Cresce, no Brasil, o espectro de uma segunda onda da covid, agigantada pelas aglomerações de fim de ano. País tem experiência e estrutura para imunizar toda a população. Mas será preciso atropelar a sabotagem do governo Bolsonaro.
Por Antonio Martins
I. Novo cenário
O Brasil está a um passo de sofrer, em silêncio, uma nova derrota humilhante [para a morte]. A segunda onda de covid-19 tornou-se nítida nos últimos dias. Iniciada no início de novembro, ela cresce aos poucos, como a vaga anterior. Mas já não se espalha a partir de um único ponto, como em março: a maré ergue-se simultaneamente na maior parte dos estados. Como as medidas de isolamento social são tímidas e frágeis, a ida às compras e as confraternizações familiares no final do ano abrem a perspectiva de um tsunami em 2021.
Um fato novo poderia, agora, afastar a perspectiva de tragédia. Duas instituições brasileiras reconhecidas por excelência em Saúde – a Fiocruz e o Instituto Butantan – firmaram, por iniciativa própria (no segundo caso, com apoio do governo de São Paulo), acordos para produção de vacinas. Butantan e Fiocruz têm condições para produzir, ao menos, 200 milhões de doses ao ano – e de começar já a fazê-lo. Esta capacidade pode, como se verá, ser ampliada. Além disso, pelo menos dois outros laboratórios (a Pfizer, dos EUA, e o Instituto Gamaleya, da Rússia) ofereceram grandes lotes da vacina ao governo brasileiro.
No entanto, estas perspectivas animadoras estão sendo destroçadas pela atitude do governo federal – de negligência profunda ou sabotagem ativa. Ao contrário do que ocorre em todo o mundo, o ministério da Saúde jamais se empenhou em sair em busca de vacinas. O ministro e seu chefe difundem continuamente falsas informações, para induzir parte da população a descrer da importância destes insumos. A Anvisa, em parte minada pelo bolsonarismo, age com ambiguidade. Muito pior: ao anunciar, em 1º de dezembro, um “plano” de imunização, o governo federal excluiu – por interesse partidário de Bolsonaro – a vacina do Butantan. No sonolento cronograma governamental, o movimento começa apenas em março, enquanto países com poder econômico semelhante ao do Brasil iniciarão já em dezembro. E o ministério não tomou, até agora, sequer providências comezinhas porém indispensáveis – como a encomenda (em certos casos, importação) das seringas, agulhas e vidraria necessárias para a vacinação.
A esta altura, parece só restar uma saída para vencer o boicote do governo: mobilizar a própria sociedade e pressionar as instituições. Há meios e precedentes para isso. A luta em defesa da Saúde foi capaz, mesmo em tempos sombrios de ditadura, de sensibilizar a população (em especial, as periferias). O SUS surgiu, em grande medida, como fruto deste combate. Mais recentemente, a garantia do acesso a medicamentos impulsionou reivindicações e conquistas memoráveis. O Brasil foi pioneiro na distribuição gratuita do coquetel de drogas que impede o adoecimento dos portadores de HIV. O próprio Poder Judiciário, em outros aspectos tão conservador, tem histórico de obrigar o governo a fornecer remédios necessários à preservação da vida. E desde 7/12, quando o governador de São Paulo confirmou o início da vacinação em janeiro, surgiram, para o bolsonarismo, um contraponto e um constrangimento graves.
Há uma proposta muito relevante em curso. Um conjunto de organizações sociais em defesa da Saúde prepara-se para lançar, em 15 de dezembro, uma Frente pela Vida. Os objetivos centrais são enfrentar a pandemia e defender o SUS. A iniciativa expressa uma característica marcante da vida política brasileira contemporânea. As reflexões e ações capazes de transformar a realidade são desencadeadas, cada vez mais, por movimentos e redes autônomas. Porém, para ter força real, a mobilização proposta pela Frente pela Vida precisa ser abraçada por um leque muito mais amplo de forças – que inclua, por exemplo, os partidos políticos, os sindicatos, uma constelação de outros movimentos e coletivos. O jornalismo de profundidade é, mais que tudo, um projeto de mudança do mundo. Será muito gratificante se as informações reunidas neste texto contribuírem para a mobilização nascente.
II. A segunda onda
Nas três capitais da região Sul, onde a segunda onda da pandemia despontou primeiro, o número diário de mortes já encostou no de junho e julho, picos anteriores da covid-19. Em Porto Alegre, Florianópolis e especialmente Curitiba já há episódios frequentes de superlotação de UTIs e até de falta de vagas, quando pacientes em estado gravíssimo são deixados à míngua. Mas, embora menos acentuada por enquanto, a sombra fúnebre já se espraiou por 18 estados. Na terça-feira (8/12), a média móvel de óbitos chegou a 617 a mais alta em dois meses. Nesse dia, o Brasil voltou a ser, segundo a Organização Mundial de Saúde, o país do mundo, entre os mais afetados pela covid, em que a pandemia progride mais rápido.
No Hospital Emílio Ribas (São Paulo), um centro de referência nacional em doenças transmissíveis, o epidemiologista Jamal Suleiman está alarmado. Ao saber que nos EUA o número de internações por covid é agora duas vezes maior que no pico anterior, e que as mortes diárias já voltaram a superar a marca das 2 mil, ele confessa temer que o mesmo cenário esteja se produzindo no Brasil.
Na propagação de doenças como a covid, EUA e Brasil registram similaridades inquietantes. As populações são grandes e os territórios, vastos. A eclosão de um surto, numa cidade ou região qualquer, tem relevância estatística limitada. Por isso, ao contrário do que ocorreu em muitos países europeus, a curva dos contágios e mortes sobe menos abruptamente. O índice diário de mortes por milhão de habitantes jamais chegou próximo dos estonteantes 29 (na Bélgica) ou 18 (na Espanha). O auge norte-americano foi 6,77; o brasileiro, 5,05. Em compensação, na Europa as ondas gigantescas desapareceram tão rápido quanto se formaram. Nos EUA e no Brasil, elas permaneceram num patamar alto durante longos meses. As marés, embora mais baixas, foram muito mais intensas. Nove meses depois, o resultado é desastroso. Embora o Brasil reúna apenas 2,8% da população do planeta, concentra 11,4% dos óbitos por covid — um índice de mortalidade quatro vezes maior que a média mundial.
Já na evolução geográfica e cronológica da pandemia, estamos várias semanas atrás da Europa. No Ocidente, as mortes por covid tornaram-se um fenômeno dramático a partir do início de março. Passaram-se 80 dias até que, no final de maio, o Brasil liderasse as estatísticas da morte. A segunda onda começou a se erguer, para a maior parte dos europeus, na primeira quinzena de agosto. Aqui, o platô só voltou a crescer em novembro.
O que mais assombra o doutor Jamal Suleiman são as largas avenidas abertas, agora, para que o coronavírus se espalhe. Em março, havia três pontos de difusão: São Paulo e, em menor medida, o Rio e Manaus. Partindo do zero, a pandemia matou 177 mil em nove meses. Agora, ela está instalada em todo o território nacional. Onde chegaremos se a segunda onda tiver a mesma virulência que a primeira – como já ocorre, em muitos países? Leve isso em conta quando observar, como agravante, as aglomerações que já se formam (e crescerão a cada dia, até a véspera do Natal) nos shoppings e nas ruas de comércio. Imagine, por fim, as festas de fim de ano, quando as famílias e os amigos se reunirão, muitas vezes partindo de cidades diversas e distantes, e o vírus encontrará, então, condições para um contágio inédito.
Saiba mais em:https://outraspalavras.net/crise-brasileira/guerra-da-vacina-noseculo-xxi/
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