Trinta anos depois de se tornarem potência imperial, EUA vão às urnas. Seu poder já não é ilimitado; a “nova ordem” que quiseram impor dissolve-se; e até a tentativa, liderada por Trump, de negar tudo o que fora dito, já parece naufragar
Por José Luís Fiori
’m not even here to persuade you
that the liberal international order
is necessarily all bad.
I´m just here to persuade you that it´s over
Niall Ferguson. The end of the liberal order
London: Oneworld Book, 2017, p. 6
Tudo começou na madrugada do dia 10 de novembro de 1989, quando se abriram os portões que dividiam a cidade de Berlim. Depois, como se fosse um castelo de cartas, caíram os regimes comunistas da Europa Central, dissolveu-se o Pacto de Varsóvia, reunificou-se a Alemanha, e desintegrou-se a União Soviética. E o fim da Guerra Fria foi comemorado com se fosse a vitória definitiva da “democracia”, do “livre mercado”, e de uma nova “ordem ética internacional”, orientada pela tábua dos “direitos humanos”.
Trinta anos depois, entretanto, o panorama mundial mudou radicalmente. A velha “geopolítica das nações” voltou a ser a bússola do sistema mundial; o nacionalismo econômico voltou a ser praticado pelas grandes potências; e os grandes “objetivos humanitários” dos anos 1990 foram relegados a um segundo plano da agenda internacional. Nesses 30 anos, o mundo assistiu à vertiginosa ascensão econômica da China, à reconstrução do poder militar da Rússia e ao declínio do poder global da União Europeia (UE).
Mas o mais surpreendente de tudo aconteceu no final deste período, quando os Estados Unidos se afastaram de seus antigos aliados europeus e voltaram-se contra os valores e as instituições da ordem “liberal e humanitária” que eles mesmos haviam criado, depois do fim da Guerra Fria. E todos se perguntam como foi que o mundo deu uma cambalhota tão grande, para frente e para trás, em tão pouco tempo ? E o que passará sgora com o mundo, depois das eleições presidenciais norte-americanas, de novembro de 2020?
Já se falou muito do papel que teve a globalização econômica e seus efeitos perversos, no desencanto com a “ordem liberal” dos 90: por que provocou um aumento geométrico da desigualdade entre os países, as classes e os indivíduos; e por que ficou associada a uma sucessão de crises econômicas localizadas que culminaram na grande crise financeira de 2008, que contagiou a economia mundial – a partir dos Estados Unidos – pelas veias abertas pela desregulamentação dos mercados globalizados. Mas existe um outro lado deste processo de autodestruição que em geral é menos mencionado, porque envolve um aspecto essencial da forma em que foi exercida a liderança mundial dos Estados Unidos, durante esses 30 anos.
A Guerra Fria terminou sem nenhum tipo de “acordo de paz”, e depois da dissolução da União Soviética, as potências vitoriosas não definiram entre si uma nova “constituição” para o mundo. Antes mesmo que se pudesse colocar em pauta esse problema, a vitória arrasadora dos Estados Unidos na Guerra do Golfo acabou impondo a vontade americana como princípio ordenador do “novo mundo”. Por isso pode-se dizer que o “bombardeio teledirigido” do Iraque, em 1991, cumpriu papel análogo ao do bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki, em 1945: foi a hora em que se definiu – simultaneamente – uma nova “ética internacional” e um novo “poder soberano”, responsável – a partir daquele momento – pela arbitragem do “bem” e do “mal”, do “justo” e do “injusto” no sistema internacional. Com a grande diferença que, em 1991 – ao contrário de 1945 – não existia no sistema mundial nenhuma outra potência capaz de questionar os desígnios unilaterais dos EUA. Foram 42 dias de ataques aéreos contínuos, seguidos de uma invasão terrestre rápida e contundente, com poucas centenas de baixas americanas e cerca de 150 mil mortos iraquianos. A mesma forma de guerra “à distância”, que depois foi utilizada na Iugoslávia, em 1998, e também nas “intervenções humanitárias” da OTAN na Bósnia em 1995, e no Kosovo em 1999.
Muitos perceberam que a vitória americana na Guerra do Golfo havia consagrado uma nova “ordem ética” e um novo “poder soberano”, com capacidade de impor e arbitrar o novo sistema de valores em todo o mundo. Mas nem todos perceberam que esta nova ordem trazia consigo contradições e tendências próprias de um poder global quase absoluto, sem limites capazes de impedir seu desvio na direção da arbitrariedade, da arrogância e do fascismo1, encobertas pela euforia da vitória e pela adesão entusiástica à nova ideologia da globalização liberal. Em particular durante a administração de Bill Clinton, que passou para a história como o período em que os Estados Unidos teriam utilizado seu poder econômico e força militar em defesa da democracia, da paz, da liberdade dos mercados e dos direitos humanos. Na prática, o governo de Bill Clinton seguiu os mesmos passos do governo de George Bush (pai), os dois igualmente convencidos de que o século XXI seria um “século americano”, e que o “mundo necessitava dos Estados Unidos”, como costumava repetir Magdeleine Albright, sua secretária de Estado. Tanto foi assim que, durante os oito anos de seus dois mandatos, a administração Clinton manteve um ativismo militar permanente ao lado de sua retórica “globalista” e “humanitarista”. Nesse período, segundo Andrew Bacevitch, “os Estados Unidos se envolveram em 48 ações militares, muito mais do que em toda a Guerra Fria”,2 incluindo suas “intervenções humanitárias” na Somália em 1992-1993; na Macedônia em 1993; no Haiti em 1994; na Bósnia-Herzegovina em 1995; no Sudão em 1998; na Iugoslávia em 1999; no Kosovo em 1999; e no Timor Oriental, também em 1999. Como observou Chalmer Johnson, importante analista internacional norte-americano:
[…] entre 1989 e 2002 ocorreu uma revolução nas relações da América do Norte com o resto do mundo. No início desse período, a condução da política externa norte-americana era basicamente uma operação civil. Por volta de 2002, tudo isto mudou e os Estados Unidos já não tinham mais uma política externa; eles tinham um império militar. Durante o período de pouco mais do que uma década (anos 1990), nasceu um vasto complexo de interesses e projetos que eu chamo de “império” e que consiste em bases navais permanentes, guarnições, bases aéreas, postos de espionagem e enclaves estratégicos em todos os continentes do globo.3
Para não falar da ocupação americana quase instantânea dos territórios que haviam estado sob influência soviética até 1991 – começando por Letônia, Estônia e Lituânia, seguindo por Ucrânia e Bielorrússia, os Balcãs, o Cáucaso e chegando até a Ásia Central e o Paquistão. A mesma lógica expansiva e de ocupação que explica a rapidez com que os EUA levaram à frente seu projeto de ampliação da OTAN, mesmo contra o voto dos europeus, em alguns casos, construindo na década de 90 um verdadeiro “cordão sanitário” que separava a Alemanha da Rússia, e a Rússia da China, de tal maneira que no final dos anos 90, a nova “ordem pacífica, liberal, e humanitária” já havia permitido que os Estados Unidos construíssem uma verdadeira infraestrutura de dominação militar global.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/requiem-por-uma-utopia-defunta/
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