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Se burocratizam a ajuda, a favela não janta

Mobilização dentro das próprias comunidades ante a pandemia revela seu potencial de coletividade na ausência do Estado. Mas solidariedade não basta, e Renda Básica é “para ontem”. Para ser efetiva após o tempo perdido, precisa ser ampliada

Sonia Fleury, em entrevista ao IHU

O coronavoucher de 600 reais para os trabalhadores informais, autônomos e intermitentes, como ficou conhecido o pagamento do auxílio emergencial que será feito pelo governo federal, “pode chegar às pessoas das comunidades, mas para ser operacionalizado, ele requer uma burocracia que pode retardar o recebimento e talvez seja tarde demais”, adverte a cientista política Sonia Fleury. Para ela, a melhor maneira de suprir as necessidades financeiras desses trabalhadores é através de uma renda mínima que possa ser garantida imediatamente. “Um economista liberal disse que deveriam estar jogando dinheiro de helicóptero. É mais ou menos isso; não dá para pensar agora em mecanismos burocráticos, porque as pessoas não têm como prover a renda. Na favela, as pessoas costumam dizer que se vende o almoço para comprar a janta. Se a pessoa não trabalhar, não tem o que comer e isso já está acontecendo”, afirma.

Enquanto o auxílio governamental não chega às comunidades, o voluntariado assistencial tenta suprir as necessidades mais emergenciais, como alimentação, mas somente isso “não dá; é preciso que esse recurso de 600 reais chegue hoje, e não se tem clareza de quando vai chegar na mesa das pessoas”, reitera. A crise, salienta, evidencia as carências, mas também as potencialidades das favelas. “A favela hoje é o lugar mais organizado que existe no Brasil. O seu bairro tem algum nível de organização para enfrentar a pandemia? No meu, as pessoas nem se cumprimentam. A sociedade está inteiramente desmobilizada, não participa de nada, mas este não é o caso das favelas. Elas têm um nível de organização cultural, social, religioso, que é muito diferenciado em relação ao resto da população brasileira. Isso vai ficar patente na maneira como eles estão enfrentando a pandemia”, assegura.

Sonia também comenta o enfrentamento da crise no Rio de Janeiro, onde o governador Witzel e o prefeito Crivella politizam a situação. “Crivella, que é um prefeito repudiado pela maioria da população, está tentando se associar ao discurso do presidente Bolsonaro para ver se aumenta a sua capacidade para concorrer à eleição municipal, porque, por si só, ele não tem a menor capacidade de se reeleger”, diz. E lamenta: “Quem vai sofrer com essa situação é a população; ninguém tem a menor dúvida disso, principalmente porque o Rio de Janeiro é uma cidade que tem muitas favelas, com altíssima concentração populacional. Algumas são maiores do que muitos municípios, mas sem a autonomia e os recursos de um município para enfrentar essa situação”.

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Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, Sonia Fleury pontua que a pandemia de Covid-19 acentuou a tensão entre as áreas sociais e a área econômica, em curso desde a aprovação da Emenda Constitucional 95 em 2016, que limita o teto dos gastos nas próximas duas décadas. Na avaliação dela, a crise, de outro lado, também ressalta a importância do Sistema Único de Saúde – SUS. “Ficou claro para a sociedade brasileira, pela primeira vez, a importância do sistema de saúde. Ele não é apenas um atendimento de atenção médica para pobre, mas é responsável pela saúde pública do Brasil inteiro, de pobres, ricos, pelas ações de vigilância sanitária, epidemiológica”, assinala.Sonia Fleury é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, mestra em Sociologia e doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Foi fundadora do Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz – NUPES. Foi membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES entre 2003-2006 e da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde – CNDSS. Atualmente coordena a Plataforma Digital do Dicionário de Favelas Marielle Franco Wikifavelas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em artigo recente, a senhora disse que a pandemia só pode ser enfrentada com mais SUS e mais democracia. O que a crise atual gerada pela pandemia de Covid-19 revela tanto sobre a situação do SUS quanto sobre a democracia no Brasil?

Sonia Fleury – Com relação ao SUS, ficou claro para a sociedade brasileira, pela primeira vez, a importância do sistema de saúde. Ele não é apenas um atendimento de atenção médica para pobre, mas é responsável pela saúde pública do Brasil inteiro, de pobres, ricos, pelas ações de vigilância sanitária, epidemiológica. Também, pela primeira vez, vieram à tona as deficiências do SUS no sentido de como ele tem sido desfinanciado, especialmente desde o estabelecimento do teto de gastos para a saúde e a educação, com a Emenda Constitucional 95. Essa PEC é completamente insana e não tem nenhuma preocupação com pandemias, epidemias, com o envelhecimento da população e, portanto, estabelece que durante 20 anos não é possível aumentar o teto dos gastos. Mas ficou claro para a sociedade o que estava acontecendo com o SUS e a importância dele. E está havendo um esforço enorme para tentar recuperar o que estava sendo feito em termos de desmontagem do SUS.

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