, o Assange tem um humor político similar ao dele — um juiz o condenou a uma sentença ultrajante de 50 semanas em uma prisão de segurança máxima por mera violação da fiança.

Por meses, foi-lhe negado o direito de fazer exercícios, e ficou detido em um confinamento solitário disfarçado de “enfermaria”. Uma vez ele me disse que caminhou pelo comprimento de sua cela, ida e volta, ida e volta, fazendo sua própria meia-maratona. O ocupante da cela ao lado gritava durante toda a noite. De início, lhe foram negados seus óculos de leitura, esquecidos durante a brutalidade na embaixada. Negaram a ele seus documentos legais de que precisava para preparar seu caso, e o acesso à biblioteca da prisão, além do uso de um notebook básico. Os livros que foram enviados a ele por um amigo, o jornalista Charles Grass, sobrevivente de um sequestro em Beirute, no Líbano, foram devolvidos. Ele não podia ligar para seus advogados norte-americanos. Era constantemente medicado pelas autoridades carcerárias. Quando perguntei a ele o que estavam lhe dando, não soube responder. O diretor de Belmarsh recebeu o prêmio da Ordem do Império Britânico.

Na corte de Old Bailey, uma das testemunhas médicas, a doutora Kate Humprey, uma neuropsicóloca do Imperial College de Londres, descreveu o estrago: o intelecto de Julian passou da faixa “superior ou mais provavelmente muito superior” à de “significativamente inferior” ao que fora antes — a tal ponto que ele já estava lutando para absorver informações e “atuar na faixa média-baixa”.

Isso é o que o Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura, professor Nils Melzer, chama de “tortura psicológica”, o resultado de algo parecido com um “bullying” de uma gangue, realizado por governos e a mídia cúmplice. Algumas das evidências médicas especializadas são tão chocantes que não tenho coragem de repeti-las aqui. Basta dizer que Assange foi diagnosticado com autismo e síndrome de Asperger e, de acordo com o professor Michael Kopelman, um dos principais neuropsiquiatras, ele sofre de “preocupações suicidas” e corre o risco de encontrar uma maneira de acabar com a própria vida se for extraditado aos Estados Unidos.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/direitosouprivilegios/os-eua-tem-o-dever-de-anistiar-julian-assange/

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