Nota Técnica da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia / Dezembro 2021
Por ABED/ Créditos da foto: (Getty Images)
Em fins de maio e início de junho de 2021, os analistas do Banco Central e os economistas do mercado financeiro fizeram prognósticos otimistas para o segundo semestre de 2021. Em nossa nota técnica publicada no início de junho, apresentamos uma visão discordante da euforia que emanava dos representantes do mercado. Analisando a trajetória dos dados reais da economia brasileira, identificamos a provável continuidade do quadro de viés recessivo então instalado. Agora, em dezembro de 2021, os dados publicados pelo IBGE ratificam o acerto de nossas apreensões. Os jornais noticiam que, medindo o Produto Interno Brasileiro – PIB cada trimestre sobre o trimestre anterior, a preços de mercado, o primeiro trimestre de 2021 apresentou alta de 1,3%, o segundo trimestre queda de menos 0,4% e o terceiro trimestre nova queda de 0,1%.
A trajetória dos dados que suportam nossa análise se mantém na mesma direção indicativa de um quadro recessivo. Observando a participação das despesas de consumo das famílias na composição do PIB, na ótica da demanda, este item oscilou entre 63% e 65% até o final de 2019, ou seja, manteve-se relativamente estável durante todo esse período. Entretanto, a partir de 2020, reduziu significativamente a sua participação, com pequeno crescimento observado no segundo semestre de 2020 resultante do auxílio emergencial, chegando a 58,5% no segundo trimestre de 2021, a menor participação durante todo o período, conforme o gráfico abaixo:
As razões são conhecidas, ainda que as análises oficiais passem muitas vezes ao largo destes temas. Aumento do desemprego e retração da renda real refletem no desempenho dos índices de consumo. Utilizando os dados do primeiro trimestre de 2015 como base fixa, podemos visualizar o agravamento brutal das condições de vida da população brasileira, em um processo que se acelera a partir do final de 2019 (gráfico a seguir). Dada a intensidade na queda da renda, cabe observar que existe uma defasagem temporal entre perda de renda e queda no consumo das famílias. Uma possível ampliação do endividamento das famílias pode responder por algum nível de manutenção dos gastos correntes, mas apenas por um determinado período.
Esta suposição se confirma com dados do Banco Central e da Confederação Nacional do Comércio, publicados no jornal O Globo de 06 de dezembro. A concessão total de créditos por parte do Sistema Financeiro Nacional em seu conjunto, comparando o período de março de 2018 a outubro de 2021 registrou um aumento de 21,7%. Quando o foco se desloca para pessoas físicas ou microempresários, que são os principais usuários de cartões de crédito e recorrem ao parcelamento das dívidas no crédito rotativo dos cartões, a variação no valor dos empréstimos cresceu 29,9 % entre outubro de 2019 e outubro de 2021. A uma taxa média praticada pelos cartões em torno de 343,55% ao ano, e com pesquisa da Confederação Nacional do Comércio que atribui um percentual de 75,6% de famílias endividadas, as ameaças de fortes níveis de inadimplência são evidentes.
As vendas nos setores varejistas, em termos de volume estimado pelo IBGE, apresentam retração por três meses consecutivos. Quanto ao faturamento do mercado varejista, de acordo com dados do IBGE publicados em 08 de novembro, o recuo em outubro foi de menos 7,1% em relação ao mesmo mês de 2020. O presidente da Associação Brasileira de Varejo atribui esta retração a ação corrosiva da inflação sobre o poder de compra da população. Este é, contudo, um vetor que vem agravar uma situação de crescente empobrecimento que nossos dados demonstram. A queda de renda real materializa um conjunto de políticas públicas recessivas que se instalaram e progrediram desde 2015.
O processo inflacionário, num quadro sistematicamente recessivo, não pode evidentemente ser atribuído a qualquer euforia da demanda. Trata-se de um caso clássico de inflação de custos, que se instala a partir da mudança dos componentes de formação de preços internos que passam a ser determinados pelo comportamento dos preços internacionais em setores chave para a economia doméstica. O caso dos combustíveis é o exemplo mais óbvio. Com a orientação governamental para que a Petrobras venda suas refinarias, interrompa a produção doméstica de combustíveis e passe a adquirir estes produtos de fornecedores externos, a formação destes preços essenciais passou a ser completamente atrelada à variação cambial. A alienação da rede de distribuição no varejo – a BR Distribuidora – só contribuiu para o atual quadro caótico apresentado pela evolução destes preços. No mesmo sentido, o atrelamento dos preços agrícolas aos mercados externos incide fortemente sobre o custo da alimentação da população brasileira. A ausência de estoques reguladores, a expansão das culturas de produtos exportáveis em detrimento da área destinada a produção de alimentos para o mercado interno, e a equalização dos preços a partir do câmbio aceleram o processo inflacionário e contribuem fortemente para o quadro de insegurança alimentar e fome que se alastram no país.
Políticas públicas predatórias passaram a introduzir componentes estruturais no processo de expansão da inflação brasileira. O repasse dos aumentos da Petrobras para os fornecedores de gás implicará em aumentos entre 32% até 41% para residências, comércio e indústria. Naturalmente estes custos, no caso do comércio e da indústria, serão repassados aos preços finais dos produtos vendidos. Alimentos, combustíveis e energia são vetores muito sensíveis tanto para a expansão dos preços em seu conjunto quanto para a generalização da redução do poder de compra e crescimento da fome. E todas as decisões de governo, favorecendo interesses privados em diferentes segmentos, perfazem um catastrófico painel de desorganização coletiva que só aprofunda os componentes recessivos impostos ao conjunto da economia e da sociedade.
A título de “cereja no bolo”, a apologia de representantes do Banco Central quanto as virtudes da recessão e a favor de ações elevando as taxas de juros soam como uma inusitada “pá de cal” sobre a já combalida economia brasileira. A subida nos custos financeiros – que como vimos no caso dos cartões de crédito atingem já inacreditáveis 343% ao ano – só irá retroalimentar o processo inflacionário, os níveis de inadimplência e o viés recessivo. Em suma, do ponto de vista das políticas internas, nada que possa ser considerada uma ação contra cíclica antirrecesiva. O próprio anuncio de alguma forma de reedição do auxílio emergencial virá, ao que tudo indica, bastante esvaziado em relação a experiência anterior.
No que diz respeito ao setor externo, existem fortes incertezas já visualizadas em 2021, e que devem seguir e se aprofundar em 2022. A retomada internacional esperada após o período mais agudo da pandemia era prevista como vigorosa e sustentada. Foi vigorosa, em especial porque a crise no ano de 2020 havia sido aguda. Mas não parece ter sustentação no seu vigor, e isso alguns indicadores já estão a apontar. Um dos principais deles, a subida dos preços de algumas commodities, que depois de se elevar rapidamente, estancaram o seu crescimento (em volumes e preços), mostrando que seguem prevalecendo incertezas. Essas podem ser quanto à própria retomada, de alguma maneira, da pandemia, quanto às incertezas financeiras que prevaleciam na pré-pandemia e que voltam a ser objeto de preocupação, como de outras incertezas, em especial quanto ao quadro geopolítico de disputa hegemônica entre EUA e China, que pode assumir contornos mais agudos.
Ainda sobre os EUA, vale observar que o “pacote de investimentos” trilionário anunciado pelo Governo Biden, embora esteja andando, está sob “fogo cerrado” dos parlamentares nos EUA, não dando garantias de continuidade dos níveis de investimento nos mesmos patamares. Além disso, prevalece uma pesada discussão sobre a ação a ser tomada face à alta dos preços, que pode ser uma provável elevação das taxas de juros pelo FED, o banco central dos EUA. Neste caso, isso arrefeceria os investimentos programados nos EUA, mas funcionaria também para reconfigurar o quadro de investimentos pelo mundo, e aceleraria em países dito “emergentes”, como o Brasil, o movimento de saída de capitais, e a desvalorização cambial. Ou seja, neste caso será mais difícil ainda para o Brasil contar com capitais internacionais para a alavancagem de algum crescimento e crédito interno, além da desvalorização cambial jogar mais “lenha na fogueira” interna da alta de preços, até aqui puxada exatamente pela desvalorização do real frente às moedas internacionais, o que pode acirrar o quadro de crise no país.
A conclusão possível, no fim de ano, é que, sem uma (inesperada) reviravolta nas políticas econômicas domésticas, 2022 será uma réplica agravada do ano que se encerra, ratificando a trajetória que a Tabela 1 abaixo demonstra, ou seja, de forma lamentável seguem os (des)caminhos vivenciados pela economia e pela sociedade brasileira.
Dezembro de 2021
Grupo de Análise dos Impactos da Crise
Associação Brasileira de Economistas pela Democracia – ABED
Equipe Técnica: Nelson Le Cocq (coordenação), Adhemar Mineiro (RJ), Adroaldo Quintela (DF), Larissa Chermont (PA), Antônio Rosevaldo Ferreira da Silva (BA), Eron José Maranho (PR)
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