Por: José Luís Fiori | Créditos da foto: (Reprodução)
Nota da Redação: Como manter consistência entre as propostas de curto prazo e a sociedade idealizada como ponto de chegada? Alianças em torno de quê, para quê, até onde? Em que consiste uma gestão socialista do capitalismo?
Na caminhada para a eleição de um novo governo, retornam ao centro do palco questões que há muito tempo são levantadas pelos partidos socialistas e pelos partidos do mundo do trabalho.
As notas da conferência feita pelo professor José Luís Fiori, na bancada do Partido dos Trabalhadores, na Câmara de Deputados, em Brasília, no dia 19 de janeiro de 2000, certamente contribuíram naquele momento, e podem contribuir hoje, para uma perspectiva histórica que fundamente as tentativas traçar respostas e planos.
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À primeira vista, os intelectuais militantes do pensamento crítico e os parlamentares militantes partidários parecem estar muito distantes uns dos outros. Os intelectuais passam a vida investigando o “tempo longo” da história, tentando desvelar suas estruturas mais profundas, suas leis de movimento, suas tendências e cenários futuros; enquanto os políticos e parlamentares estão obrigados a uma atuação constante e exaustiva no tempo curto da conjuntura, no qual o cálculo rápido e a ação inventiva são decisivos para bem representar os cidadãos e ter sucesso no duro jogo da luta pelo poder.
Em geral, a verdade dos intelectuais – quando e se eles a têm e, ainda, se existir a verdade – deve parecer muito distante e alheia ao cálculo político imediato. Aos olhos dos homens de ação, dos políticos militantes – que têm de ser, por definição, otimistas – o discurso, ou a verdade, de quem se move sobre esse tempo longo da história sempre parecerá pessimista.
Talvez por isso, através da história, tenha sido tão tormentosa a relação entre os intelectuais e os políticos, mesmo no interior do movimento e dos partidos socialistas que, por sua natureza, há mais de um século tentam – mais do que os outros partidos, seja na oposição ou no governo – articular estratégias que permitam combinar eficientemente suas tarefas de curto prazo com o objetivo histórico de construção, no longo prazo, de uma sociedade mais igualitária. Mas parece que há momentos na história em que os pontos cegos e as incertezas são tantas que se impõe uma parada para uma reflexão como esta.
Num primeiro momento, pensei em desenvolvê-la na perspectiva do publicista, isto é, do intelectual que costuma, vez por outra, escrever artigos de combate na imprensa. Pensei que devesse, como na maioria das conferências para as quais somos convidados pelo Brasil afora, tentar adivinhar o futuro. Mas, para minha grata surpresa, trata-se de discutir, como intelectuais e pesquisadores, a natureza e as tendências estruturais das transformações que nestes últimos 25 anos vêm mudando de forma tão rápida e categórica a face e o funcionamento do capitalismo contemporâneo, assim como seu sistema interestatal de gestão política.
Nesse sentido, o que me parece implícito na origem deste encontro é a convicção, da qual compartilho, de que essas transformações econômicas e políticas do capitalismo global não são conjunturais. E, com toda a certeza, irão afetar, se já não o fizeram, de forma duradoura, o lugar, a estratégia e as perspectivas dos partidos socialistas ou mesmo daqueles partidos que tenham forte afinidade eletiva com o mundo do trabalho.
Findo este breve introito, avancemos para a parte substantiva do nosso debate. Já que se trata de discutir as transformações contemporâneas do capitalismo e da ordem política internacional, comecemos pela identificação sumária dessas transformações e dos momentos em que ocorreram.
Em primeiro lugar, ninguém tem mais dúvida de que essa ruptura ou inflexão na história contemporânea iniciou na virada dos anos 70, quando se condensou e explodiu aquilo que Giovanni Arrighi chamou de “tríplice indisciplina”. A indisciplina dos grupos sociais subalternos, que ele identificava, como todos identificamos, – hoje há completo consenso entre os historiadores – nos movimentos sociais, nos levantes sindicais de 1969, 1970, 1971, 1972; a indisciplina da periferia, que ele percebe, evidentemente, no Vietnã, Laos, Camboja, Irã, Nicarágua, enfim, numa serie de sublevações ocorridas na periferia, mas dentro do sistema e da ordem americana; e, finalmente, Arrighi fala de uma outra indisciplina, sobre a qual caberia mais dúvida e tomaria mais tempo: a indisciplina do capital, que está associada, na sua opinião, à fuga em direção ao euromercado; trata-se de uma fuga de capitais, sobretudo norte-americanos e, como consequência, da ruptura do padrão-dólar.
Para caracterizar, como Arrighi, essa ruptura no início da década de 70, eu gregaria uma quarta indisciplina: a dos próprios aliados dos norte-americanos, que deixam de acompanhar incondicionalmente a potência hegemônica a partir do seu envolvimento na Guerra do Vietnã. A partir daquele momento, acumulam-se mudanças que acabam gerando realidades novas e duradouras em diversos campos ou dimensões do sistema capitalista e da ordem política mundial. Vejamos que mudanças são essas. Sem preocupação com a ordem, ou até segundo uma ordem recitativa, contrária à que me parece mais correta do ponto de vista da interpretação, diria que há cinco transformações.
A primeira grande transformação, talvez a mais referida e festejada, ocorreu no campo tecnológico, sobretudo nos campos da eletroeletrônica e da biotecnologia. Suas raízes, as invenções básicas, vieram com a pesquisa forçada pela Segunda Guerra Mundial, sobretudo na década de 40. Aliás, quase tudo que vai incidir sobre a década de 70 vem de muito antes; não há uma revolução tecnológica súbita na década de 70. Por razões puramente técnicas, essas invenções básicas estavam engavetadas desde a década de 40 e, por assim dizer, foram acionadas depois de 1970, sobretudo. Seja no campo da microeletrônica computacional, da telecomunicação, ou da engenharia genética, todas elas, todos sabem, envolvem ou afetam diretamente a extensão, o custo e a velocidade de circulação de informações.
A segunda grande transformação para a qual todos chamam a atenção ocorreu no campo do trabalho e do emprego. Depois de 25 anos de crescimento alto e sustentado, quando o desemprego capitalista atingiu seus mais baixos índices, as economias capitalistas centrais entraram em crise, desaceleraram o crescimento e promoveram uma reestruturação produtiva, que atingiu pesadamente o mundo do trabalho, seja do ponto de vista da quantidade de postos de emprego, seja do ponto de vista da organização sindical dos trabalhadores, seja do ponto de vista da redução dos direitos sociais e trabalhistas. Nesse período, cai vertiginosamente o número de trabalhadores do operariado fabril clássico e cresce enormemente o número dos precarizados, subcontratados, terceirizados, etc. Cai generalizadamente a participação dos salários na renda nacional de quase todos os países capitalistas, aumenta a exclusão dos jovens e dos velhos do mercado de trabalho e o desemprego estrutural alcança níveis explosivos, atingindo, junto ao trabalho precarizado, cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo todo, ou seja, um terço da população economicamente ativa mundial.
A terceira grande transformação ocorreu no campo econômico. É aqui, sobretudo, que se encontra o núcleo duro do que, estritamente no campo monetário e financeiro, se chama de processo de globalização. Suas origens estão também mais atrás, na década de 60 e são, em geral, associadas à criação do euromercado de dólares. Mas seu verdadeiro início se dá com o fim da paridade cambial do sistema dólar/ouro, pactado em Bretton Woods e enterrado em 1973, 1976, por decisão unilateral norte-americana. Sua expansão, entretanto, só vai acelerar-se e globalizar-se, efetivamente, a partir de 1980, empurrada pelas políticas regulacionistas, iniciadas pelos governos anglo-saxões, e que atingiram rapidamente o resto do mundo num efeito dominó… É essa expansão que, na entrada da década de 90, com o fim das economias socialistas e a adesão dos governos latino-americanos, dá nascimento, de fato, a uma finança mundial privada e desregulada, operando 24 horas por dia – em tempo real, portanto – e por cujas veias circula e se acumula uma riqueza de tipo rentista que já está na ordem de uns 3 ou 4 trilhões de dólares diários.
A quarta grande transformação que convém destacar ocorreu no campo político e ideológico e se deu a partir da década de 80. Suas raízes também remontam às rebeldias sociais, sindicais e políticas que geraram, nos anos 60 e 70, um sentimento de crise democrática. Aliás, deram origem a uma palavra que depois virou moda e que circula pelo mundo de maneira tediosa: governabilidade – ou ingovernabilidade. Esta nasceu da preocupação dos conservadores com essa década de rebeldia, os anos 60, e explica, de certa maneira, a reação conservadora que vai ocorrer a partir da vitória de Margaret Thatcher e Ronald Reagan em 1979 e 1980. É a partir desse momento que avança sobre o mundo uma nova (??) ideologia hegemônica, que recebeu o nome de neoliberalismo e que estará por trás do pensamento econômico único, monetarista, que organizou e legitimou as novas políticas econômicas, convergentes em quase todo o mundo. São políticas de tipo deflacionista, acopladas às reformas desestatizantes e desregulacionistas, que chegaram à América Latina de forma um pouco tardia, nos anos 90, reduzindo ou acabando por todos os lados com os direitos trabalhistas.
Por fim, a quinta e última grande transformação contemporânea ocorreu no campo geopolítico, evidentemente, também no final dos anos 60 e início dos anos 70. Na derrota norte-americana no Vietnã, essa transformação geopolítica teve o seu momento decisivo, mas, uma vez mais, a mudança só tomou sua direção atual nos anos 80 – durante a Segunda Guerra Fria do governo Reagan, que teve apoio da Sra. Thatcher – e alcançou sua plenitude a partir de 1991, quando, com o fim da Guerra Fria, o mundo passa a assistir a uma veloz concentração do poder político-militar mundial nas mãos dos Estados Unidos e de seus aliados, sobretudo dentro do mundo anglo-saxão.
Hoje, quase todos os analistas internacionais, políticos e econômicos, estão de acordo sobre terem sido essas as principais transformações deste último quarto de século. Elas atingiram e mudaram a face da ordem econômica e política mundial que foi pactuada e construída, logo depois da Segunda Grande Guerra, sobre a hegemonia capitalista norte-americana e sobre o guarda-chuva da bipolaridade ideológica e geopolítica gerada pela competição interestatal entre os Estados Unidos e a União Soviética. Porém, as grandes divergências atuais não estão na identificação das principais transformações, mas na forma como essas transformações vêm sendo interpretadas e hierarquizadas pelos vários analistas.
Creio que é possível identificar pelo menos duas grandes interpretações desses mesmos fatos, as quais são responsáveis por leituras, projeções e proposições completamente distintas, quando não opostas. A primeira dessas interpretações é hoje absolutamente hegemônica, tanto no mundo acadêmico, quanto na imprensa e no mundo político. Pode-se chamá-la interpretação liberal, mas inclui, e isso é importante reconhecer, uma parcela expressiva de adesões marxistas. Para seus adeptos, o essencial ocorreu no campo das transformações tecnológicas, cujos efeitos se alargaram através do mundo de mãos dadas com a expansão irrefreável dos mercados. Juntas, as transformações tecnológicas e a expansão dos mercados teriam derrubado as fronteiras territoriais dos Estados, tornado anacrônicos os projetos econômicos nacionais e obrigado à redução virtuosa da soberania dos Estados nacionais e dos direitos sociais e trabalhistas; tudo isto em nome da competitividade global.
E mais ainda: segundo esses analistas, sobretudo segundo seus ideólogos, essas transformações não só seriam inevitáveis e inapeláveis, como, no médio prazo, levariam a um novo renascimento global, com homogeneização progressiva da riqueza e do desenvolvimento através do livre comércio e da livre circulação de capitais. No limite, os mais eufóricos consideram que essa globalização tecnológica induzida deve levar-nos em direção a alguma forma de governo global, de paz duradoura e de democracia cosmopolita.
Uma segunda interpretação, oposta a esta e que subscrevo pessoalmente, vê essas transformações contemporâneas de forma completamente distinta. Nossa tese é que, em primeiro lugar, essa visão hegemônica da desregulação, do fim das fronteiras, do fim dos Estados, do fim da história, do fim da guerra, da paz universal, do governo global e da democracia cosmopolita, essa visão hegemônica tem um forte viés ideológico e apenas atualiza as ideias centrais de uma velha utopia liberal, que já vem de fato dos séculos XVII e XVIII, mas que tem sido reiteradamente negada pela história e, parece, uma vez mais, não corresponder nem dar conta das transformações atuais.
Em segundo lugar, agora afirmativamente, nossa tese é que a globalização, usada aqui apenas como a palavra síntese, não é uma mera imposição tecnológica, nem é apenas um fenômeno ou discussão puramente econômica, senão, pelo contrário, diz respeito essencialmente a uma estratégia e a novas formas de dominação social e política, as quais se desenvolveram e se afirmaram vitoriosas neste último quarto de século, tanto no plano internacional como no espaço político interno de um número expressivo de países. Segundo nosso ponto de vista, é a partir dessa estratégia vitoriosa – que não deve ser confundida com conspiração, nem com um só sujeito, mas pensada como resultado daquilo que Engels e também o sociólogo alemão Norbert Elias costumam chamar de um paralelogramo de forças – que se deve explicar a globalização. Trata-se de uma estratégia, não de uma conspiração, nem do voluntarismo satânico de algum mago das finanças ou da economia.
É a partir do reconhecimento dessa estratégia que se deve explicar, do nosso ponto de vista, a trajetória específica que tomaram os processos neste tempo de convergência político-ideológica e político-econômica, de concentração, centralização e financeirização do capital e de reorganização das hierarquias e formas de dominação entre os Estados. Nesse sentido, nossas leituras da crise e das principais transformações contemporâneas correspondem a uma visão, ou teoria, mais ampla sobre a dinâmica do capitalismo histórico. Este, apesar de suas mudanças e rupturas, apresenta algumas regularidades que atravessam os séculos, além daquelas ligadas ao processo de acumulação de capital, tão bem mapeadas e diagnosticadas por Marx.
Existem, na dinâmica do capitalismo histórico, outras realidades relevantes para a discussão aqui proposta e que dizem respeito às relações entre o poder dos Estados e o poder do capital, em primeiro lugar, e entre o poder político mundial e os espaços geográficos – o que inclui o problema das periferias do sistema -, em segundo. Há, por fim, o problema da relação entre o poder dominante mundial e os grupos subordinados. A nossa interpretação das transformações aqui tratadas e de suas consequências sobre as estratégias dos partidos e dos movimentos socialistas ou trabalhistas inscreve-se numa visão teórica mais ampla que privilegia a discussão das permanências, das regularidades do sistema. Esta visão dirige-se, portanto, para além das rupturas, para além desse fascínio constante dos intelectuais e dos jornalistas pela surpresa e pela novidade, que os torna incapazes de explicar o que de fato vai passando no sistema.
Com um rápido passeio pela origem da modernidade capitalista pode-se introduzir nesta discussão algumas evidências de que os Estados não apenas nasceram junto com o capital, como tudo indica que deverão seguir casados enquanto o capitalismo sobreviver. Há pelo menos três momentos dessa história que são fundamentais para esta discussão.
O primeiro desses momentos é extremamente ilustrativo, porque nele se pode captar ou fotografar o big-bang na sua origem: é o momento do próprio nascimento dos estados territoriais e do capitalismo, quando – do nosso ponto de vista – se originou, a um só tempo, uma economia nacional e uma economia global. Esta é uma ideia absolutamente central para o nosso raciocínio. Não existe um capitalismo smithiano, que vai se dividindo e depois vai se globalizando de dentro para fora. Do nosso ponto de vista, para pensar a globalidade, é essencial a convicção de que o capitalismo é, desde a sua origem, nacional e global.
Entre os séculos XV e XVIII, como todos sabem, ocorreu na Europa, um período chamado mercantilista. São três séculos de luta intereuropeia e competição colonial. É nesse momento que, do nosso ponto de vista, ocorre um verdadeiro big-bang da modernidade, gerado exatamente pelo encontro – a um só tempo virtuoso e odioso – entre o príncipe, o território e o capital. Desse encontro deriva o casamento indissolúvel do Estado com o capitalismo, concertado já no nascedouro de ambos, com a constituição simultânea dos territórios e economias nacionais e dos impérios coloniais. Há uma visão equivocada segundo a qual o estado territorial seria uma espécie de freio permanente ao movimento compulsivo do capital em direção à globalidade; mas o que a história nos demonstra, desde o século XV, é que, assim como o capital tem uma propensão irreprimível à globalidade, o estado territorial tem uma propensão irreprimível ao império. Nasceram juntos, casaram-se ao nascer e já “saltavam o muro”, desde então.
Uma terceira lição é que, a partir da sua constituição, a competição entre os Estados envolveu desmonopolização para dentro, ou desobstrução dos mercados internos, na medida em que o próprio movimento do mercantilismo foi um movimento de expansão controlada, com monopolização para fora e desregulação para dentro. Este é um aspecto que, em geral, não é sublinhado no estudo do mercantilismo. A competição entre os Estados, do nosso ponto de vista, envolveu sempre os mercadores e os banqueiros e se transformou numa formidável alavanca de acumulação de riqueza desde a primeira hora até hoje. De tal maneira que o historiador francês Fernand Braudel chegou a dizer que, de fato, a competição interestatal é o lugar dos grandes predadores e dos grandes lucros capitalistas ou, mais radicalmente, que este é de fato o lugar do capitalismo: a competição entre Estados e não a economia de mercado.
Saiba mais em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-Capital-e-o-Nacional-/4/52642
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