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A atualidade da reforma agrária

No primeiro ano da pandemia, 116,8 milhões brasileiros passaram por algum grau de insegurança alimentar e 19 milhões se encontram em situação de fome. Mas não precisava ser assim. O MST, mesmo sendo alvo histórico da violência estatal no campo e da perseguição midiática, coloca em prática nos assentamentos a solução tanto para os problemas alimentícios quanto à devastação ambiental.

Por Frederico Daia Firmiano e Matheus Assunção

Quando 21 trabalhadores rurais foram assassinados pela Polícia Militar durante uma marcha organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no estado do Pará, em 17 de abril de 1996 o mundo passou a conhecer um dos pontos candentes da questão agrária brasileira: a violência. Esse episódio será para sempre lembrado como o Massacre de Eldorado de Carajás.

Passados 25 anos, o país consolidou um complexo ramo de agronegócios, cujo PIB-Renda foi estimado pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Esalq/USP em consórcio com a Confederação Nacional da Agricultura em R$ 1,6 bilhões ao ano entre 1996 e 2019.

Toda essa pujança, no entanto, não foi acompanhada pelo fim da violência no campo: entre os mesmos anos foram assassinados 320 trabalhadores e trabalhadoras somente no Pará, estado que segundo os relatórios anuais da Comissão Pastoral da Terra (CPT) figura entre os com maior número de conflitos por terra do país. O padrão de desenvolvimento do agronegócio está vinculado de forma visceral às mais variadas formas de violência: desde a manutenção da estrutura fundiária altamente concentrada até o padrão de produção destrutivo, que tende a eliminar os recursos ecológicos e naturais disponíveis.

Reestruturação e desmontes 

Desde os anos de 1970, sob a ditadura civil-militar (1964-1985), o campo vem experimentando uma reestruturação produtiva permanente: primeiro, com a integração da base técnica da agricultura à indústria – como propôs o economista Guilherme Delgado – a partir daquilo que se convencionou chamar de incorporação do pacote tecnológico da Revolução Verde; mais tarde, com a reorganização técnico-operacional das atividades agropecuárias, sob o influxo do agrobusiness e de uma cada vez maior transnacionalização das cadeias de produção. 

Em certo sentido, a emergência de um padrão de desenvolvimento do agronegócio no Brasil é concomitante ao processo de ajuste estrutural da economia nacional à nova divisão internacional do trabalho, na qualidade de fornecedor de commodities articulado ao papel de valorização financeira para o capital transnacional apátrida. A expressão mais visível deste processo é que na presença de uma forte desindustrialização, com perdas dos setores de progresso técnico e tecnológico, o país passa a priorizar o setor primário. Tudo isso, ambientado pela adesão inconteste à visão neoliberal de que “não há alternativa” (there is no alternative)

No curso da década de 1990, se consolidou uma presença maciça do capital transnacional no comando das cadeias produtivas do campo brasileiro, resultado de centenas de operações de fusão e aquisição doméstica e transfronteiriça nos mais diversos setores, conduzidas, sobretudo, pelas corporações Cargill, Dow Agrosciences, Monsanto, Bunge, ADM.

Surge também uma nova concepção de “negócios no campo” que combinado com a ascensão do que hoje é chamado de Agricultura 4.0 da biotecnologia e da informatização nos processos produtivos (na qual o Brasil ainda é bastante incipiente), irão alterar a anatomia da agropecuária, ao emergir um complexo setor de agroserviços e a financeirização crescente das operações do agro. Ao mesmo tempo, a economia política dos agronegócios pressionará a abertura de novas fronteiras agrícolas, em regiões como do Matopiba, composta por áreas compartilhadas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. 

Ao longo deste processo, a agricultura de pequena escala, camponesa, lastreada no trabalho familiar, foi sendo integrada a esta concepção sistêmica e funcional da agropecuária. Veio à cena a categoria “agricultura familiar”, modificando o significado histórico da reforma agrária para uma “política de mercado”, não mais assentada na desconcentração fundiária, mas em uma suposta modernização desta nova categoria denominada de agricultura familiar e sua integração ao mercado, tal como formulada pelo Banco Mundial.

Aos poucos, a reforma agrária, enquanto política pública capaz de superar os problemas agrários e paradigma de análise do desenvolvimento capitalista do campo, tornou-se letra morta, exceto pelas vias da luta pela terra, cujo MST é sua expressão mais viva.

Desde o 1º Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), de 1985 até 2018 foram assentadas pouco mais de 1,3 milhão de famílias. Para termos ideia, a meta da primeira edição do plano, exposta em seu artigo primeiro, era assentar 1,4 milhão de famílias entre 1985 e 1989. 

Entre 1995 e 2018, o Incra criou 8.847 assentamentos em uma área que corresponde a 72,4 milhões de hectares. Porém, somente entre 2003 e 2010, período da belle époque do chamado neodesenvolvimentismo, apenas 130 mil proprietários incorporaram mais de 100 milhões de hectares, passando a controlar, à época, 318 milhões de hectares do território brasileiro, segundo dados do Cadastro de Imóveis do Incra.

MST, o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, estima colher mais de 12,4 mil toneladas na safra 2020/2021

Se observarmos a dinâmica da política de assentamento rural pelo turno do número de famílias assentadas a cada ano, praticada desde 1985, percebemos um pico apenas em 1998, quando 101,1 mil famílias foram beneficiadas. Estes dados despencaram até 2003 e voltam a subir a partir dos anos seguintes, alcançando seu ápice em 2006, com 136,4 mil famílias assentadas em um único ano. Desde então, há uma constante diminuição destas cifras, chegando a zero agora no governo Bolsonaro. Por alguns anos, a agricultura familiar – o novo paradigma que subverteu a reforma agrária – logrou inúmeras linhas de financiamento para a estruturação sócio-produtiva dos assentamentos, tendo para si, ainda, um importantíssimo “mercado institucional”. 

Este progresso, porém, manteve-se preso à conjuntura econômica, política e social que deu sustentação aos melhores anos do neodesenvolvimentismo. Já sob o governo de Dilma Rousseff, impactado pela crise financeira de 2008 e a consequente debacle da belle époque das commodities, a governança institucional do novo paradigma de reforma agrária passou a ser desmontada. A partir do golpe contra a ex-presidenta, não sobrou nem mesmo o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), antigo gestor da política de assentamentos rurais e regularização fundiária, criado ainda por Fernando Henrique Cardoso, quando as contradições da questão agrária brasileira vieram à público com o Massacre de Carajás.

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2021/06/a-atualidade-da-reforma-agraria/

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